O Brasil precisa abraçar a Indústria 4.0, mas os fabricantes estão prontos para se suprir de trabalhadores classe A?
Sempre que entro numa nova empresa, como empregado ou consultor, entrevisto a equipe. Os chefes geralmente não gostam muito — alegam que eles tinham todas as informações de que eu preciso. Se questionado por um “dono”, a resposta é: “Você gosta do seu negócio, seus empregados não necessariamente”. De fato, “donos” tendem a usar óculos cor de rosa. Se arguido por um chefe, respondo: “Seus subordinados dividem-se em três grupos: os que querem seu lugar, os que o querem ver pelas costas e os que colaboram com você”.
Só os identificando é que se pode mudar algo. Aí dá para saber quem não quer mudanças, para expurgá-los imediatamente, tal que se induza o resto a colaborar. Se quem não quer mudanças é o “dono”, ou vou embora ou recomendo a criação de um conselho administrativo aliado a um gestor profissional. Nada de novo na receita, exceto que os consultores entram já criando o conselho e contratando o gestor, antes de conhecer as competências dos “donos”. Entre os consultores, instalou-se uma máxima velada: “Em sendo dono, é incompetente”.
Mantém-se a máxima: “Erre dentro das regras, mas não acerte fora delas” — ocorre que a automação requer pessoal classe A, o que acarreta uma enorme revolução
Entre as multinacionais, é pior ainda, pois cada gestor novo, uma consultoria nova; para cada uma delas, uma reestruturação e, em cada reestruturação, cabeças rolam sob o pretexto de não se adequarem aos novos paradigmas. Fazem-se expurgos dignos de Stalin, porque os que se conseguem vender melhor para os consultores livram-se de seus desafetos e de seus concorrentes mais competentes.
Contraditoriamente, o setor de Recursos Humanos tenta dar estabilidade à estrutura hierárquica, nem sempre com a ótica da excelência. Podemos dividir os seres humanos entre A, B, C e D, onde os A são os excepcionalmente aptos; os B estão acima da média, mas dentro da norma; os C correspondem aos abaixo da média, mas não fora da norma; e D são os que são anormalmente ruins. Teremos então que, para a empresa, podem interessar somente os B e os C. É que os A põem a estrutura do poder em risco, pois questionam tudo, querem mudar tudo e põem em cheque a competência de seus chefes. Os D, ao contrário, erram demais e não entendem o mundo que os cerca.
Mantendo somente os B e os C, preserva-se em uso a máxima: “Erre dentro das regras, mas não acerte fora delas”. Para ficar igual ao Admirável Mundo Novo do escritor inglês Aldous Huxley, só falta pôr uniformes coloridos na equipe para distinguir a que grupo pertence dada um. Ocorre que a automação requer pessoal classe A — e esta é a enorme revolução pela qual transitaremos nas próximas décadas.
Em coluna de três anos atrás, durante a implantação das reformas trabalhistas, apontei o fato de o Senai e o Sesi, que compõem o Sistema S, perderem parte importante de sua arrecadação graças à terceirização de atividades essenciais para a atividade principal da empresa. Essa perda atingiu 30% entre 2018 e 2019, vinha declinando no primeiro trimestre de 2020 e despencou com a pandemia do coronavírus. Ao mesmo tempo, alardeia-se que o Brasil precisa abraçar imediatamente a ideia de Indústria 4.0, caso se queira reindustrializar. Quem vai fazer isso? Nossa indústria em geral, a automobilística em particular, está pronta para suprir seu parque com trabalhadores classe A?
Robôs em lugar de humanos
No que se refere a trabalhadores administrativos, a indústria brasileira de automóveis incentiva o aprimoramento com muito mais intensidade que os dedicados ao desenvolvimento de produtos e de processos, geralmente, vindos das matrizes. Ao mesmo tempo, a automação vem substituindo tarefas de nível cada vez mais elevado. Nos anos 1970 um torneiro mecânico era um operário especializado. Hoje, robôs fazem isso. As soldas têm, progressivamente, sendo substituídas por cola aplicada por dispositivos totalmente automáticos. Cada vez mais vale a máxima de que, para o ser humano, restou pensar. O operário de amanhã será aquele que extrai dados de um banco alimentado pelos robôs que fazem o que antes era braçal.
A extração de dados aponta o que está certo e o que está errado na linha de montagem, bem como nos seus fornecedores, permitindo manter a melhoria contínua em curso, enquanto a população no chão de fábrica definha geração atrás de geração.
Para o ser humano, restou pensar: o operário de amanhã será aquele que extrai dados de um banco alimentado por robôs, que fazem o que antes era braçal
A Indústria 4.0, de que a automobilística é o melhor exemplo — nela própria e ao longo de sua cadeia de suprimentos —, precisa estar pronta para lidar com o inconformismo de seus trabalhadores, visto que a automação, ao contrário do que se pensava em Tempos Modernos de Charlie Chaplin, dinamiza a busca de novos produtos e processos. O operário do futuro não será pago para executar, mas para criar — e isso requer evolução nunca vista em como contratar e manter o time atualizado. Candidatos B e C serão de pouca utilidade.
Tudo começa por acelerar a integração do novo membro, nivelando seu conhecimento sobre a cultura empresarial. Algumas empresas já fazem isso, algumas adotam as universidades corporativas, como são os casos da Petrobras e Vale. Outras fazem convênios com universidades, como a Embraer, cujo curso no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) dá grau de mestre. A indústria de automóveis, mesmo com verbas consideráveis para treinamento, não faz isso — pelo menos, não no Brasil
Aqui ela continua apoiada no Sistema S para formar seus operários. Existe a Universidade Fenabrave que, desde 1994, atende a concessionárias de todas as marcas que produzem ou importam veículos oficialmente. Seus 110 títulos capacitam da gestão à logística, mas não atingem a formação técnica, que continua a cargo do Senai. Talvez nem seja uma universidade corporativa de fato, mas um centro de treinamento e capacitação. Uma universidade corporativa, que pode ser montada a partir de convênios, precisa ter a carreira dos empregados como alvo e um currículo básico como meio para dar consistência ao inconformismo que a Indústria 4.0 exige.
Se não nos atentarmos agora para isso, corremos o risco de nossas fábricas não passarem de linhas de produção comandadas a distância. No início dos anos 1990 dizia-se que, em 30 anos, a indústria de automóveis funcionaria de luz apagada. Não aconteceu, mas nada impede que caminhemos nessa direção.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars