Com a desigualdade de poder, usa-se a greve para privar a sociedade de ir e vir e provocar desabastecimento
Analistas de mercado, seja lá quem forem, seja lá o que fizerem, estão dando todo o tipo de pitaco sobre a subida de preços e a paralisação dos caminhoneiros por conta do aumento dos combustíveis, em especial, o óleo diesel. O fato é que, desde que a Petrobras começou a repassar as variações do valor do barril de petróleo para os preços dos combustíveis, a subida foi sentida, principalmente, numa época de inflação baixa por conta da falta de renda do consumidor.
Alguns “analistas” põem a culpa em Donald Trump por quebrar o acordo com o Irã e pressionar a Venezuela, dois dos maiores produtores de petróleo do mundo. Outros atribuem à recuperação econômica que fatalmente elevará o preço do “ouro negro”. Há ainda quem culpe somente os especuladores, que se aproveitam dos momentos de incerteza para operar a descoberto e ganhar fortuna manipulando o preço de uma commodity. Todos estão parcialmente certos, posto que não nos é dado conhecer a verdade em sua plenitude. Ficaram de fora os que especularam com ações da Petrobras desde o início da crise e, agora, estão gozando os louros da retomada do status de empresa mais valiosa do Brasil.
Os combustíveis vêm subindo no mundo todo, mas manifestações como as que se iniciaram dia 22 de maio não encontram paralelo no resto do mundo
A Petrobras reergueu-se financeiramente porque deixou de ser usada para subsidiar os transportadores. Não precisou mais mascarar preços para amortecer a inflação, provocada pela subida do dólar entre setembro de 2012 e maio de 2016. Não existe a menor garantia de que a empresa tenha deixado de ser o balcão de negócios escusos que a tem caracterizado desde sua fundação, apenas cessou a sangria ocasionada pela manipulação política de preços.
Os combustíveis vêm subindo no mundo todo, mas manifestações como as que se iniciaram dia 22 de maio não encontram paralelo no resto do mundo. Ser ano eleitoral e tudo se tornar extremamente sensível por conta da luta pelo poder, por si só, não explica o comportamento dos caminhoneiros brasileiros. Há um componente histórico importante e pouco discutido.
Durante o período militar, as greves foram proibidas, mas não os lockouts (paralisações por parte de fornecedores). Em 1972, as empresas que detinham os caminhões-cegonha paralisaram suas atividades em busca de aumento do frete de carros novos. Foi uma queda de braço com a indústria de automóveis que culminou com o financiamento dos caminhões aos motoristas, até então empregados das frotas, que passaram a agir como autônomos. Formou-se um mercado de oligopsônio — muitos fornecendo para poucos — e o poder de barganha migrou das frotas para a indústria. Por muitos anos, os pátios nunca ficaram cheios por falta de transporte.
Balcões de carga
Como é de se esperar, todos os demais setores da economia passaram a agir da mesma forma. Não se pode dizer que já não houvesse caminhoneiros autônomos, mas se pode afirmar que a condição se generalizou sob o pretexto de que, nas mãos de proprietários, as máquinas seriam mais bem cuidadas e os custos menores e todos sairiam ganhando. No início, funcionou muito bem porque ninguém queria rodar vazio e as transportadoras, rapidamente, tornaram-se balcões de carga, enquanto os motoristas assumiam todos os riscos das viagens, exceto os segurados pelas transportadoras, ou seja, a carga em si. Buracos, excesso de peso, assaltos e tudo o mais passou para as costas dos caminhoneiros, além — é claro — de se dissociar o preço do frete da variação do valor do combustível.
Num ambiente de tamanha desigualdade de poder, não é de espantar que os profissionais se tenham organizado em sindicatos e que passassem a usar a greve em seus aspectos mais funestos, fechando estradas, privando a sociedade do direito de ir e vir e provocando desabastecimento de itens vitais.
Anuncia-se a exoneração do PIS-Cofins, esquecendo-se de que o Governo Federal também está sem caixa, aumentando a dívida pública dia a dia
Os empresários pularam da frigideira para cair no fogo com algumas décadas de defasagem. Então geradores de carga e motoristas transferiram para o Estado a tarefa de ajustar as coisas e, como sempre, o argumento recaiu sobre os impostos (indiscutivelmente excessivos) aplicados a alguns combustíveis, o que tem, em alguns estados, sido a tábua de salvação para a penúria fiscal em que se encontram. O Rio de Janeiro é o melhor exemplo de abuso do ICMS para suprir as necessidades de caixa; mesmo assim, os salários dos servidores continuam atrasados e falta de tudo para fazer funcionar até a polícia, apesar da intervenção federal no estado.
Anuncia-se a exoneração do PIS-Cofins, esquecendo-se de que o Governo Federal também está sem caixa, aumentando a dívida pública dia a dia. Via impostos, voltaremos a socializar os prejuízos, como se dizia nos tempos em que os subsídios eram combatidos frontalmente pelos críticos do desenvolvimentismo. Qual seria a solução?
Como ainda não se descobriram nem a pedra filosofal, nem o elixir da longa vida, só se pode argumentar com as mesmas bases que levaram as empresas a terceirizar para os caminhoneiros a atividade física de transportar. Que tal reunir os profissionais em cooperativas? Voltar às frotas em curto prazo é impossível. São milhões de profissionais que já detêm bilhões de reais em patrimônio, com cuja expropriação ninguém quer arcar. É inegável, porém, que a constituição de oficinas cooperadas de grande porte reduz custos, seja pela aquisição de peças, seja por transferir aos próprios cooperados os resultados da atividade.
Além disso, as forças ficariam mais equilibradas e o poder de barganha restaurado, sem abusos, sem excesso de peso, sem jornadas extenuantes de trabalho. E provavelmente com melhores estradas, pois o prejuízo pela má conservação seria compartilhado por quem gera carga e por quem transporta, ambos pressionando o Estado para fazer o que lhe cabe.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars