Modelo dos anos 50 comprova que vivemos a era do
verniz: o novo que “parece novo”, mas reedita o mesmo
É triste constatar que, em se tratando de automóveis, vivemos a era da absoluta falta de criatividade. Nada que é lançado parece brilhar aos olhos como algo verdadeiramente inovador. Pensei nisso quando vi exposto no museu do automóvel de Turim um exemplar do lendário Citroën DS, apontado para o céu como se fosse um foguete prestes a decolar. A metáfora do foguete foi explorada em um pequeno filme publicitário do carro, no qual transeuntes admiram, extasiados, as formas inusitadas do carro quando, inesperadamente, ele alça voo.
Ser comparado a um foguete não é para qualquer um, ainda mais na era da conquista do espaço — o DS surgiu em 1955 e, de tão avançado, foi produzido por quase 20 anos sem grandes alterações. Hoje os carros não são mais tão revolucionários como eram os carros de antes e há muitas explicações para esse fenômeno: uma indústria global concentrada em poucos grupos; a padronização da tecnologia automotiva; a obsessão por controle de custos; o imperioso ganho de escala; um mercado consumidor pouco aberto a novidades que rompam com o status quo.
O atual posicionamento da Citroën — “tecnologia criativa” — seria perfeito se empregado ao DS, que quebrou a maioria das referências de seu tempo
Há no mesmo museu uma galeria que homenageia o que eles consideram como os “projetistas mais importantes da nossa era” e, dos 10 profissionais (da importância de Giorgetto Giugiaro, Walter de Silva e Chris Bangle, para citar três deles), oito disseram que o DS é a obra-prima que gostariam de ter criado. De fato, o atual posicionamento da Citroën — “tecnologia criativa” — seria perfeito se empregado naquela época. O modelo quebrou a maioria das referências de seu tempo e nada foi igual a ele. Basta olhar o volante de apenas um raio e verá que a preocupação em criar algo diferenciado foi verdadeira — e permeou todo o desenho e a engenharia, de cima a baixo. E não citei a revolução na suspensão ou nos faróis direcionais…
Neste ponto de vista, cabe pontuar que a Citroën é uma das poucas — senão a única — que ainda arriscam ousar pinceladas de novidades e diferenciações nos dias de hoje, mesmo com toda a padronização industrial e a pressão dos acionistas que exigem o pragmatismo a todo custo.
Veja, em contrapartida, a Volkswagen. O enorme grupo é ainda um oásis de lucratividade numa indústria à beira do abismo, mas seus produtos representam o pragmatismo levado ao mais alto nível. Linhas retas, pouco inspiradas, replicadas de forma mecânica (com o trocadilho) do modelo mais caro ao mais barato. A possibilidade de erro tende a zero, já que não despertam paixões tampouco ódio. Do desenho dos botões do rádio ao arremate das lanternas, não há a criatividade que faz brilhar os olhos e arrisca transformar o automóvel em uma obra de arte. A estratégia repete-se na Audi, que nada mais apresentou de criativo em termos estéticos desde o supercarro R8, de sete anos atrás.
Mesmo analisando outras linguagens de desenho e de posicionamento de mercado até com certo grau de ousadia, como fazem Ford, Opel, Peugeot, Seat, Renault e outras marcas, o que se vê são chapas com estampas mais vincadas, faróis postos em lugares menos ortodoxos ou com desenhos mais irregulares e só. Parece criativo, mas é só verniz. Por baixo encontram-se as mesmas soluções de engenharia, os mesmos paradigmas travestidos de novos modelos.
Motor traseiro não vingou
Quando a VW estava planejando o pequeno Up, havia rumores de que o compacto viria com motor traseiro como sua versão conceitual, o que surpreendeu a imprensa especializada. Claro que motores traseiros não são novidade — ainda mais para a marca —, mas me animei porque vi na atitude de reposicionar o motor uma rebeldia, uma subversão. O Up seria, de fato, um modelo indo na direção contrária. Mesmo sem levar em conta as implicações técnicas da escolha por parte da engenharia, a notícia gerou um furor agradável.
Mas logo os protótipos desmentiram o rumor e a marca justificou a escolha pelo arroz e feijão alegando custos mais baixos. O Up é um compacto novo, mas ao mesmo tempo não é. Novas são as chapas, o desenho dos faróis, o painel, talvez o plástico da manopla do câmbio. De criativo, mesmo, nada.
Na Fiat, os modelos mais aclamados são “homenagens” ao passado: onde foi parar a capacidade de inovar?
Há outras tentativas de simulacro de criatividade, quando a aplicação do verniz na velha fórmula de mobilidade passa um pouco do ponto e nascem coisas com aparência bizarra, como o Nissan Juke, o utilitário esporte conceitual EXP9 da Bentley ou, mesmo no passado, os eleitos como piores de todos, a Fiat Multipla na Europa e o Pontiac Aztec nos Estados Unidos. Por mais que apresentem desenhos fora do padrão, não há criatividade ali, ao menos em minha opinião. Pode parecer nostálgico da minha parte, mas não deixo de pensar que criativo mesmo era o pequeno Romi-Isetta. Aquilo sim é repensar a mobilidade! De uma só vez, questiona-se os pilares do sistema — por que as portas precisam estar nas laterais?
Falando na nostalgia, deixei por último o mais dramático sinal de que estamos vivendo no sertão árido das cópias e do apego ao passado: a reedição. A Fiat europeia é um exemplo crítico. Seus modelos mais aclamados, os da linha 500, são “homenagens” ao passado, revivendo linhas e padrões de pintura que estiveram nas paradas de sucesso de 50 anos atrás. Onde foi parar a capacidade de inovar? A Mini, hoje uma subordinada à gigante BMW, é outra que vive desse passado sem apresentar algo realmente novo.
Então, quando você acha que nada mais pode piorar, vêm os chineses e lançam cópias das recriações do passado revivido. É de chorar. Não são feios, em absoluto: têm seu charme. Mas não dá para chamar de “novo”.
Todas as noites rezo a São Cristóvão, o padroeiro católico dos motoristas, para que estenda suas bênçãos às fábricas e ilumine as mentes dos capitalistas. Porque é neles que reside a causa dessa maldita era de mais do mesmo. Eximo os inventivos projetistas da culpa — são apenas vitimas do pragmatismo funcional do sistema. É triste, mas o diagnóstico da falta de criatividade é grave e a cura, paradoxalmente, pode estar nos museus.
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