Vivemos no maior exportador de carne bovina, mas falta couro para os automóveis: por que isso acontece?
Houve um tempo em que os ônibus da viação Cometa tinham bancos estofados com couro. A alegação da empresa era de que o material durava mais e era mais leve que o plástico, além de ser poroso, portanto mais fresco que o plástico usado pelas demais empresas. Eram tempos em que ônibus raramente tinham ar-condicionado e os passageiros estavam impostos ao calor e ao frio, este muito mais intenso do que hoje.
Na década de 1960, carros como o FNM 2000 JK e o Willys Itamaraty ofereciam estofamentos polidos, quase como de cromo alemão, muito lindos. Era o couro para carros de luxo e o plástico para populares. Nos anos 70, o chique eram os bancos de veludo — veludo mesmo, não um não-tecido felpudo como se passou a empregar depois. Até mesmo o Ford Landau vinha com bancos de tecido com a felpa lavrada a navalha, realmente luxuoso. O plástico continuava massivamente usado em carros populares, até que esse feltro felpudo o substituísse e o couro voltasse a representar o luxo.
O pó de rebaixamento, de início usado em alças de bolsas e acabamentos de malas, chegou aos automóveis pela Ferrari em partes menos visíveis dos bancos

A população enriqueceu, a produção de automóveis aumentou, a demanda por couro cresceu mais rapidamente do que a oferta mundial de couros. Os carros passaram a ter revestimento parcial em couro e parcial em courino. Esse material, também usado em bolsas muito caras como as da Louis Vuitton, é feito com a mistura de pó de rebaixamento com uma resina, depois aplicada a um tecido rústico como uma lona. Pó de rebaixamento é o resultado de lixar o couro no curtume para que fique com a espessura homogênea.
Há uns 40 anos, na Itália, isso começou a ser usado para fazer alças de bolsas femininas e acabamentos de malas. O primeiro fabricante a usar o material em automóveis foi a Ferrari, apenas em partes menos visíveis como as laterais e traseira dos bancos. Pelo tato quase não se nota a diferença em relação ao couro, só ao dobrar. A aparência é muito boa, mas o courino esquenta mais, resfria mais e dura menos. Já tomei táxis que tinham o tecido de base aparecendo, de tão atacado o revestimento tinha sido pelo suor humano, além do sol, é claro. Não se deve confundir esse material com aquele puramente sintético, que recebe variados nomes em cada fabricante e não pode ser chamado de couro conforme a Lei 4.888 de 1965.
Ocorre que vivemos no maior exportador de carne bovina. Abatemos oficialmente 35 e, extraoficialmente, 50 milhões de cabeças ao ano. Se cada couro tiver 5 metros quadrados (fica entre e 4 m² e 6 m²), teremos por ano um total de 250 km², algo como a área do município de Santos, SP. Mas há ainda um abate anual de 33 milhões de porcos que, a 2 m² de área, forneceria 66 km². É muito couro — só que por vários motivos, dos quais elencarei alguns aqui, nem um terço disso está no mercado.
Do boi para o cão
No Brasil, o couro de porco não vai para o curtume porque o comemos como toucinho. Curiosamente, apesar de sermos o terceiro maior produtor de suínos do mundo, importamos couro de porco. Problema mais grave, no entanto, é que aqui o pecuarista não recebe nada além da carcaça; assim, não tem interesse em cuidar da pele de seus animais, ora marcando o gado em lugar nobre, ora deixando de evitar os buracos deixados pelos bernes ao saírem. O maior problema, porém, é tributário.
Para poder estocar as peles, seria preciso fazer uma planta adjacente ao matadouro. Nela seriam retirados os restos de ossos, tendões e gordura, aplicando-se o tanino para preparar o que o mercado chama de wet blue. Aos olhos do fisco, trata-se de produto processado e paga ICMS. Ora, como o boi é isento de ICMS dentro do estado, o matadouro tem muito poucos créditos e o imposto pesa muito. Por causa disso, muitos frigoríficos enterram as peles, diminuindo a oferta e aumentando o preço.
Finalmente, o Brasil tem o segundo maior mercado de animais de estimação do mundo e os ossinhos para cães têm um valor agregado que o frigorífico não consegue ao vender o couro para o curtume. Mesmo partes nobres acabam virando ossinhos. Basta lavar, branquear com água oxigenada e secar em estufa do tipo galeria, embalar e está pronto para nossos cães mastigarem. Em outras palavras, o couro de boi acaba no mesmo lugar que o toucinho.
Com isenção de ICMS para o couro wet blue, os pecuaristas teriam interesse em preservar o material, como ao deixar de usar arame farpado nas cercas
A exportação de couro condicionada, como foi à concessão de empréstimos durante a crise dos anos 80, foi alvo de tese defendida no Itamaraty em 2014. Esse comércio só fez crescer desde então, sempre condicionada à exportação de outros itens, chegando a US$ 240 milhões em 2017, deixando-nos sem matéria-prima para processamento local.
Em 2006, orientei um trabalho que propunha duas soluções para a falta de couros, para a qual concorre a exportação. A primeira hipótese seria que os pecuaristas recebessem o couro de volta e montassem uma cooperativa adjacente ao matadouro, fornecendo o wet blue para os curtumes. Sendo uma cooperativa de produtores rurais e o resultado um produto minimamente processado, haveria uma enorme chance de conseguir a isenção para o couro desse tipo. Aí, os pecuaristas teriam interesse em preservar o material, deixando de usar arame farpado nas cercas, impedindo a infestação por bernes e marcando em partes menos nobres. Isso não vinga por dois motivos, a extrema resistência do pecuarista ao cooperativismo e o interesse dos frigoríficos em não os deixar organizarem-se, passando os criadores a controlar preços.
A segunda possibilidade seria que os matadouros passassem a ter curtumes próprios, processando o couro até o acabamento no local. Isso, de longe, compensaria a questão tributária e ensejaria o aproveitamento de créditos hoje não aproveitados como de eletricidade, telefonia e até de combustível. A ideia esbarra na escala das máquinas de beneficiamento de couro, geralmente importadas da Itália. Elas são adequadas para cerca de 10 mil touros por dia, enquanto os abatedouros raramente passam das 1.500 cabeças por dia.
A meu ver, um tratamento tributário adequado, com alíquota progressiva, ajudaria muito a aumentar a oferta de couros. Seria também necessário que o Confaz (Conselho de Política Fazendária) revogasse a cobrança no destino para os produtos agrícolas minimamente processados, tal que os estados agrícolas ficassem do lado dos produtores. Provavelmente, a oferta de couros seria maior e nossos carros poderiam voltar a ser revestidos com um produto que não esquenta demais, não esfria demais, é durável e lindo.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars