Não se consegue comprar um modelo com todos os opcionais; assim, o fabricante não sabe se existe demanda
Uma coisa que sempre me incomodou no mercado de automóveis é que jamais encontramos carros com os opcionais que queremos, muito menos um que tenha todos os disponíveis no catálogo do fabricante. Em 1986, quis comprar uma Elba CS com computador de bordo e sistema de verificação e controle, itens nos quais a Fiat foi inovadora no mercado. Como diria Mário de Andrade, “Jacaré encontrou? Não! Nem eu”.
Dou um doce a quem me provar que conseguiu comprar um carro com todos os opcionais ou, pelo menos, com todos os itens escolhidos. Carro com pacote fechado — estratégia cada vez mais comum — não vale.
Não há quem tenha feito um curso básico de Marketing que não tenha ouvido falar no caso da cerveja e da fralda como sendo a maior sacada de um mago do Walmart. Nele, mostrou-se que as vendas de fraldas e de cerveja tinha altíssima correlação e buscou-se uma explicação, a meu ver, bizarra. Alegou-se que as esposas ligavam para os maridos no escritório e pediam para, a caminho de casa, passar por uma loja e comprar fraldas. O marido aproveitava para adquirir cerveja para o fim de semana.
Ninguém imagina um carro com ar-condicionado sem controle elétrico de vidros: surge uma hierarquia de opcionais e os pacotes então são fechados

Penso que bem poderia ser o contrário, o marido ligando para casa e pedindo à esposa que, se fosse comprar fraldas, aproveitasse e comprasse cerveja. O fato é que quem descobriu isso não tinha nada de mago, somente um computador poderoso que calculou a correlação entre todos os pares possíveis de produtos — cálculo este que, considerando os mais de 50 mil itens do estoque da rede, tomou mais de uma semana.
Mas, como os especialistas em Marketing também investem em marketing pessoal, vendeu-se a ideia de que haveria um mago por trás de um trabalho braçal transferido para um bom computador. Aí, começou uma febre de siglas, passando pelo CRM (Customer Relationship Management ou gerência do relacionamento com o cliente), BI (Business Inteligence ou inteligência de negócio), que nos interessam nesta matéria.
Já há mais de 20 anos que grandes grupos brasileiros, especialmente do mercado financeiro, investem em CRM. De acordo com o histórico de produtos adquiridos, oferecem-se produtos mais aderentes ao seu perfil. Nos sites das grandes lojas, o tempo todo nos deparamos com “as pessoas que viram o produto X também viram os produtos X1, X2… Xn”, todos de uma mesma categoria, o que se apurou usando a mesma técnica do “tudo sobre tudo” empregada no caso das fraldas e da cerveja.
Naturalmente essa técnica não nasceu com os computadores, mas refinou-se com seu advento. Esse pensamento de administração por categorias emprega-se desde sempre no mercado de automóveis, sobretudo no que tange aos opcionais. Ninguém imagina um carro com ar-condicionado sem controle elétrico de vidros. Estabelece-se uma hierarquia, talvez uma taxonomia, de opcionais e os pacotes então são fechados para respeitar o lote mínimo e, então, postos na linha de produção.
O problema dos pacotes
Lote mínimo é o que garante a menor margem que interessa à empresa. Abaixo dele, os custos fixos impedem que o retorno seja atraente. Lembro-me de quando encontrei meu vizinho que trabalhava na General Motors e ele me disse: “Até que enfim câmbio automático e ar-condicionado já têm volume para serem linhas próprias”. Isso significava que, na espinha de peixe que constitui o arranjo produtivo da indústria, esses dois opcionais eram montados como exceção, ou seja, só quando o número de pedidos exigisse. Provavelmente, quem foi para a exceção foram os carros com câmbio manual e sem ar-condicionado.
É justamente aí que mora o maior obstáculo para que se implante um sistema fidedigno de CRM na indústria de automóveis. Os pacotes enviesam a amostra e jamais se sabe a priori qual era o real desejo do consumidor. Imagine que você chegue numa concessionária e diga: “Eu quero tudo”, ou seja, um carro com todos os opcionais do catálogo. Como um carro assim nunca atingiu o lote mínimo, nunca foi para a linha, portanto não existe na concessionária e você acaba levando o que tem. Só que, como não havia na loja e você não levou, a fábrica não soube qual era seu desejo e o cachorro começou a correr atrás do rabo.
O importado representa um risco maior, pois não dá para vendê-lo em outro país; com isso, a importadora torna-se ainda mais minimalista em modelos e acessórios

Para quebrar esse ciclo nada virtuoso e muito vicioso é que os sites das fabricantes de automóveis têm um “Monte seu carro”, que equivale, mais ou menos, ao “As pessoas que viram o produto X…” que descrevi acima para estabelecer uma administração por categoria.
Aí, entra um complicador ainda mais sério, o comércio internacional. O produto importado representa, via de regra, um risco maior. É que, se encalhar, não dá para simplesmente reexportar e vendê-lo em outro país. Ele já foi tropicalizado e adaptado à nossa legislação. Aí a importadora torna-se ainda mais minimalista, tanto em número de modelos importados quanto em número de acessórios oferecidos, ou seja, não dá para montar um BI capaz de antever o que o consumidor realmente quer, voltando-se às pesquisas de mercado com os vieses inerentes às opiniões.
Como diria uma professora de Marketing amiga minha, “Se eu perguntar ao público se gostaria de ter um Bentley, provavelmente a resposta será massivamente sim, mas isso não significa que haja mercado para o produto”.
E, para coroar as dificuldades mercadológicas da indústria de automóveis, temos o fato de que a frequência com que o consumidor compra carros é muito pequena e o mercado dos usados, visto que tem oferta muito mais diversificada, ajuda a obscurecer as fontes de informação com que o marqueteiro da indústria pode contar. Comprar carro não é como comprar iogurte, cujo sabor e a marca podemos variar cotidianamente e não há mercado de usados.
Aí, empresas como a Nielsen e a GFK Indicator podem realmente prover informações fidedignas dos quatro Ps (praça, produto, preço e promoção). A nós, consumidores de automóveis, resta aceitar o que está na loja, seja em cor, seja em componentes. Ainda não inventaram o X-tudo dos carros.
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