A depreciação do real deixa o consumidor brasileiro com menor poder aquisitivo diante da alta do custo de produção
O real perdeu mais de 30% de seu valor em três meses. Não me lembro de nada parecido no mundo em tempos de inflação baixa. Se existe algo que sempre me incomodou como economista, é a máxima de que desvalorizar a moeda local induz exportações. Para que isso seja verdade, são tantas condições a serem satisfeitas que a máxima se torna mínima. Não pretendo aqui defender qualquer linha do pensamento econômico, apenas gostaria de compartilhar uma inquietude.
Num pensamento keynesiano, partindo-se do princípio de que o consumo seja função direta da renda, temos que o consumo interno será função da renda interna, enquanto o consumo no resto do mundo será função da renda no resto do mundo. Em outras palavras, se o mundo estiver em crise e todos os países precisarem exportar para melhorar suas condições internas, será dificílimo vender lá fora, mesmo que a moeda nacional se desvalorize à beira de zero, sem contar que cada produto tem seu comportamento específico.
As commodities, por exemplo, têm seu preço definido pelo mercado mundial. É bem verdade que alguns países subsidiam seus produtos mas, para que se altere o preço, é preciso que o produtor seja preponderante, como aconteceu com os Estados Unidos no período 1960-1990: não havia quem fosse capaz de concorrer, sendo-se obrigado a também recorrer aos subsídios só para ter o item produzido localmente, como fazia a França com o açúcar de beterraba.
Se o mundo estiver em crise e todos os países precisarem exportar, será dificílimo vender lá fora, mesmo que a moeda nacional se desvalorize à beira de zero
Quando se fala em bens industrializados com mercado resolvido por diferenciação, como é o dos automóveis, as perguntas são outras e infinitamente mais complexas. O produto é tropicalizado? Existe infraestrutura para seu uso no resto do mundo? O que aqui se faz tem algum diferencial desejado lá fora? Qual é o grau de nacionalização dos itens que pretendemos oferecer?
A indústria de automóveis é tão complexa que as perguntas tornam-se ainda mais capciosas. As empresas são nacionais? Qual a participação delas na cadeia de suprimentos? Elas são inovadoras? Qual é a participação local nos fatores de produção (terra, capital e trabalho)? Depois do Inovar-Auto, programa de incentivo do governo Dilma Rousseff que vigorou entre 2012 e 2017, as respostas a essas perguntas parece desalentadoras.
Sob o pretexto de abrir a economia, nosso grau de nacionalização retrocedeu ao início dos anos 1950, quando havia empresas preponderantemente brasileiras, como a Vemag, montando carros importados em regime CKD (completamente desmontados). Hoje, nenhuma indústria de automóveis é nacional — e pior que isso é a decadência da parcela dos projetos desenvolvida internamente, castrando nossa capacidade de inovar. Algumas fabricantes simplesmente fecharam seus departamentos de projetos no brasil.
Além disso, o custo da mão de obra, com a automação, não passa dos 1,5% do custo de produção, de sorte que a desvalorização dos salários não incorre em vantagem comparativa. A automação, que é parte do capital, como fator de produção, também depende da taxa de câmbio. O fator terra, composto pelos preço dos terrenos em que se podem situar as instalações, bem como a existência de cluster produtivos (leia coluna), já não representa um atrativo, seja porque a tendência é de não imobilizar capital, seja porque o valor do frete reduziu-se significativamente.
Capital não varia entre os países
Como se não bastasse, os modelos de maior valor agregado como as picapes quase não se produzem no Brasil. Restam-nos quase que somente carros considerados como populares no resto do mundo, que só representam algum status por aqui mesmo. A depreciação da moeda não faz mais do que deixar o consumidor brasileiro com menor poder aquisitivo perante automóveis cujo custo de produção acompanha, forçosamente, o preço do dólar.
A indústria se instala aqui ou ali por conta do mercado interno, posto que o capital, que engloba a matéria-prima e os insumos, não sofre variação de um país para o outro. Assim, o que pesa na decisão é justamente a capacidade de o mercado potencial diluir os custos fixos. Se o mercado potencial cair para 60% do anterior, dado um aumento de 100% do valor do dólar, os custos fixos sofrerão um acréscimo de 33,3%, encarecendo ainda mais o produto e, provavelmente, matando sua margem.
Pode não ser o caso dos modelos mais populares, cuja queda nas vendas tende a ser menor. É que o decréscimo na renda do consumidor faz com que ele restrinja seu portfólio, trazendo-o para o mercado mais básico. Assim, as empresas que operam em mercado de nicho correm um sério risco de fechar, visto que o Inovar-Auto criou verdadeiras apertadoras de parafusos.
Efeito mais perverso é o da concentração da renda: remuneradas em moeda forte, algumas categorias continuam consumindo bens de luxo, mas importados
Há outro problema a se considerar. Toda a teoria econômica posterior à Segunda Guerra Mundial é unânime ao afirmar que somente a evolução tecnológica é capaz de alterar preços relativos. Criadores de gado pensam em arrobas de boi, agricultores pensam em sacas de soja e padeiros pensam em pãezinhos.
Suponhamos que um padeiro esteja acostumado a dar 100 mil pãezinhos em troca de um carro de R$ 100 mil. Ele jamais aceitará dar 200 mil pãezinhos pelo mesmo carro só porque, dobrado o valor do dólar, ele passe a custar R$ 200 mil. O padeiro, certamente, elevará o preço do pãozinho até que a relação volte à anterior, anulando o efeito da desvalorização e requerendo depreciações contínuas e constantes. Isso se reflete em inflação, que só não aconteceu no Brasil por falta de consumo.
Mas há um efeito ainda mais perverso: o da concentração da renda, já que algumas categorias conseguem remunerar-se em moeda forte e continuam consumindo os mesmos bens de luxo, mas importados, o que reforça o argumento de haver grande risco de empresas de pequena escala fecharem e desempregarem.
Já ouvi, de alguns jornalistas especializados, que empresários preferiam a moeda sobrevalorizada para não ter de trabalhar, tornando-se importadores. Aconteceu de fato nos anos subjacentes à abertura da economia e do Plano Real, especialmente com as autopeças, como abordei em outra matéria. O cenário de hoje é outro, assim como nossas aflições. Como sempre, a saída está na excelência, jamais no subsídio — e a depreciação da moeda é o mais perverso deles.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars