Ligar bilhões de coisas novas à rede móvel, via 5G, revolucionará a forma pela qual o mundo funciona
Quando D. Pedro II concedeu a Visconde de Mauá o primeiro cabo telegráfico submarino para a Europa, o Estado não investiu diretamente, mas garantiu o rendimento de 6% ao ano por 20 anos. Passada a Guerra de Secessão (1861-1865), ainda com Abraham Lincoln vivo, o governo dos Estados Unidos passou a dar dez milhas de terra adjacentes às estradas de ferro a empreendedores, como forma de pagar a mão de obra dos operários, futuros agricultores, garantindo a carga a transportar. Nasceram cidades e os conflitos com os índios eram mitigados pelo exército. Em quilômetros, as ferrovias passaram dos estagnados 54.000 até 1860 para o máximo de 500.000 em 1914.
Outro dia, encontrei um estudante de Engenharia Mecânica, a quem havia sugerido um bem-sucedido tema para o Trabalho de Conclusão de Curso. Ele perguntou se sou progressista ou conservador. Respondi: “Apenas tenho bom-senso”. Tal divisão não é possível porque não creio que itens como automóveis e internet, frutos do progresso humano, direta ou indiretamente financiados pelo Estado, não sejam aplaudidos pelos que se dizem conservadores. Valores promovem progresso e progresso altera valores; assim, a dicotomia é incoerente em essência.
Comparada à atual, a tecnologia 5G pode transmitir 15 mil vezes mais informações ao mesmo tempo e a velocidade pode crescer até 70 vezes

Ao citar a internet, o rapaz ficou surpreso por não saber que ela veio da necessidade de as Forças Armadas dos Estados Unidos protegerem seus dados, evitando que os sistemas parassem em caso de ataque nuclear durante a Guerra Fria. Os protocolos foram desenvolvidos em parceria com universidades estaduais e fez-se uma licitação, vencida pela Bolt Beranek and Newman (BBN), para conectar a rede às empresas de telefonia. No fim dos anos 1980, criou-se a Milnet para uso militar e a internet ficou a cargo da National Science Foundation, do governo norte-americano, para uso pelas universidades. Em 1991 a coisa passou para a iniciativa privada, mas o controle de protocolos e endereçamento continua nas mãos do Estado até hoje, via Autoridade para Administração de Números Internet (Iana, da sigla em inglês).
No Brasil, até 2005, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (Fapesp) recebia os blocos IP (Internet Protocol) da Iana e os distribuía, até que o Comitê Gestor da Internet assumisse essa tarefa, criando o NIC.br. A União Europeia já tentou tirar esse poder das mãos dos Estados Unidos, criando a Euronet como administradora de números e protocolos para o continente, com tradução automática para os usados atualmente. A China não aceita que a administração e atribuição de endereços continue com os EUA e advoga que essa tarefa deve ser transparente, de código aberto, a cargo da ONU, tornando-se transnacional, não uma outorga de um só país.
Até agora, falamos da rede fixa. Na móvel, o caminho foi outro. Ainda na Segunda Guerra Mundial, foram os saltos de frequência, capazes de transmitir dados em ambientes fechados e em baixa velocidade. Depois veio a sequência direta, eliminando virtualmente as restrições de velocidade, que passaram a ser limitadas somente pela frequência. Ao mesmo tempo, criaram-se três protocolos de localização (roaming): TDMA (Time Division Multiple Access), que deu origem à GSM (Global System Mobile) obrigatória na Europa, e à CDMA (Code Division Multiple Access), muito usada pela Motorola e em wi-fi.
Internet das coisas
Hoje, o protocolo de roaming para redes móveis comerciais é basicamente o GSM, que usa chips para conectar aparelhos de quaisquer marcas e modelos à rede, mantendo número e pacotes contratados. Isso também permite o intercâmbio de cientes entre operadoras sem trocar o aparelho. O que muda são as frequências de uso, bem como a capacidade de escolher o caminho mais desimpedido para os dados, tudo visando integrar aparelhos diretamente à internet via rede móvel, sem a intermediação de um wi-fi local. É justamente na determinação das faixas de frequências que entra o Estado — mais ou menos como as regras de trânsito para automóveis.
E o que 5G tem a ver com isso? Tudo, visto que ligando bilhões de coisas novas diretamente à rede móvel via 5G, a demanda por endereços IP vai explodir. Na medida em que haja uma transição para a ONU, o alvo da disputa é o poder passar a ser de quem dominar os meios de transmissão e a transmissão de quinta geração. A tecnologia 5G tem uma capacidade de transmissão simultânea de informações mais de 15 mil vezes maior que a atual, enquanto a velocidade pode crescer até 70 vezes, o que revolucionará a forma pela qual o mundo funciona, mormente, na internet das coisas. Não são somente as casas inteligentes, mas a capacidade de eliminação de centrais de controle embarcadas, substituindo-se pela atuação externa. Se hoje já soltamos rojões pelos métodos drive by wire e fly by wire, imaginar que isso possa vir de fora do veículo é inimaginável.
Para a frenagem de emergência, com 5G, a detecção pode ser feita pelas câmaras dos cruzamentos e o comando para frear ser enviado ao carro

Tomemos o sistema de frenagem autônoma de emergência como exemplo. Hoje ele funciona pela detecção de distância por radar Dopler, combinada ou não com sensores de infravermelho, que indicam tratar-se de ser vivo à frente, tudo baseado em dispositivos a bordo. Com 5G, a detecção pode ser feita pelas câmaras dos cruzamentos e o comando para frear ser enviado ao carro, ficando o equipamento embarcado como segunda ou terceira opção. Mais importante é a capacidade de os carros conversarem entre si, indicando suas intenções aos circundantes. Mesmo que haja um “pau-velho” emparelhado, o veículo conectado pode transmitir o que se passa a uma central com muito maior capacidade de computação que antecipa, por inteligência artificial, o que pode ocorrer.
Só que tudo isso não acontece de um momento para o outro. É preciso implantar uma infraestrutura e quem chegar primeiro leva o prêmio todo — não há lugar para concorrência nesse mercado. É o monopólio natural por excelência. Não se trata, portanto, de uma guerra calcada no que já existe, porém, na antecipação do que pode acontecer. É uma guerra pela promessa, não pelo botim. O troféu maior é a mobilidade urbana baseada em automóveis autônomos, porque trens e ônibus são muito caros e não possuem capilaridade, precisando de lotação para serem economicamente viáveis. Carros autônomos prometem ser mais racionais e a tecnologia 5G, apoiada em regras determinadas pelo Estado, é a aposta para dominar os caminhos urbanos do futuro.
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Ilustrações: divulgação Audi e Mercedes-Benz