Um esportivo de seis cilindros e linhas charmosas marcou a
estreia de um dos ornamentos de capô mais conhecidos da história
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: RM Auctions e divulgação
Entre os ornamentos de capô — aqueles que simbolizam o fabricante do automóvel — mais famosos do mundo do automóvel, ao lado da “dama alada” da Rolls-Royce e do “B” voador da Bentley, está certamente o felino da Jaguar. Afinal, já são quase 80 anos desde que os ingleses usaram tal marca pela primeira vez, período no qual foram produzidos modelos inesquecíveis como a série XK 120/140/150, o E-type e a longeva linha XJ de sedãs.
A Jaguar, porém, não nasceu com esse nome: sua origem está na Swallow Sidecar Company, fundada em 1922 na cidade de Blackpool, no noroeste da Inglaterra, pelo jovem William Lyons (1901-1985), então com apenas 20 anos, em associação com William Walmsley para fabricar carrinhos laterais para motocicletas. Talentoso para desenhar veículos, Lyons logo passou a fazer carrocerias para o Austin Seven e depois para chassis da marca inglesa Standard. No fim da década mudava-se para Coventry.
Em cima, William Lyons em sua moto e o Austin Seven com carroceria desenhada
por ele; embaixo, exportação aos EUA do SS 1 Airline e o SS Jaguar Open Tourer
Lyons não estava satisfeito em “vestir” chassis de outros fabricantes: queria fabricar os próprios automóveis. Em 1931 a empresa anunciava na imprensa: “Espere! O SS está chegando”. De fato, os cupês SS I e SS II eram apresentados no Salão de Londres daquele ano com linhas atraentes — capô longo, cabine recuada, portas “suicidas” articuladas na parte de trás — e motor de seis cilindros em linha e 2,15 litros. Não se sabe se era sigla para Swallow Special ou para Standard Swallow, mas SS Cars se tornou a designação oficial da empresa em 1935.
Com 125 cv, o roadster de 3,5 litros acelerava
de 0 a 96 km/h em 10,5 segundos e
alcançava velocidades notáveis para o período
Um modelo aberto — o SS I Tourer — era acrescentado à linha em 1933 e levava a marca a competições pela primeira vez, ao participar da prova Alpine Trial daquele ano. Mas ainda não era um carro esporte, o que surgiria apenas dois anos depois: o SS 90, um roadster (conversível esportivo de dois lugares) com menor distância entre eixos e motor seis-cilindros de 2,7 litros com válvulas laterais e potência de 75 cv. O elegante sedã SS I Airline Saloon, que estreava no mesmo ano, estava no primeiro lote de carros vendidos aos Estados Unidos.
Foi também em 1935 que o nome Jaguar foi introduzido em uma linha de sedãs e esportivos — a SS Jaguar — com evoluções técnicas sobre os SS conhecidos. A denominação do felino vigoroso e veloz teria sido sugestão da agência de publicidade, segundo o fabricante, mas há fontes que falam em uma demorada escolha entre 500 espécies animais pelo próprio Lyons.
O SS Jaguar 100 estreava em 1936 com portas recortadas, menor entre-eixos e o
motor de 2,7 litros modificado para 104 cv; o para-brisa podia ser rebatido
O baixo desempenho não favorecia o SS 90, que teve apenas 23 unidades construídas. Por isso, para equipar a linha SS Jaguar o motor Standard de 2,7 litros recebeu válvulas no cabeçote, resultado da intervenção feita pela consultoria de Harry Weslake, o que permitiu elevar a potência para 104 cv. Curiosamente a fábrica usava a designação 2 ½ para a cilindrada, embora ele tivesse 2.663 cm³. Quatro portas, com a habitual articulação atrás, eram outra novidade.
No evento de lançamento no luxuoso Mayfair Hotel, em Londres, os convidados podiam adivinhar o preço do novo sedã. A média de apostas foi de £632, mas o carro custava na verdade apenas £395. O Jaguar começava a assumir a fama de “Rolls-Royce (ou Bentley) dos pobres”, por oferecer classe e requinte em um patamar não tão distante ao daquelas tradicionais marcas britânicas a um preço bem mais baixo.
Do SS 90 a empresa passou ao SS Jaguar 100 como seu representante entre os roadsters. Com chassi, motor, radiador, faróis e desenho da parte traseira refeitos, o belo modelo aberto garantia seu lugar na galeria de clássicos britânicos. O estilo típico dos anos 30, com para-lamas salientes ligados por estribos e grandes faróis principais e auxiliares, vinha enriquecido por portas recortadas (para permitir o acesso por cima quando fechadas), para-brisa rebatível, rodas raiadas com fixação central e estepe inclinado na traseira. Havia telas quadriculadas para proteger os faróis com o mesmo padrão da grade e, em alguns carros, cintas de couro amarravam os capôs. O charmoso felino saltante sobre o radiador, porém, apareceria só em 1937.
