Carro e Estado: dá para divorciar?

Há quem defenda que, sem o Estado, a indústria teria menos encargos e mais incentivos para prosperar: será?

 

Um dia, indo para Campinas (SP) a bordo do meu muito saudoso Chevrolet Omega CD 3,0-litros, ao atravessar o trópico de Capricórnio, nas imediações de Jundiaí, meu motorista perguntou o que é um trópico. Expliquei e, em seguida, deu-se o seguinte diálogo:

— Lá vem o senhor com essa história de a Terra ser uma bola!

— E é.

— Quer dizer que, se eu for sempre em frente, vou parar no mesmo lugar?

— Perfeitamente, os aviões fazem isso o tempo todo.

— E como é que a gente olha para cima e não vê o outro lado?

— É que a gente não está dentro da bola, a gente fica na casca.

 

É inimaginável produzir bens com milhares de componentes cuja operação seja tão simples, que qualquer um possa usar — o carro é o símbolo dessa façanha

 

Sem saber, eu estava conversando com um terraplanista — termo que, aliás, não existia ou, pelo menos, não se divulgava. As pessoas acreditavam na Terra plana em segredo, até que algum evento iconoclasta os pôs à luz. O mesmo tem acontecido com o anarcocapitalismo, que sempre existiu, mas era tratado como uma espécie de ocultismo entre os economistas. Em vários comentários tenho sido conclamado a esmiuçar o assunto. Confesso que não o faço muito confortavelmente, por tratar-se de algo muito próximo da religião e esse tema não se discute. É mais ou menos como a escatologia que, em filosofia, é o estudo do fim último das coisas e, como ciência auxiliar da História, é o estudo dos excrementos — afinal, são a mesma coisa, como diria Rita Lee interpretando canção de Moacyr Franco.

O nióbio, como elemento para baterias de carros elétricos, já se conhecia havia décadas na Universidade Federal de São Carlos

A discussão hoje é sobre se o Estado é ou não necessário à subsistência de indústrias de enorme porte, como a automobilística. Há quem defenda que, sem ele, a indústria teria muito menos encargos; portanto, muito mais incentivos para continuar investindo e prosperando. Será que isso é possível? Marx foi um dos maiores admiradores do capitalismo como meio de organizar sociedades complexas, em que a divisão do trabalho levasse a um ganho de produtividade, tal que o primeiro axioma da Economia — “As necessidades humanas são infinitas e os recursos são finitos” — ficasse próxima de satisfeita.

O fato é que, como herdeiro de David Ricardo, sua preocupação não era com a satisfação em si, mas com a que parcela da sociedade ela estaria disponível. O fato é que todos os autores, até hoje, não importando sua tendência, baseiam-se em que o ser humano seja proprietário de si mesmo, o que lhe dá o direito à propriedade privada, segundo alguns, ou a nega, segundo outros. Portanto, duas faces da mesma moeda. Afirmando ou negando esse direito, a presença do estado é imprescindível, seja por garanti-lo, seja por coibi-lo ou, no meio termo, regulando-o.

Ocorre que o capitalismo trouxe, no seu bojo, uma organização produtiva capaz de oferecer bens cada vez mais complexos a uma parcela crescente da sociedade. Navios sempre foram complexos, seja em sua manufatura, seja em sua operação. Por causa disso, sua posse ou propriedade restringiu-se — como ainda se restringe — a pouquíssimas pessoas. Inimaginável é produzir bens com milhares de componentes cuja operação seja tão simples que, virtualmente, qualquer um possa usar. O carro é o símbolo dessa façanha.

 

 

Complexidade do produto

Existiram fábricas de automóveis em países onde a livre iniciativa foi proibida? Sim. A Ford já produzia na Rússia quando Stalin assumiu o poder em 1923. Outros países tiveram suas indústrias estatizadas por ocasião da Segunda Guerra Mundial, de um lado ou de outro da Cortina de Ferro. De um lado, para acelerar a reconstrução via Plano Marshal; do outro, para expurgar as classes dominantes do regime anterior. Mas não é o direito à propriedade privada, muito menos sua negação, que justifica o casamento da indústria de automóveis com o Estado, com direito a bodas de diamante e tudo. É a complexidade do produto que requer externalidades vultosas demais para atrair o investimento privado.

Estradas são um ótimo exemplo disso. Enquanto só se andava de carroça, já se dependia do Estado para construí-las. Elas eram tão importantes que Portugal não somente não as fazia, como não as permitia no Brasil. É que os reinóis não queriam que a colônia se tornasse independente pelas rodas, levando riqueza a seu interior. A malha rodoviária cresceu em dimensão e complexidade na exata medida do desenvolvimento do automóvel cada vez mais veloz, requerendo regulação com rigidez crescente para que os usuários sejam proprietários de si mesmos por mais tempo.

 

Externalidades operacionais e tecnológicas redundam em lucro, como o emprego do nióbio em baterias promete dar num futuro não muito distante

 

As externalidades promovidas pelo Estado vão muito além das operacionais. Há a pesquisa a fundo perdido que fornece tecnologia, como a oferecida pela indústria espacial. São encomendas feitas pelo Estado a laboratórios universitários, quando esses laboratórios não são internalizados sob o manto do sigilo estratégico. O nióbio como elemento para baterias, como se discutiu no 8°. Simpósio da SAE Brasil, já se conhecia havia décadas na Universidade Federal de São Carlos, que mantém um laboratório específico para esse metal.

O mesmo se pode dizer de muitos materiais compósitos, até mesmo de colas vulcanizáveis, cujo desenvolvimento foi encomendado pelo exército norte-americano para colar ossos provisoriamente, até que se pudesse retirar o ferido do campo de batalha. Batalha essa que bem pode ser de uma guerra para que o petróleo continue fluindo e, assim, a fabricação e o uso de automóveis não parem. Hoje, são produtos sem os quais a indústria de automóveis teria de retroceder mais de 50 anos.

Parece evidente que externalidades operacionais e tecnológicas redundam em lucro. Fábricas de cola dão lucros fabulosos, assim como o emprego do nióbio em baterias promete dar num futuro não muito distante. Da mesma forma, transportadoras e produtores rurais vêm se beneficiando da malha rodoviária com intensidade progressiva. Assim, o investimento via impostos nada mais é do que retirar a saída inicial do fluxo de caixa da indústria em geral e da automobilística em particular. Sem isso, a taxa interna de retorno dessas empresas, provavelmente, não seria suficiente para tornar o negócio atrativo.

O matrimônio entre indústria e Estado é muito estável, por mais que um ou outro cônjuge pule a cerca de vez em quando. Resta-nos ficar de olho para que seus frutos não se percam.

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A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars

 

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