Serão necessários anos de estabilidade econômica para o mercado se ajustar às novas relações de trabalho
No início dos anos 2000, minivans e furgões de passageiros estavam na moda. Passei por uma concessionária Citroën e vi um Berlingo zero-quilômetro. Entrei e minha esposa me disse que havia mais três lá dentro. Insisti em ver o documento e observei que o carro já tinha mais de um ano encalhado na loja. Pedi um desconto, vieram com a fatídica proposta de financiamento. Insisti em comprar à vista com um belo desconto, porque não pretendia comprar um carro de um ano encalhado pelo preço de um novo.
Depois de umas duas horas de negociação, chegamos ao preço. Foi quando dei a estocada final. Como sempre tive cães no carro, pedi que os bancos fossem revestidos de couro. Não vieram. Disse que ele tinha até às 18h para se render; caso contrário, eu compraria a Ford Escort SW que já tinha visto — argentino por argentino, fiquei com a perua. No dia seguinte, o vendedor da marca francesa me ligou dizendo que tinha conseguido o estofamento. Já era. Não me arrependo. Aquele motor Zetec era muito bom.
Existe uma crença que é preciso quitar um carro para poder comprar outro: é lenda, pois para a instituição financeira o que interessa é o capital financiado
Cem entre cem taxistas com quem converso desconhecem os procedimentos de crédito e sofrem nas mãos das concessionárias quando pretendem trocar seu automóvel. Existe uma crença, mais arraigada do que comer arroz e feijão, que é preciso quitar um carro para poder comprar outro. Isso é lenda porque, para a instituição financeira, o que interessa é o capital financiado. Se ele não exceder 50% do valor da garantia, o risco está mitigado porque a probabilidade de o valor emprestado não ser ressarcido em caso de inadimplência é muito pequena e, geralmente, coberta por seguro. Então, por que os taxistas não transferem o saldo devedor do carro velho para o novo e só completam o financiamento?
Antes de começar a explicação, vamos lembrar que carros são, geralmente, financiados pela tabela Price. Os bancos dão preferência a esse método porque, como as prestações são constantes, no início, paga-se muito em juros e amortiza-se muito pouco e, no fim, paga-se muito pouco em juros e amortiza-se muito. É que, a cada parcela, pagam-se juros sobre o saldo devedor e amortiza-se somente a diferença até o valor da parcela. Naturalmente, o saldo devedor vai caindo e, com ele, os juros, enquanto a parcela permanece constante, aumentando o valor amortizado.
A planilha que você pode baixar aqui mostra que os 50% amortizados ocorrem sempre depois de corridos 50% do prazo de financiamento (os campos Capital e Taxa anual de juros podem ser alterados pelo leitor). Quanto maior a taxa de juros, mais para a frente chega-se aos 50% da amortização. No exemplo, com 10% de taxa de juros, os 50% chegam dias depois do pagamento da 12ª parcela; para 20%, depois de paga a 13ª e, para 35%, o ponto pula para depois da 14ª parcela.
Medo de perder, vontade de ganhar
Ora, se os juros pertencem ao banco, ele pode usar os juros de Beltrano e Cicrano para emprestar a Fulano que, a partir da primeira prestação, fornece recursos limpos para que o banco empreste para uma quarta pessoa — e isso cresce exponencialmente. O mecanismo permite à instituição financeira remunerar os aplicadores e ainda sobrar muito dinheiro. Quanto maiores a taxa de juros e o prazo, maior o número de pessoas que banco pode financiar ao mesmo tempo.
De acordo com a planilha, para uma taxa de 10% ao ano, o efeito multiplicador só cobre integralmente o valor da parcela no sétimo mês; enquanto que, para uma taxa de 35%, a cobertura ocorre no quinto mês. Só que o medo de perder é sempre maior que a vontade de ganhar. Partindo do princípio de que, quanto maior o número de pessoas envolvidas maior a probabilidade de alguém furar o barco, com uma taxa maior, o risco de prejuízo é menor. Ao mesmo tempo, quanto maior o número de operações simultâneas, mantendo-se a probabilidade de inadimplência, maior a probabilidade de os empréstimos bem-sucedidos cobrir eventuais prejuízos. Isso implica que existe um ponto ótimo, em que taxa de juros e prazo compõem uma relação risco-retorno ideal.
Dar crédito vai ficar mais complicado: a comprovação de renda de um trabalhador que se tornou MEI terá de se basear em declaração de renda e notas-fiscais
Se o taxista usar o direito que lhe cabe de transferir a dívida do carro anterior para o novo, para o banco, é como se ele tivesse antecipado a quitação do carro velho e feito outro financiamento, diminuindo o efeito multiplicador. Assim, é interessante que o devedor deva por mais tempo e amortize o mais lentamente possível. É justamente por isso que se pagam comissões sobre o valor financiado aos vendedores das concessionárias. Aliás, gostaria de saber se alguém com recursos para comprar um carro à vista não foi dissuadido, ou pela insistência do vendedor, ou pela recusa em dar desconto, ou ainda por oferecer taxas de juros maiores para prazos menores, o que é um contrassenso.
No caso do taxista existe um agravante: não haver comprovação de renda, o que é fartamente compensado pelas isenções de que goza, visto que, em caso de reintegração de posse, o carro será vendido no mercado normal, em que o valor é cheio. A precarização das relações de trabalho pôs o trabalhador normal numa posição pior que a do taxista, visto que ele não goza de isenção alguma e o risco de se manter empregado extinguiu-se. Pior ainda, com o trabalho intermitente e a extinção do compromisso em jornada de trabalho, o próprio consumidor pensa mil vezes antes de assumir qualquer compromisso.
Ademais, o processo de concessão de crédito vai ficar muito mais complicado. A comprovação de renda de um trabalhador que se transformou em Microempreendedor Individual (MEI) terá de se basear em declaração de Imposto de Renda e, quanto mais para o fim do ano, mais dependerá das cópias das notas-fiscais, redundando numa taxa maior de aprovação de crédito.
É justamente por tratar-se do produto mais dependente de crédito, que não dá para acreditar numa pronta recuperação do mercado de automóveis. Serão necessários anos de estabilidade econômica para que, via poder de barganha, o trabalhador recupere as conquistas que perdeu com a reforma trabalhista. Em outra matéria falei sobre a exacerbação que se espera das próximas negociações. Agora, cito que também a indústria de automóveis, bem como sua cadeia a jusante, poderá sofrer com a falta de estabilidade no mercado de trabalho. Dá-lhe aluguel para manter os riscos entre empresas.
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