Fotos: divulgação
Espécies em extinção: Falcon (à esquerda) e Commodore estão em fim de produção, pois as fábricas australianas serão encerradas
Se essa história se mostra negativa para as fábricas, os consumidores ganham em opções e pela enorme concorrência entre as marcas. E, se o 1,1 milhão de veículos por ano não parece muito diante dos números brasileiros, a Austrália tem 18 milhões de veículos registrados para uma população de 23,5 milhões — ou seja, há mais carros do que pessoas com idade mínima para dirigir, a qual varia de estado para estado, mas em geral é de 18 anos. Com 16 já se pode dirigir como aprendiz (learner), mantendo-se um “L” no para-brisa e no vidro traseiro, acompanhado de um passageiro com habilitação completa (full license), que só é obtida com quatro anos de carta.
Parece fácil? Não é. No estado de Victoria só se pode iniciar o processo de habilitação após acumular 120 horas de direção como aprendiz. Após adquirir a permissão para dirigir, o novato terá restrições durante quatro anos, as quais variam de estado para estado. Em Victoria ele deve pendurar um “P” (vermelho no primeiro ano e verde nos outros três) de probationary (probatório), não pode levar reboque ou mais de um passageiro e há restrições de veículos: se anterior a 2010, não pode ter turbo, motor V8 ou alto desempenho; se posterior, não pode ter mais de 130 kW (177 cv) por tonelada, medida intencional para incluir os Commodores e Falcons.
Segurança viária é assunto sério na Austrália. Carros fabricados desde 2010 têm controle eletrônico de estabilidade e bolsas infláveis de cortina de série, há muitas campanhas sobre segurança no trânsito e orientação de compra de carros com melhores notas em testes de colisão. Em Victoria a polícia é rigorosa com os limites de velocidade: 3 km/h de excesso já acarretam multa; 20% acima do permitido, apreende-se o carro e você vai para julgamento. E nunca se sabe se há polícia na via ou não, pois são muitos os undercover, policiais em carros comuns, com câmera no painel para ler as placas e pequenas antenas extras.
Proteção frontal contra os cangurus, comum em caminhões e usada também em carros, e tapete para defender o painel contra o sol intenso
Os carros de polícia mais comuns são Falcon turbo e Commodore V8, para nenhum engraçadinho tentar fugir… E a lei vale para todos. Em 2011 o piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton saiu mais forte de um sinal com seu Mercedes AMG, ao ir do Grande Prêmio para o hotel: um policial o parou, multou, apreendeu o carro e o encaminhou a julgamento. Um amigo com um Commodore V8 de 400 cv, às três horas da manhã, decidiu deixar um Falcon para trás em saída de farol. Para seu azar, o policial em carro comum gravou 130 km/h onde eram permitidos 60… Carro apreendido por um mês — e era da empresa —, perda da habilitação por 12 meses e julgamento marcado para a manhã seguinte, com chance de pegar seis meses de prisão. Não é à toa que até os ingleses, famosos por serem “certinhos”, reclamam do estado de Victoria.
A lei vale para todos: quando Lewis Hamilton saiu forte com seu Mercedes AMG, um policial o multou, apreendeu o carro e o levou a julgamento
Por outro lado, no estado Northern Territory há rodovias sem limites de velocidade. São retas planas no meio do deserto, onde se chegou à conclusão de que é mais perigoso dirigir a 130 km/h (limite vigente de 2007 a 2014) com risco de dormir ao volante do que andar atento a velocidade mais alta. De fato, depois da mudança o número de mortes até caiu — o único problema são os cangurus.
Sim, o canguru está por todas as partes — mesmo dentro de Melbourne, em alguns parques, você consegue vê-los. Apesar de simpáticos, eles chegam a 1,8 metro e 90 kg quando adultos, ou seja, não é boa ideia dar de cara com um desses a 100 km/h numa viagem noturna (eles se alimentam à noite). Como seu modo de fugir do carro é pulando, corre-se o risco de que ele caia no meio do para-brisa, o que pode até matar os ocupantes. Por conta disso os fabricantes locais têm um teste específico para atropelamento de canguru e é comum ver caminhões, e até carros comuns, com uma barra frontal desenhada para direcionar o canguru para baixo.
Os bondes têm seus inconvenientes: andam pelo meio das ruas, param o trânsito e seus trilhos são muito escorregadios quando molhados
A Austrália em geral tem condições favoráveis ao uso de bicicletas, mesmo que não tanto quanto certas cidades europeias. Os motoristas respeitam o ciclista, há muitas ciclovias e, mesmo em estradas sem acostamento, veem-se nos fins de semana ciclistas trafegando sem problemas. Sem capacete ou farol, porém, o ciclista leva multa salgada. Um risco para eles são os trilhos dos bondes, mais escorregadios que gelo quando molhados. Os bondes também podem incomodar aos motoristas, pois são lentos e causam um estrondo cada vez que passam por junções de dilatação dos trilhos. Em geral eles andam no meio da rua e, quando param em algum ponto, não podem encostar na calçada, de modo que bloqueiam a faixa do meio e a lateral (os carros são obrigados a parar).
Motos aqui devem circular atrás dos carros, sem usar os “corredores” do trânsito, e em Victoria podem estacionar em calçadas. Em geral só se veem modelos de grande cilindrada, pois não são usadas para transporte: até entregas de pizzas são feitas em carros. Nas rodovias não é cobrado pedágio, mas em algumas vias expressas das cidades, sim, desde que haja trajetos alternativos sem cobrança.
