Alguns atribuem ao custo-Brasil os altos preços dos carros no País, outros ao lucro-Brasil: quem está certo?
Não há um dia em que não se leia “custo-Brasil” ou “lucro-Brasil” na mídia. O fato é que os carros são muito caros no País, o que leva a máximas dignas de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, que dizia que algo repetido mil vezes vira verdade.
Uma delas é que carros são caros por causa dos impostos: vários artigos acadêmicos baseados em pesquisas sérias mostraram que, mesmo sem impostos (tecnicamente, a preço líquido), aqui eles custam até 70% mais que nos países de origem. Outros, lendo essas pesquisas, dizem que é o fato de ter de assumir o risco-Brasil que faz com que fabricantes e importadores cobrem um prêmio maior aqui do que lá fora. Afinal, quem está certo, quem aposta no custo-Brasil ou quem defende o lucro-Brasil?
Os economistas acreditam que todos os negócios têm risco e que eles se dividem entre soberano ou do país, de negócio, de crédito e moral. O soberano é o afetado pelas leis e pela instabilidade política, que por sua vez afeta a economia e a probabilidade de o país dar um calote. O de negócio é o inerente a aquela atividade específica que pode afetar as vendas, como o preço dos combustíveis, a superlotação das cidades, a falta de matéria-prima, entre outros eventos.
Para justificar um salto de 70% no preço líquido, seria preciso que nossos custos (descontados os impostos) fossem 38,21% maiores que a média mundial
O risco de crédito é o representado pela impossibilidade de o comprador honrar seus compromissos por falta de recursos. Finalmente, o risco moral é o de o comprador poder mas não querer pagar. Apenas os dois primeiros são assumidos pelo produtor: os dois últimos são compartilhados entre as instituições financeiras e os investidores em recebíveis.
Ocorre que os papéis dos governos costumam ser pagos religiosamente porque, na verdade, são substituídos por outros no vencimento. Por causa disso, são classificados como papéis livres de risco — mas pagam um prêmio, que hoje é a taxa básica no Brasil. Matematicamente, o risco-país é o resultado da divisão da taxa de juros livre de riscos local pela taxa equivalente no país com o menor risco do mundo, os Estados Unidos, em pontos percentuais.
Usando 8% como taxa básica e inflação estimada em 4,15%, temos uma taxa líquida de 3,6% para o Brasil. Para os EUA, considerando uma prime rate de 4% e inflação de 2,4%, a taxa líquida fica em 1,56%. Assim, o risco-país representa algo como 2%. Não se justifica termos uma margem média de 23% contra uma média mundial de 9%.
Aliás, nem mesmo a margem estimada para o Brasil justifica um salto de 70% no preço líquido. Para justificar, seria preciso que nossos custos líquidos (já descontados os impostos) fossem 38,21% maiores que a média mundial. Mas como se explica isso se nossa moeda está depreciada, temos matéria-prima à vontade e, mesmo assim, a importação não está restrita e a mão de obra custa, mesmo com os encargos, muito menos que nos países de origem?
Os economistas consideram que, para que o mercado seja livre de distorção, deve haver simetria das informações. Esse nome bonito significa que todos os envolvidos no negócio, também conhecidos como stakeholders, tenham acesso a informações igualmente fidedignas. Mas isso nunca acontece: quem as fornece domina-as, enquanto aos que as recebem só resta acreditar nelas. É justamente para mitigar essa assimetria que existem os departamentos de controladoria, a auditoria externa e as comissões de valores, tal que os consumidores, fornecedores, investidores e o Estado fiquem protegidos contra as caixas-pretas da contabilidade da indústria.
Publicar ou divulgar?
Em 1976, a lei 6.404 (lei das S.A.) permitiu que empresas de qualquer porte e com qualquer número de sócios pudessem ser tidas como limitadas. Dos anos 80 em diante, todas as empresas automobilísticas do Brasil passaram de sociedade anônima, com obrigação de publicar balanços, para limitadas, que ficam isentas de divulgar seus números. Isso criou caixas-pretas absolutamente inexpugnáveis.
O fenômeno não ocorre somente com a indústria de automóveis. Sempre que uma empresa de capital aberto no Brasil é vendida para outra estrangeira, o primeiro passo é fechar o capital aqui. O exemplo mais recente é o da companhia aérea Latam: assim que se comprou a Tam, fechou-se o capital no Brasil e abriu-se no Chile. Desde 1999, juristas e economistas vêm apontando isso como possibilidade de concorrência desleal.
O Código Civil de 2001 não alterou a regra, mas o incômodo persistiu. A lei 11.638/2007 (Lei da Padronização das Demonstrações Contábeis) trouxe avanços para abrir a caixa-preta pela adoção dos padrões da IFRS (International Financial Reporting Standards). Ela previa que as sociedades de grande porte (patrimônio líquido maior que R$ 240 milhões e/ou faturamento maior que R$ 300 milhões em valores de 2007), mesmo sendo limitadas, teriam de publicar balanços como forma de mitigar a assimetria de informações — em particular perante o consumidor que, então, saberia se o preço que pagou é ou não justo.
Se as empresas tiverem de abrir seu capital também aqui, qualquer um poderá participar do capital da indústria, fortalecendo o mercado de valores e fixando essas empresas no Brasil
Contudo, por uma falha de redação do art. 3º, que dizia que a empresa era obrigada a “elaborar e divulgar as demonstrações financeiras”, a coisa nunca saiu do papel. A indústria automobilística, via advogados célebres, alegou que divulgar e publicar não são sinônimos e que as empresas já faziam isso para quem de direito, como o Estado e os financiadores públicos (BNDES) e privados. Desde 2010 esse artigo tem recebido inúmeras propostas de alteração, sendo a última o PL 7.012/2017, que troca a palavra “divulgar” por “publicar”. O fato é que, em 29 de janeiro de 2016, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª região deu ganho de causa à Volkswagen, desobrigando-a de publicar seus números.
A solução não parece ser alterar a redação da Lei 11.638/2007, mas promulgar outra que obrigue todas as empresas com capital aberto no país de origem a abrir seu capital aqui também. É preciso que elas adotem as normas brasileiras de demonstrações contábeis, sejam fiscalizadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e tenham auditoria externa com pareceres publicados no Brasil.
Dessa forma, além de abrir a caixa-preta, seria possível a qualquer brasileiro ou estrangeiro, individualmente ou via fundos de investimento, participar do capital da indústria automobilística brasileira, fortalecendo nosso mercado de valores e, sobretudo, fixando essas empresas no Brasil. Isso decorre de que, caso queiram abandonar o País, terão de vender seus ativos para ressarcir seus acionistas locais. É muito mais provável que o façam via empresa do mesmo ramo ou grupo nacional ou internacional capaz de dar andamento ao negócio.
Outra distorção a desaparecer é o auxílio que as empresas atuantes aqui acabam por dar às de capital aberto na origem, via importações superavaliadas e mesmo pura transferência de recursos, ensejando a paralisação de projetos aqui. A desculpa é sempre a mesma: o custo-Brasil. Pode até ser, mas, enquanto as caixas-pretas não forem abertas e profissionalmente decifradas, são só conjecturas.
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