Capô longo e cabine recuada eram típicos de um roadster; dentro do SS 100
vinham bancos esportivos, grande volante e painel com seis mostradores
Os dois bancos ocupavam quase toda a estreita cabine. O do motorista tinha ajuste em distância e, com uso de ferramentas, de inclinação do encosto. À frente dele estavam o enorme volante de quatro raios (46 cm de diâmetro) e três instrumentos, acrescidos de igual quantidade diante do passageiro da esquerda. Caso se quisesse rebater o para-brisa, defletores individuais desviavam o ar.
Dotado de dois carburadores, o motor de 2,7 litros e 104 cv levava o SS 100 à velocidade máxima de 161 km/h ou 100 milhas por hora, este o motivo de sua denominação. O material promocional descrevia-o como um carro “desenhado primariamente para competições, mas igualmente adequado ao uso comum em estrada, pois, apesar da virilidade de seu desempenho, é tratável o suficiente para uso como um rápido carro de turismo sem modificações”.
A SS tinha a tradição de mecânica sem ousadias, o que foi mantido no esportivo. Com carroceria montada sobre chassi, ambas as suspensões tinham eixo rígido e feixes de molas semielípticas, em um tempo em que algumas marcas já usavam sistema independente à frente. O câmbio era manual de quatro marchas, sem sincronização para a primeira, e os freios eram a tambor nas quatro rodas, que recebiam pneus 5,50-18. A tração era traseira. O carro media 3,89 metros de comprimento com distância entre eixos de 2,64 m e seu peso girava em torno de 1.180 kg.
Com o motor de 2,7 litros e dois carburadores, o SS 100 chegava a 161 km/h ou
100 milhas por hora, razão de sua denominação; a mecânica era tradicional
Ao lado do motor de 2,7 litros, a linha apresentada em setembro de 1937 trazia um de 3,5 litros para o SS 100 e outros modelos (para os carros mais simples da marca havia ainda um compacto 1,5-litro). Com dois carburadores e 125 cv, o roadster com o novo coração acelerava de 0 a 96 km/h em 10,5 segundos e alcançava velocidades ao redor de 170 km/h, marcas notáveis para o período.
Na avaliação da revista norte-americana Consumer Guide, o SS 100 de 3,5 litros foi descrito como “rápido o bastante para exigir uma moto de bom desempenho para ser ultrapassado. É fácil entrar no carro, com portas articuladas atrás que abrem em grande ângulo, e mesmo fechadas elas não parecem estar lá por causa do recorte superior. O grande capô de 1,25 metro de comprimento com quatro filas de saídas de ar domina a vista. Entre os comandos junto ao volante, uma alavanca comanda o avanço de ignição”.
“O motor mantém muito do torque de motor a vapor do antigo de válvulas laterais, mas há potência adicional; os grandes pistões de alumínio empurram suave e vigorosamente desde 500 rpm”, continuava. “A alavanca de câmbio tem movimentos curtos e não muito pesados. A direção é sensível e leve o bastante para fazer dele um carro maneável, mas em alta velocidade o SS 100 dá a impressão de que a frente está levitando. Os que levaram seu velocímetro à marca de 100 mph sentiram a direção muito leve e vaga”.
A versão de 3,5 litros e 125 cv deixava o esportivo ainda mais atraente, assim como
o belo felino sobre o radiador; o cupê apresentado em 1938 foi exemplar único
O SS 100 foi bem-sucedido em competições. Com um deles o jornalista Tommy Wisdom venceu a Alpine Trial de 1936; no ano seguinte, três carros oficiais da fábrica entraram no Rali RAC, mas o vencedor era outro Jaguar do mesmo modelo, de competidor particular. Mais vitórias aconteceram nos circuitos de Brooklands e de Goodwood. Mesmo com nove anos de uso, um SS venceu a Alpine Trial de 1948. Ao todo, até 1938, foram feitos 198 carros com motor de 2,7 litros e 116 com o de 3,5 litros.
Hoje, exemplares em perfeito estado do SS Jaguar 100 são muito valiosos. A RM Auctions leiloou um 1938 cinza por US$ 852.500 e o verde das fotos (ambos de 3,5 litros) por US$ 451 mil. O vermelho de 2,5 litros de 1936 obteve US$ 291.200. Cifra ainda mais alta foi paga por um 3,5-litros de 1937, que apurou US$ 1,045 milhão em leilão da Gooding & Co. em 2010. O interesse pelo carro motivou a criação de réplicas como o Suffolk, reconhecido pela qualidade até entre admiradores do SS original, com motor de seis cilindros do sedã XJ6.
No último ano do SS 100, em 1938, a marca exibia no Salão de Londres um SS 100 cupê com carroceria mais aerodinâmica. Se ele não chegou à produção em série, é fácil ver em suas linhas a inspiração para o XK 120 que seria lançado 10 anos depois. Depois da Segunda Guerra Mundial, contudo, o nome da SS teve de mudar — seria inevitável a associação com a Schutzstaffel, a organização paramilitar do partido nazista — e assim foi escolhido Jaguar Cars Limited.
Mais Carros do Passado |