Embora a visão da Austrália no exterior seja de um país muito quente, aqui há até estações de esqui a duas horas de Melbourne. Ao nível do mar não cai neve, mas faz frio: no inverno, cerca de 2°C de manhã e até 12°C durante o dia, e mesmo no verão as noites caem para 16-18°C. Mas quando o vento se inverte e vem do norte, do deserto “Outback”, as temperaturas passam dos 45°C durante o dia. A radiação solar é muito alta, razão pela qual não se veem muitos conversíveis, mas em Queensland — região mais tropical , com praias lindas — eles se tornam comuns. Também pelos sol, muitos carros usam um tapete no painel para que o plástico não rache.
O Registration, uma licença anual, pode ser cancelado por certos períodos e não é exigido em carros de competição levados em carreta
Concessionária? Não precisa
Na hora de comprar um carro o australiano pode fazer um teste de direção, em geral sozinho, mesmo em carro usado ou em modelos de preço um pouco mais alto. Ao comprar um usado deve-se fazer o Roadworthy Certificate (RWC), laudo de um mecânico credenciado que atesta a segurança e a funcionalidade do carro. Até limpadores de para-brisa e molas da tampa do porta-malas são checados, assim como a capacidade de frenagem.
Já o Registration ou Rego, que equivale ao licenciamento ou o IPVA brasileiro, tem diferentes regras por estado. Em Queensland está atrelado ao número de cilindros e ao valor do carro e é obrigatório seguro contra terceiros. Já em Victoria o preço é fixo, cerca de AUD 700 (R$ 1.785) por ano, mas o dono não precisa pagar se não o dirigir nem deixá-lo na rua. Por exemplo, ao viajar por dois meses com garagem própria, pode-se ficar isento do Rego pelo período. O mesmo vale para um carro usado só em competição, desde que transportado em carreta — e rebocá-la é mais uma razão para ter um potente sedã de tração traseira.
E quanto custam os carros na Austrália? De modo geral os preços ficam pouco abaixo aos do Brasil, só que representam muito menos para o bolso do consumidor. Como exemplos, em valores arredondados, o carro mais barato (Holden Barina Spark 1,2-litro) custa AUD 12.900 (R$ 33 mil), um Honda Jazz (nosso Fit) 1,5 manual, AUD 15.000 (R$ 38.250); um Corolla 1,8 com câmbio CVT parte de AUD 23.000 (R$ 58.650); um Volkswagen Golf Comfortline 1,4 turbo com câmbio DSG custa AUD 28.000 (R$ 71,4 mil); um Ford Falcon XR6 FG-X automático de 265 cv sai por AUD 38.290 (R$ 97,6 mil); e um BMW M4 cupê automatizado, por AUD 149.900 (R$ 382,2 mil). Lembre-se dos itens de segurança de série, que valem até para o Barina.
Aqui não é obrigatório fazer as revisões em concessionária para manter a garantia de fábrica, em geral de cinco anos (sete em algumas marcas): podem ser feitas nos prazos recomendados no manual em oficina independente, que carimba o manual com seu registro e assina. A fábrica é obrigada a conceder a garantia em caso de problema. Claro que não se vê o “amigão” mecânico assinando manual sem fazer o serviço. O dia a dia do motorista mostra outras curiosidades. Ao estacionar em determinadas ruas com limite de tempo, com ou sem cobrança, um fiscal passa marcando com um giz o contato do pneu com o chão: se o carro estiver com a marca alinhada ao pneu após o tempo determinado, multa. Contudo, se você mora em rua com limite de tempo ou parquímetro, recebe um cartão para pendurar no painel e estacionar ali pelo tempo que quiser. Não é justo?
As campvans, furgões transformados em casas ambulantes, são comuns na Austrália; alguns ainda usam nossa velha e boa Kombi
O preço da gasolina (mas não do LPG e do diesel) varia todos os dias e chega a aumentar AUD 0,20 (R$ 0,45) na mesma data em todos os postos. Há três tipos de gasolina: de 91, 95 e 98 octanas RON, todas sem álcool. Como a maioria abastece com a mais barata de 91, no trânsito em dias quentes ouvem-se muitos carros detonando. Alguns postos também vendem a E10 (gasolina 91 RON com 10% de álcool) e há uma rede com gasolina 100 RON (98 RON com 10% de álcool), além de E85 (85% de álcool). Carros a diesel não são comuns, mas tem havido crescimento; o preço por litro é sempre parecido ao da gasolina.
As estações de trem que ficam nos bairros possuem estacionamento de graça, um incentivo ao uso do transporte público, até porque o estacionamento é muito caro nos centros. Na estrada é comum se verem campvans, furgões transformados em casas ambulantes, ou mesmo as caravans, casas em forma de trailer — mais um motivo para o australiano gostar de capacidade de reboque. Além de haver campings para todo lado, é bem comum as pessoas dormirem em parques ou praias, onde encontram churrasqueira pública e banheiros. Ainda rodam muitas Kombis com esse uso, até com câmbio automático. No caso das caravans maiores, veem-se várias Fords F-250 brasileiras com motor V8 diesel de 7,3 litros.
Enfim, o dizer de que “a Austrália é o Brasil que deu certo” vai muito além da segurança, do comportamento mais justo e da qualidade de vida. Para os amantes de carros é um mercado amplo, cheio de novidades e de certa forma bem acessível, sobretudo para os padrões brasileiros, diante do poder aquisitivo do trabalhador australiano. No entanto, para quem vem da terra do samba, as necessidades de adaptação são bem maiores que apenas a de dirigir do lado contrário.
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Felipe Hoffmann, leitor do Best Cars desde 2000 e que vive há cinco anos em Melbourne, trouxe aos leitores sua experiência sobre a Austrália. Se você também tem algo interessante a contar — em qualquer parte do mundo, incluindo o Brasil —, envie sua sugestão.