Um pequeno fabricante de meio século atrás ensina aos atuais como organizar e fornecer conteúdo sobre seu passado
É comum se dizer que os brasileiros temos memória curta — e devemos ter mesmo, pela frequência com que reelegemos políticos que queríamos banir da vida pública pouco tempo antes, mas esse é um assunto para outros sites. Aqui no Best Cars, desde nossos primeiros anos (e isso é coisa do século passado), temos como um dos objetivos manter viva a memória do mundo do automóvel por meio de matérias, ao menos quinzenais, sobre carros que marcaram seu tempo ou que acumulam longa e interessante permanência no mercado.
Nessa tarefa é natural recorrermos a fontes variadas, como as centenas de revistas e livros em nossas estantes, materiais digitalizados que se encontram pela internet e, em muitos casos, os fabricantes e importadores. E é sobre eles que gostaria de falar neste Editorial.
A produção do simpático Romi-Isetta durou cinco anos e encerrou-se há 55: teria a empresa algum material de um assunto tão antigo para nossa matéria?
Para o artigo de Carros do Passado desta quinzena, decidimos há algum tempo revisitar a história do Isetta produzido na Europa e, notadamente, do Romi-Isetta fabricado no Brasil, o primeiro dos carros nacionais, cujo lançamento faz 60 anos nesta segunda, dia 5. Eu sabia que seria fácil encontrar material sobre a versão da BMW, produzida em mais de 160 mil exemplares, pois o fabricante mantém extenso material sobre sua história no site internacional de imprensa, como é praxe entre os alemães (aliás, até a versão germânica da Wikipédia costuma ser a mais detalhada sobre vários assuntos). Dito e feito: nem o discurso do chefe de desenvolvimento no evento de lançamento do carrinho escapou ao registro para a posteridade.

Esperava, por outro lado, ter certa dificuldade sobre o modelo original da Iso italiana, marca extinta em 1974 e que produziu apenas cerca de 1.000 unidades do carro. A escassez se confirmou, mas fui salvo por livros e alguns materiais na grande rede. A grande dúvida ficava sobre o brasileiro Romi-Isetta.
Embora a Indústrias Romi permaneça em atividade na fabricação de tornos, a produção do simpático automóvel limitou-se a 3.000 veículos em um período de cinco anos e encerrou-se há 55. Teria a empresa de Santa Bárbara d’Oeste, SP, algum material de um assunto tão antigo para ajudar na elaboração e, sobretudo, na ilustração da matéria?
Obtido o contato de Eugenio Chiti (filho de Carlos Chiti, um dos responsáveis pela versão brasileira do Isetta), descobri que a Romi mantém viva a história de seu único carro como poucos fabricantes no Brasil. Por meio do Centro de Documentação Histórica a empresa preserva um rico acervo de fotos, materiais e artigos publicados na imprensa a respeito do veículo, todo ele disponível via internet, com opção de envio de imagens em alta resolução a pedido, ao qual respondeu com rapidez. De fotos da linha de produção a variações de competição, passando pelas estratégias de divulgação, anúncios publicitários e imagens recentes de um modelo em perfeito estado — o charmoso exemplar vermelho de 1961 que abre a matéria —, havia conteúdo para ilustrar muito mais que o artigo que publicamos.
E como é nas outras marcas, aquelas que ainda fabricam carros?
Um descarte abre uma lacuna
O cuidado com a história entre os atuais fabricantes varia muito, mas em geral fica longe do capricho que a Romi demonstra. Há quem mantenha um departamento de arquivos bem organizado, caso da Volkswagen. No ano passado pedi-lhes ajuda para ilustrar a matéria de história do Passat e para outros dois trabalhos, um sobre Fusca e outro de Kombi, que desenvolvi na mídia impressa, e os resultados foram muito bons: recebi farto conteúdo fotográfico com a devida identificação de época e/ou assunto e algum material de informação, que nem era tão necessário (dispomos de boas fontes para essa parte).
Infelizmente, o mesmo não se confirmou em outro fabricante a que recorri para um dos artigos recentes da seção. Embora os carros abordados tivessem grande relevância em sua história, o material que recebi após quase 30 dias de espera mal ilustraria a primeira página. Foi preciso complementá-lo com ampla pesquisa de fotos de divulgação em revistas e de reproduções de catálogos e anúncios publicitários.
O ideal é oferecer um arquivo vasto e bem organizado de informações e fotos na internet, como é praxe mundo afora, mas exceção no Brasil
Em outro episódio, no ano passado, pedimos ajuda a outra marca para mais um daqueles trabalhos impressos, dessa vez sobre um modelo carismático que ficou em produção por quase 24 anos. Recebemos bom número de fotos, mas sem a devida organização: várias imagens não continham referências suficientes sobre o carro mostrado, mesmo aquelas de protótipos ou modelos do departamento de Estilo que não chegaram à produção. Consultada a assessoria de imprensa sobre tais fotos, não houve resposta. Tivemos de tirar as próprias conclusões com base em matérias de segredo que a imprensa publicava à época da fabricação dos carros.

Algumas vezes contato fabricantes no exterior para uma necessidade específica e, de modo geral, a atenção é impecável. Lembro que para a matéria de 20 anos do Ford Mondeo, em 2013, muito pesquisei e não encontrei fotos oficiais de uma versão de conceito dos anos 90, a Profile, mostrada até mesmo no Salão de São Paulo. Pelo site de imprensa enviei mensagem a um assessor nos Estados Unidos e, em menos de 24 horas, as imagens estavam na caixa postal. Quanta eficácia em atender a um jornalista de outro país sobre um assunto secundário de muito tempo atrás.
Mais que dispor de acervo interno, porém, o ideal é oferecer um arquivo vasto e bem organizado de informações e fotos na internet (podendo ser em área restrita a jornalistas cadastrados), como é praxe nos fabricantes mundo afora. Afinal, muitas vezes se tem urgência para obter um dado ou foto, como ao publicar uma notícia, e não há tempo hábil para aguardar a pesquisa do pessoal de acervo. No entanto, no Brasil isso é exceção: salvo engano, a Fiat é a única a manter em seu site de imprensa centenas de fotos e alguns dados (como volumes de produção) de todos os carros fabricados em seus 40 anos de atividade. Na maioria das marcas o interesse pelo passado está próximo de zero.
Compreendo as dificuldades que isso envolve em uma grande empresa. Afinal, a história desenvolve-se a cada dia e, nos períodos anteriores à internet ou mesmo ao uso generalizado de computadores, é de se imaginar que tenha ido para a lixeira muito material útil — se não naquele momento, para os estudiosos do passado que viriam mais tarde. Como observou um assessor de imprensa da VW quando falávamos sobre essa questão, o acervo de hoje depende da relevância que várias pessoas atribuíram, ou não, ao assunto ontem: um só (ir)responsável pelo departamento que tenha mandado descartar, digamos, cinco anos de conteúdo a seu tempo causará uma grande lacuna na história da empresa.
Mesmo diante desse desafio, entendo que cabe a todo fabricante buscar reparar tais falhas, organizar um acervo tão amplo quanto possível e oferecê-lo online. Se assim é feito com êxito na maioria das marcas pelo mundo afora, não há como se conformar com a “memória curta” atribuída aos brasileiros e deixar que o passado e o presente sejam esquecidos no futuro. Que o exemplo da Romi com seu pioneiro veículo seja seguido pelos que vieram fabricar automóveis depois dela.
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