Suspensão bem elaborada, proteção para alagamentos e outras qualidades fazem uma picape valente para aventuras
Texto e fotos: Felipe Hoffmann
Depois de duas semanas alternando-se entre os usos urbano e rodoviário, a Nissan Frontier LE do teste Um Mês ao Volante caiu na lama: viajou até o litoral norte de São Paulo para enfrentar as mesmas trilhas que fizemos com a Fiat Toro Diesel 4×4. Embora as picapes não sejam concorrentes diretas, era uma boa oportunidade de comparar suas soluções técnicas: na Frontier, carroceria sobre chassi, eixo traseiro rígido e tração 4×4 temporária com reduzida; na Toro, construção monobloco, suspensão traseira independente e tração integral sob demanda.
Em uma análise prévia, tudo indicava que a Frontier não faria feio no trecho de trilha, caso dos componentes vitais no compartimento do motor em posições elevadas: admissão de ar na frente junto ao capô, alternador, filtro de água do diesel, reservatório do fluido de freio, módulo do ABS e bateria. Restava ver como a suspensão traseira com molas helicoidais — solução peculiar em picapes da categoria — se comportaria em terrenos difíceis.
A tração também indicava que a Frontier não teria qualquer dificuldade na trilha. O sistema adotado pela Nissan é o famoso “feijão com arroz” no mundo dos 4×4: uma caixa de transferência conecta diretamente o eixo principal, no caso o traseiro, ao eixo dianteiro sem um diferencial entre eles. Isso garante que as rotações dos eixos dianteiro e traseiro serão sempre iguais, aumentando a capacidade de transpor atoleiros e obstáculos. Contudo, nesse tipo de sistema não se deve usar o modo 4×4 em asfalto, mesmo em dia de chuva, pois pode sobrecarregar e até quebrar a transmissão.
Os componentes mecânicos vitais da Frontier ficam em posições altas no cofre do motor, o que garante a travessia de trechos alagados sem problemas
De fato, com tração nas quatro rodas o carro melhora o comportamento dinâmico, sobretudo em picape, na qual é comum a roda traseira interna à curva perder tração. Em linha reta, tudo bem. O problema é que ao fazer curvas os eixos dianteiro e traseiro terão rotações diferentes, resultando em arrasto de pelo menos uma roda na manobra. Muitos clientes, às vezes mal informados pelo vendedor, acreditam que podem usar o 4×4 em situações como chuva e estrada sinuosa — e não podem. Entre as picapes médias, apenas a Volkswagen Amarok com caixa automática e as versões superiores da Mitsubishi L200 Triton Sport têm diferencial central, que permite manter a tração integral nessas condições.
Na trilha o modo 4×4 quase torna a Frontier um trator de esteira, mas há um calcanhar de Aquiles: se ficar em diagonal numa grande valeta, suspendendo a roda dianteira e sua diagonal traseira, os diferenciais dianteiro e traseiro compensarão a falta de torque nelas e o carro não sairá do lugar. Para sanar esse problema, algumas picapes permitem travar o diferencial traseiro, o que é oferecido pela Nissan em outros mercados, mas foi descartado na versão atual para o Brasil.
Em 4×4 foi impossível criar uma situação que pudesse encalhar a Frontier: mesmo em barrancos severos, a roda traseira não perdia contato com o solo
O sistema pode ser simulado pelo controle eletrônico de tração, que freia as rodas que estão girando em falso, mas notamos que sua atuação é limitada. Quando subíamos algum barranco para tirar peso da roda traseira, em 4×2, a roda que estava com menos peso girava em falso e o controle de tração não a freava o suficiente para que o torque fosse para a roda oposta.
Em modo 4×4 foi impossível criar alguma situação que pudesse encalhar a Frontier, em parte graças ao curso de suspensão que impressionou. Subimos barrancos ao ponto “acho que vai tombar” e, mesmo assim, a roda traseira (sobre a qual há menos peso) não perdia contato com o solo. A distensão e a compressão da suspensão traseira surpreenderam, deixando a caçamba no lado suspenso mais alta que nosso copiloto de 1,67 metro, enquanto no lado comprimido ela ficava em sua linha da cintura. Também ajudaram muito os pneus de uso misto, que agarravam plenamente ao solo.
Apesar da falta de bloqueio do diferencial traseiro, com 4×4 acionada a Frontier mostrou excelente capacidade de tração, mérito também dos bons pneus
Com o elevado torque do motor biturbo de 2,3 litros, a primeira marcha curta e a ajuda do conversor de torque da transmissão, de início achávamos inútil a opção de reduzida, mas encontramos a razão para seu uso nos trechos mais pesados. Em modo normal, o motorista vai pressionando o pedal até os turbos encherem e passar o obstáculo, só que aí a Frontier dá um pulo, pois tanto o torque quanto a velocidade ficam muito altos. Isso obriga o motorista a aliviar o pé e perder o embalo. Em reduzida, a picape vence os obstáculos sem ter de ganhar pressão de turbo e em velocidade mais baixa, sendo mais fácil dosar o comando do acelerador.
Até debaixo d’água
A Frontier também encarou sem sufoco os riachos que atravessamos com a Toro, inclusive o trecho em que a Fiat “bebeu” água e parou. Como dito, tudo que é vital no compartimento do motor está em posição elevada. Também forçamos um pouco a velocidade com a água batendo no para-choque, criando uma enorme onda à frente da picape, situação que pode deslocar o para-choque ou mesmo infiltrar água nos faróis de neblina, mas nada de errado aconteceu.
Picapes como a Frontier são preparadas até para mergulhar o compartimento do motor, caso seja instalada admissão de ar elevada (snorkel), mas o principal motivo de os fabricantes limitarem a profundidade está na altura da parte mais baixa da porta: o problema é a entrada de água dentro da cabine, onde diversos módulos eletrônicos estão montados. Tais módulos não costumam ser preparados para ter contato com água e não há lugar menos provável para se ter água que a cabine.
Também testamos o assistente de descida, que mantém a picape na velocidade por volta de 5 km/h em descidas íngremes, mesmo irregulares, usando os freios sem o motorista tocar em qualquer pedal. Diferente de outras marcas, o sistema da Nissan não altera a velocidade programada caso o motorista acelere: a Frontier ganha velocidade, mas volta a 5 km/h caso pare de acelerar.
Levamos a torção da carroceria ao limite, causando a distensão da suspensão de duas rodas opostas, e mesmo assim os pneus não perderam contato com o solo
Uma curiosidade técnica: ao calibrar os pneus, notamos que havia mais uma etiqueta na porta do motorista com a tara (2.115 kg), a capacidade de carga (1.000 kg) e a capacidade máxima de tração (6.000 kg). Essa última significa a capacidade máxima combinada que a Frontier pode movimentar, ou seja, tara + carga + reboque. Esse valor de reboque de quase 3 toneladas — ou mais, caso a caçamba esteja vazia — pode parecer referente à resistência estrutural do chassi, mas os “fusíveis” para isso são os sistemas de freios (não tanto nesse caso, pois reboques tão pesados têm freios próprios) e de arrefecimento.
No caso da Frontier, o chassi deve dar conta facilmente da tração, mas imagine o esforço ao motor com uma massa total combinada de seis toneladas (quase três vezes o peso da picape vazia) ladeira acima. Além disso, reboques do tipo trailer são praticamente uma casa, com área de arrasto aerodinâmico enorme. Com certeza o motorista precisará usar o motor em potência máxima (190 cv) na maior parte do tempo, em velocidade relativamente baixa e com baixo fluxo de ar pelo radiador.
Usando uma aproximação, a quantidade de calor produzida para o sistema de arrefecimento equivale à potência produzida no virabrequim, ou seja, 190 cv ou 140.000 W — mais de 25 chuveiros elétricos! Em geral, carros de passeio só transferem essa quantidade de calor em velocidades altíssimas, perto da máxima. Mesmo em uma arrancada a pleno, em que o fluxo de ar é baixo, não há tempo para que o motor e o sistema de arrefecimento se aqueçam tão rapidamente por causa da capacidade térmica (representada como uma enorme inércia térmica: leva tempo para esquentar e para esfriar).
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