Se 100% dos veículos se tornassem elétricos, o mundo estaria preparado para abastecer as baterias de todos eles?
Todas as vezes que uma matéria descreve um carro elétrico e enaltece sua autonomia e a rapidez de recarga, minha intervenção é a mesma: “De onde vem a energia?”. Afinal, um carro médio consome 35 cv para rodar a 60 km/h, o que equivale a cinco chuveiros elétricos de alta potência ou 40 máquinas de lavar pequenas ligados por uma hora — e a imensa maioria das instalações elétricas residenciais não aguenta tanto.
Não sou eu o único a perguntar o que aconteceria, caso todos os carros fossem elétricos e todos plugassem seus veículos na tomada ao chegar em casa às 19h. Há quem imagine um apagão, há quem suponha um incêndio de proporções cinematográficas. Há mesmo quem vislumbre motoristas engalfinhando-se na fila dos postos de recarga. Fica a pergunta: será que é possível que todos os veículos sejam elétricos?
Seria preciso adicionar 61% à capacidade instalada, em geração e distribuição de energia, para o abandono de uma tecnologia consagrada há mais de um século
A pergunta cabe porque só se fala em carros de passeio, mas há que se pensar em caminhões e ônibus também, sobretudo com a possibilidade de motores a combustão serem banidos. Será que o mundo está preparado para abastecer todos eles? Tomemos o Brasil como base de cálculo, conforme tabela a seguir.
Consumimos, sem crise, 144,6 bilhões de litros de combustíveis ao ano. Descontando os 6,8 bilhões de litros de querosene, sobram 137,8 bilhões de litros destinados aos veículos. Retirando-se os 28,8 bilhões de litros de álcool entre hidratado e anidro, temos 109 bilhões de litros vindos do petróleo, a que se deve somar o gás natural veicular (GNV), equivalente a 16,5 bilhões de litros, chegando a 125,5 bilhões de litros de hidrocarbonetos.
Cada litro de hidrocarboneto equivale a 12 kWh (quilowatts-hora), enquanto cada litro de álcool equivale a 9 kWh. Assim, o que consumimos hoje em combustíveis parece com 1.765,3 tWh (terawatts-hora) ao ano. Supondo que os motores elétricos tenham uma eficiência de 75%, contra os 35% dos a combustão, seriam precisos 823,8 tWh ao ano para suprir esse consumo.
Ocorre que, sem folga alguma, a capacidade instalada é de 1.344,1 tWh ao ano, ou seja, seria preciso adicionar 61,3% à capacidade instalada. Naturalmente, estamos apenas fotografando, não fazendo um filme — mas se pode entender o tamanho do investimento necessário, em geração e distribuição de energia, para sustentar o abandono de uma tecnologia consagrada há mais de um século.
Tudo o que se descreveu acima pode ser estendido para o resto do mundo. Não há país em que a produção de energia elétrica sobre a ponto de suportar o consumo veicular generalizado sem enormes investimentos em geração e, principalmente, distribuição.
Nossa estrutura de abastecimento conta com 38.535 postos espalhados por todo o território. São eles que tornam os automóveis — inclusive os irracionais híbridos — com autonomia virtualmente infinita. As pessoas param e, em minutos, têm seu tanque cheio e vão embora. Por que não fazer o mesmo com os veículos elétricos?
Em vez da recarga, a troca
Por causa da lei 9.956/2000, que proíbe motorista de auto-abastecer, temos 500 mil frentistas para encher o tanque de 40 milhões de veículos. Mundialmente, existem cerca de 1 bilhão de automóveis. Mantendo-se a proporção postos/veículos, supõe-se que haja 770 mil postos no mundo que, a cinco pessoas por posto, empregam 3,85 milhões — número significativo de trabalhadores dependentes da infraestrutura atual para ser simplesmente desconsiderado. Essa massa poderia ser aproveitada para abastecer os veículos elétricos.
Bastaria que as baterias fossem padronizadas e que seus bancos variassem consoante a potência do automóvel. O motorista poderia parar em um posto, trocar a bateria descarregada por outra com carga plena e pagar a diferença. A bateria retirada seria carregada no próprio posto, seja pela rede disponível fora dos horários de pico, seja pelo que mais existe num posto — combustível —, seja por qualquer outra fonte em desenvolvimento.
Bastaria que as baterias fossem padronizadas: o motorista poderia parar em um posto, trocar a bateria descarregada por outra com carga plena e pagar a diferença
A fragilidade estrutural que alguns engenheiros alegam, para refutar a ideia de ter as baterias padronizadas e colocadas entre os eixos para facilitar a troca, é contraposta por outros engenheiros que alegam que elas podem ser elementos estruturais, como são o motor e a transmissão nos carros de Fórmula 1. Na Europa, em que as cidades são anteriores ao advento dos automóveis e respeita-se a arquitetura original, não há postos como os que conhecemos aqui — há até bombas instaladas na calçada para auto-abastecimento. Isso dificulta, mas não invalida a ideia.
De quem seriam as baterias? Das empresas de energia, naturalmente. Isso resolve outro problema seriíssimo: o risco de um indivíduo comprar um carro com baterias de uma tecnologia que se tornará obsoleta logo a seguir, fazendo seu investimento derreter. Sendo as baterias de propriedade das empresas de energia, não somente o risco desaparece, como o descarte correto fica garantido. Além disso, o interesse pelo desenvolvimento dos acumuladores passa a ser delas, o que provavelmente reduz o preço do veículo novo para o consumidor final e o torna competitivo se comparado ao automóvel atual.
Por que essa ideia não se dissemina? Em minha opinião, porque o número de carros elétricos ainda não se mostrou uma ameaça concreta nem às produtoras de petróleo, nem às distribuidoras de combustível. A partir do momento em que as pessoas adotem o carro elétrico como uma opção viável e passem a considerar sua aquisição como um caminho — não como uma experiência ou uma curiosidade —, o mercado vai reagir e os contratos de longo prazo entre as entidades envolvidas vão introduzir essa possibilidade, como mantenedora de uma infraestrutura que se pode avaliar em centenas de bilhões de dólares.
Eu não me assustaria nem um pouco caso as grandes produtoras de petróleo passassem a ser grandes produtoras de baterias. Nesse meio tempo, seja para desenvolver a tecnologia de controle para veículos elétricos, seja para cumprir contratos de longo prazo, os carros híbridos vão continuar levando 200 kg — que poderiam ser mais baterias —, representados pelo motor a combustão e seus periféricos, para passear. Façamos votos para que esse período de transição tecnológica seja o mais curto possível.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars