Clima rigoroso penaliza automóveis e motoristas em Montreal,
no Quebec, como conta um leitor que mora na cidade há seis anos
Texto e fotos: Fabrício Kikko*
Ruas e rodovias cobertas de neve e gelo, pneus de inverno, limpadores de para-brisa que não conseguem varrer a neve acumulada: situações como essa, inusitadas para quem vive no Brasil, fazem parte da rotina dos moradores de grande parte do Canadá.
Moro na cidade de Montreal, segunda maior cidade do país, com cerca de 1,6 milhão de habitantes, localizada na província do Quebec. Trata-se da única província que tem somente o francês como idioma oficial. Por isso, as placas de sinalização são em geral apenas em francês e a unidade de medida é uma mistura entre o padrão internacional e o imperial.
O canadense segue uma filosofia misturada entre os Estados Unidos e a Europa, não tendo tanta preferência por automóveis grandes como os norte-americanos, mas com muito apreço por picapes, que representaram 58% do mercado em 2014. Os veículos mais vendidos, em ordem, são as picapes Ford Série F (líder de vendas por aqui há mais de 40 anos) e Ram, o Honda Civic e o SUV Ford Escape, o que faz da marca do oval azul o líder entre os fabricantes.
Segunda maior cidade canadense, com 1,6 milhão de pessoas, Montreal
fica na única província que tem o francês como idioma oficial
Muitas famílias têm mais de cinco integrantes e, assim como no Brasil, peruas estão em extinção, sendo substituídas em grande parte por utilitários esporte. Mas também são comuns minivans como Dodge Caravan (a mais vendida no ano passado), Honda Odyssey e Toyota Sienna. Utilitários para sete ou oito pessoas com conforto, como Ford Explorer, Honda Pilot e Nissan Pathfinder — ou, para os mais afortunados, Audi Q7 e Mercedes-Benz GL — também são opções muito consideradas.
É obrigatório o uso de pneus de inverno,
com um composto de borracha macio,
que funcionam bem apenas abaixo de 7°C
Carros no Canadá custam menos que no Brasil. Com impostos federal e provincial (15% no Quebec, mas há províncias em que não passam de 5%), um Ford Fiesta SE sedã 1,6-litro custa C$ 18,8 mil (R$ 47,1 mil) e um Honda Accord LX 2,4-litros sai por C$ 27,6 mil (R$ 69,2 mil), sempre pela cotação de R$ 2,50 para C$ 1. Há tributação ambiental por ar-condicionado (C$ 100) e pneus (C$ 3 cada), relativos a seu descarte.
No Quebec a habilitação pode ser tirada com 16 anos (em Alberta, já com 14), mas o interessado requer uma licença para aprendiz, seja em auto-escola ou ensinado por outro condutor. Se aprovado, recebe uma carteira provisória por dois anos, durante os quais não pode acumular mais de quatro pontos por infrações. No trânsito o respeito entre as pessoas não chega a ser exemplar, mas é muito superior aos padrões brasileiros: acostamento é para emergências, não há motociclistas no meio dos carros, um condutor dá preferência ao outro. Para-se no sinal à noite sem preocupação, assim como se anda de bicicleta de forma segura, mesmo onde não há ciclovia ou ciclofaixa. Praticamente não existe o jeitinho que tanto prejudica o Brasil.
No verão, Mont Tremblant (à esquerda), cidade a 140 km muito apreciada
para esqui, e o estacionamento que será coberto por neve (no alto)
Sim, no Canadá existem lombadas, mas bem sinalizadas e, em geral, restritas a áreas residenciais e perto de escolas ou parques. Há painéis indicadores de velocidade que não multam, apenas informam; em toda a ilha de Montreal existem apenas três radares fotográficos. A fiscalização de velocidade mais comum é feita pela polícia, que sai atrás do infrator. O maior limite é de 100 km/h, sendo que a mínima é de 60% da máxima e também fiscalizada. Contudo, os policiais costumam permitir até 115 km/h e, em Toronto, enquanto seguia o fluxo a 140 km/h, vi uma viatura parada apenas verificando a organização do tráfego, sem intervenção.
Chuva congelada
Os carros dos canadenses enfrentam condições realmente severas de uso. Durante o verão a situação não é muito diferente do que há no Brasil — o que muda é a frota circulante, com uma infinidade de conversíveis e carros esporte como Ferrari, Lamborghini e Porsche nas ruas, além de modelos mais luxuosos de Acura, Audi, BMW, Jaguar, Lexus, Mercedes. Quando o outono começa, porém, muitos desses carros somem e vão hibernar por cinco meses no mínimo — ou pegam o rumo dos patos para o sul dos Estados Unidos.
Entre outubro e dezembro a região vê um tipo de chuva chamada de freezing rain, ou chuva congelada. Não é granizo, mas um gelo muito fino e afiado que dói quando bate na pele, parecendo cortá-la. Nesses dias, dirigir é uma aventura perigosa — há sempre a recomendação de não sair de casa nesse período. Forma-se no chão uma camada de gelo tão fina, mas resistente, que é impossível distinguir de um asfalto molhado. Qualquer ação do motorista deve ser cautelosa e planejada com antecedência.
