Nossas Forças Armadas devem especificar suas necessidades e pôr o desafio a cargo de empresas brasileiras
A empresa em que meu pai trabalhava teve um carro raríssimo: um jipe DKW-Vemag Candango de capota dura. A meu ver, ele tinha inúmeras vantagens sobre o Jeep Willys: era mais estável graças à suspensão independente nas quatro rodas e à tração 4×4 permanente, infinitamente mais econômico que o concorrente com seu motor antediluviano, mais macio e confortável, entre outras qualidades.
O modelo foi oferecido ao Exército brasileiro, que o rejeitou prontamente, apesar de o alemão ter adotado o similar produzido lá sob o nome Munga. Preferiu-se comprar o do concorrente estrangeiro, por pior que fosse, por mais que a Willys-Overland estivesse em estado pré-falimentar no país de origem. Ainda que o Candango fosse produzido sob licença da Auto Union alemã, a Vemag era uma empresa nacional e, sem dúvida, teria ido mais longe se o Estado adquirisse seus veículos — o que jamais fez, seja para as polícias, seja para as Forças Armadas, sequer para uso oficial. Talvez não se evitasse sua absorção por uma empresa estrangeira (Volkswagen), mas, sem dúvida, seria por preço maior e legado muito mais duradouro.
Contar com carros nacionais para as mais diversas condições, blindados ou não, é imprescindível para nossa defesa e o atendimento do povo nos mais inóspitos rincões

Não há um dia em que eu não diga que o brasileiro não se conhece. Não temos a menor noção de nosso tamanho em âmbito geográfico, mercadológico e econômico. Temos ainda menos noção de que é a soma desses conhecimentos que permite antever nossa importância na geopolítica. Quantos de nós sabemos que a distância entre São Paulo e Belém do Pará é a mesma que de Paris a Moscou? São ínfimos os que sabem que temos 17 mil quilômetros de fronteira terrestre com 13 países, números igualados somente pela Rússia, maior país do planeta. Há ainda 9.000 km de costa, somando-se 25.000 km a vigiar.
Isso implica em que contar com carros nacionais para as mais diversas condições, blindados ou não, é imprescindível para nossa defesa, até para nosso poder de persuasão. Quando me refiro à defesa, não falo necessariamente em guerra ou ameaça externa, mas sem a deixar de lado. Refiro-me ao atendimento de nosso povo nos mais inóspitos rincões de nosso território.
Por cruel que possa parecer, o desenvolvimento autônomo de equipamento militar impulsiona fortemente a geração local de tecnologia. Para isso, criaram-se o Instituto Militar de Engenharia (IME), no Rio de Janeiro, e o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, SP. Esses institutos contribuíram fortemente para desenvolverem-se soluções tecnológicas concorrentes das adotadas pelas empresas de automóveis em âmbito mundial.
Já tivemos essa noção nos tempos da Engesa e de Gurgel, quando nossas Forças Armadas, como deve acontecer em qualquer país desenvolvido, especificavam suas necessidades e punham o desafio a cargo de empresas nacionais, induzindo a avanços que, fatalmente, se espalhariam pelo mercado civil. Poderíamos ter mantido isso com a Troller, hoje em mãos da Ford, desde que houvesse o mínimo interesse do Estado em manter a produção de veículos estratégicos nas mãos da indústria nacional. Resta-nos a Agrale com seu Marruá e alguns modelos de caminhões militares.
Protecionismo e dependência
Alguns leitores podem dizer que sou contraditório, haja vista que repudio o protecionismo e defendo que temos de ser competitivos para nos manter no mercado. Ocorre que forças armadas bem equipadas fazem parte da competitividade. Pode ser que haja veículos militares muito mais modernos do que somos capazes de fabricar hoje, só que eles criam uma dependência politicamente administrada em peças de reposição, cuja contestação foi o motivo do sucesso dos blindados Engesa para consumo próprio e exportação.
Os produtores de equipamento bélico aliam-se a seus próprios governos, pois a estratégia para impedir que os compradores se voltem contra os produtores é usar o máximo possível de componentes específicos em seus projetos. Dessa forma, basta um embargo comercial para que o comprador perca a capacidade bélica por falta de peças. A Engesa fez justamente o oposto.
Os que advogam o mercado soberano não levam em conta a fragilização da nação: ao importar todo o material de defesa, põe-se à mercê de aliados para a manutenção

Como o Brasil não tinha inimigos e um oceano o separava dos compradores mais assíduos, ela montou seus carros de combate com o máximo possível de peças de mercado, desde conjuntos de freio até motores e armas embarcadas. Dessa forma, os compradores minimizavam a dependência. Eles mesmos escolhiam seus fornecedores, adquirindo sobressalentes dos vizinhos ou aliados dispostos a furar quaisquer bloqueios. Durante a Guerra Irã-Iraque, os dois lados compravam produtos brasileiros.
Os que advogam que o mercado deve ser soberano e ditar o portfólio da indústria não levam em consideração a fragilização da nação, que, importando absolutamente todo o material de defesa, põe-se à mercê de aliados, geralmente volúveis consoante sua política interna, para o fornecimento dos mais simples itens de manutenção. A dependência vai ainda mais longe, pela necessidade de treinamento para manter e operar o equipamento. Nacionalizando-se a produção, de preferência, da cadeia inteira de suprimentos, a autonomia é muito maior, enquanto a exportação de material bélico, que não incorre em dependência, cria aliados, clientes fiéis para um largo portfólio, como aconteceu com os países árabes.
Patrulhar nossas fronteiras é um desafio hercúleo, que não pode depender somente de automóveis, mas principalmente deles. Elas vão de avenidas que dividem cidades como Ponta Porã (MS) e Pedro Juan Cabalero (Paraguai), ou Santana do Livramento (RS) e Rivera (Uruguai), até matas fechadas como a Floresta Amazônica, passando por cenários como os do Pantanal, que requerem veículos de alta tecnologia funcional ou embarcada.
Exército, Marinha e Força Aérea dependem de veículos terrestres, mais uns que outros em quantidade, mas todos com a mesma intensidade. Assim, se quisermos restaurar nossa capacidade tecnológica, como pretendem muitos, será forçoso retomar o papel das Forças Armadas como gerador e difusor de tecnologia, visto que é essa uma de suas principais funções em tempos de paz que, esperamos, dure para sempre.
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