As fábricas de automóveis, como toda a cadeia de produção, têm de se adaptar às mudanças do perfil do consumidor
Em fevereiro de 2003, exatamente no dia em que morreu minha segunda cadela-guia, fui a Uberlândia (MG) para me encontrar com um colaborador, com quem iria numa Ford Ranger 2001 até Vilhena (RO). Naquele tempo, para passar de Campo Novo dos Parecis (MT) para o noroeste do Mato Grosso, tínhamos de atravessar a reserva dos Parecis, em meio a uma vegetação de transição entre o cerrado e a Floresta Amazônica. Sobre o rio Juruena havia uma ponte de troncos com mais de 1 metro de diâmetro cada, todos de madeira de lei, para aguentar as carretas de 27 toneladas cheias de soja que passavam por seu tabuleiro.
Paramos a picape e eu fiquei sentado na beira da ponte pensando que aquele rio de águas rápidas e cristalinas, depois de encontrar com o Teles Pires — que, por sua vez, era continuação do Rio Paranatinga —, formaria o Tapajós, um dos afluentes mais importantes do Amazonas, ainda em território paraense. Ponderei que a atividade humana era como a hidrografia de um país continental como o Brasil, em que cada bacia seria um setor, como se a Bacia Amazônica fosse o agronegócio, a Bacia do São Francisco representasse o de serviços, a Bacia do Prata fosse a indústria e o Rio Tietê, com seus afluentes, fosse a fabricação de automóveis.
A indústria analisa a servicificação dos carros: alguns modelos serão construídos para atender locadoras que os entregam a motoristas de transporte por aplicativo
Os termos a jusante, depois da indústria, e a montante, antes da indústria, cabem perfeitamente. Pensei também que o ser humano altera o curso dos rios, ora para lhes aumentar a vazão, ora para os represar, e talvez seja isso o que mais reflexos inconscientes causa na Natureza. Nesse caudal da atividade humana, o mercado representa as intervenções de curso, encurtando-o ou alongando-o.
Nesta semana, no “cachorródromo” perto de minha casa, estava conversando com um colaborador de uma empresa internacional produtora de bancos de automóveis, ônibus e aviões que, entre suas divisões, mantém a Recaro como linha de luxo. Ele comentou que a grande preocupação da indústria a montante da fabricação de automóveis era com a servicificação do produto, que requer um padrão diferente de estofamento. Os carros serão, em alguns modelos, construídos para atender locadoras que, por sua vez, os entregam a motoristas de transporte por aplicativo.
Automóveis feitos para serem alugados precisam ter bancos de fácil limpeza e de grande durabilidade, pois serão muito mais frequentados que num carro particular. De fato, num carro para uso individual, o banco do motorista é o primeiro a estragar. Nos anos 1990, por exemplo, quando trocar de carro não era tão frequente entre os taxistas, não raro se encontravam os bancos dianteiros em posição invertida, porque os mais frequentados eram o traseiro e o do motorista. A possibilidade dessa troca era até fator positivo do carro na escolha dos taxistas.
Isso não vale mais hoje. As fábricas de automóveis estão-se conscientizando da mudança de mercado e, por causa disso, toda a cadeia de produção a sua montante tem que se adaptar aos anseios do consumidor. Graças à servicificação, os carros passaram a ser usados muito mais horas por dia e a fadiga de materiais nos padrões tradicionais não é mais aceitável. Será só isso o que muda?
Serviços passam à indústria
As mudanças vão muito além. A interpretação dos dispositivos, entre eles os bancos, é que muda radicalmente. Ao mesmo tempo em que a fadiga de estofamento e molas tem que ser revista, a troca de revestimento precisa ser mais prática e barata. O mesmo profissional considerou que a reposição de capas, antes desenvolvida por tapeceiros microempresários, passa a ser um mercado para a indústria, a fim de compensar a perda de faturamento com carros novos. Não me admiraria se outros serviços, agora em mãos da indústria de reparação, passem à indústria a montante das fábricas de automóveis, concretando a barragem.
Provavelmente o trabalho de remoldagem de pneus, como já acontece com os de aviões, seja assumido pelos fabricantes. A seguir, a reciclagem de peças de plástico e mesmo o desmanche de carros tendem a concentrarem-se em fornecedoras de peças e dispositivos que, se não se assumirem pelas produtoras iniciais, ficarão nas mãos de empresas especializadas com abrangência mundial, também como já acontece com o mercado de aviação comercial.
Aviões seguem para desmanches — e as locadoras já cogitam em fazer isso, na medida em que a venda dos carros deixe de financiar a reposição da frota
Aviões pertencem a fundos de investimento que captam recursos para as lofts que arrendam aeronaves para as empresas de transporte, tanto de carga quanto de passageiros. Se não houver rapidez em relocar aeronaves, os fundos não têm o menor pudor para encaminhá-las para desmanche, em que cada rebite é aproveitado, se homologado pelo fabricante. A norte-americana ALS, por exemplo, gaba-se de já ter desmanchado mais de 10 mil aviões nos últimos 30 anos.
As locadoras de automóveis já cogitam em fazer isso, na medida em que a venda dos carros usados deixe de financiar significativamente a reposição da frota. Esse processo será acelerado por dois fatos. Primeiro, a crise na emissão de novas CNHs; segundo, pela resolução da Susep (Superintendência de Seguros Privados) permitindo usarem-se peças recuperadas ou genéricas.
No que tange ao mercado de automóveis, está-se construindo uma enorme represa. Os conservacionistas dirão que o meio-ambiente agradece porque o consumo de matérias-primas vai ficar mais restrito. Quem estiver abaixo da barragem (tapeceiros, vendedores de peças usadas, recauchutadores e outros, muitos deles clandestinos) vai ver o nível do rio baixar, se não secar de vez. Aquele tapeceiro, que vivia de reconstituir estofamento de bancos de vans escolares, vai achar muito ruim perder seu mercado para as capas sobressalentes fornecidas pelo fabricante de bancos, com a mesma qualidade das originais, mas as crianças e os proprietários das vans, que passarão a locatários, vão achar muito bom.
O mercado não está preocupado em agradar seus participantes: ele promove reassentamentos que mantêm sua rentabilidade e os indivíduos acabam por se adaptar. O fato é que tempos novos farão com que o rio deixe de correr para o mar, pelo menos, chegando lá como um fio d’água.
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