O inverno rigoroso de Montreal obriga ao uso de pneus especiais por
três meses para manter a segurança em meio a tanta neve e gelo
Com o carro estacionado ao relento, é prudente levantar os limpadores de para-brisa: as palhetas colam ao vidro e, ao acionar os limpadores, há o risco de quebrar o motor, braço ou palheta. Carros mais bem equipados têm aquecimento na base do para-brisa para derreter o gelo e amolecer a borracha, aumentando a eficiência das palhetas. Ainda durante o outono as ruas ficam cobertas de folhas de plátano, um símbolo do Canadá. Elas grudam à carroceria e, se não retiradas logo, torna-se difícil removê-las. Felizmente não mancham a pintura com facilidade.
Já no inverno, durante longos três meses, os motoristas do Canadá enfrentam o limite, seja para dirigir ou manter os carros. No Quebec — e apenas nele — é obrigatório entre 15 de dezembro e 15 de março o uso de pneus de inverno, que lembram os de uso misto dos carros fora de estrada do Brasil, mas com um composto de borracha mais macio e que funcionam bem apenas abaixo de 7°C. Acima disso, o pneu mostra-se muito mole e deixa o carro instável. O desenho da banda de rodagem é especial para aderência no gelo, com sulcos profundos para dissipar melhor a neve e evitar que ela grude ao pneu.
Pneus para todas as estações do ano já não servem: em poucos metros, uma camada espessa de neve adere-se à banda de rodagem, tirando qualquer aderência da borracha com o piso. O uso de correntes, que seria uma alternativa, é proibido nas ruas e na maioria das rodovias, sendo liberado só para as montanhas. Há quem equipe o carro com pneus com rebites, que ajudam a quebrar o gelo, mas são bem ruidosos.
Complicação para o motorista: Honda Civic em meio metro de neve
e um dia de “chuva congelada”, que forma um gelo resistente no solo
Na instalação de pneus de inverno costuma-se adotar um perfil mais alto, tanto pelo menor custo quanto para maior resistência aos buracos que surgem nas ruas e degraus que se formam entre o gelo e o pavimento. Para evitar alterar o diâmetro externo, usam-se rodas de aro menor. Assim, os pneus de inverno em geral são instalados em jogo de rodas diferente — é comum ver carros com rodas de aço pretas durante a estação —, o que também evita danos ao pneu pelas frequentes remoções e instalações.
No dia a dia o automóvel fica coberto por uma camada espessa de sal (na verdade, cloretos de sódio e de cálcio e areia), jogado nas ruas para facilitar o derretimento do gelo; por isso, não é incomum ver carros com mais de cinco anos de uso com ampla oxidação na parte inferior da carroceria. Pode-se proteger o carro com produtos antioxidação, mas a qualidade de construção do carro é o que mais conta. Nesse quesito os modelos atuais são bem resistentes, mesmo os mais baratos.
Em dias de temperatura abaixo de -10°C é nítido que o motor está sendo mal lubrificado logo após acioná-lo e o carro fica “amarrado” nos primeiros quilômetros, até o óleo do câmbio também diminuir de viscosidade. O sistema de acionamento do motor a distância ajuda muito, pois é possível dar partida alguns minutos antes de sair dirigindo — e, ao ligar o aquecimento, deixar o interior do carro um pouco menos frio. Bancos e volante aquecidos são outras comodidades muito apreciadas por aqui.
O Rio St. Laurence congelado e a charmosa Mont Tremblant em sua
melhor estação, que requer cuidados especiais de quem dirige
Tirar a neve de cima do carro é um trabalho quase sempre pesado e, para SUVs e minivans, remover a neve do teto é complicado. Muitas vezes também é preciso retirar a neve ao redor do carro: um acúmulo de neve compactada de 10 centímetros já impossibilita muitos carros de tração dianteira de sair da vaga de estacionamento. O gelo que gruda aos vidros precisa ser raspado, o que traz risco de danificar o vidro. Trafegar com neve acumulada sobre o carro constitui infração (a quantidade aceita fica a critério do agente de trânsito), que sujeita o motorista flagrado a multa e à retirada imediata da neve. Limpador de para-brisa em bom estado e líquido apropriado a temperatura baixa para lavar o vidro são essenciais.
Carros com tração nas quatro rodas, seja permanente ou sob demanda, oferecem muito mais segurança no inverno canadense. Os de tração traseira requerem adaptação do motorista ao modo de condução, pois é fácil perder o controle nas ruas cobertas de neve e gelo. O controle eletrônico de estabilidade e tração não é obrigatório no Canadá, mas todos os carros novos são equipados com o sistema. Em rampas cobertas de neve, porém, é melhor desligar o controle de tração e deixar que as rodas patinem.
Enfim, apesar da oferta de carros muito bons a preços mais adequados ao padrão de renda do país, ter automóvel no Canadá não é simples — e dirigir, menos ainda. Mas estradas em ótimo estado de conservação e belas paisagens compensam toda a dificuldade durante o inverno. É um país que justifica muito uma visita, seja no inverno ou no verão.
Mais Curiosidades |
Participe
Fabrício Kikko mudou-se há seis anos de São José dos Campos, SP, para Montreal e aceitou nosso convite para escrever sobre sua experiência no Canadá. Se você também tem algo interessante a contar aos demais leitores — em qualquer parte do mundo, incluindo o Brasil —, envie sua sugestão.