Grupos de milhares de aficionados criaram um mercado crescente para itens de preparação
Quase 30 anos atrás, estava conversando com um aluno, filho de um cantor famoso. Em dado momento, ele soltou um “Nós chamamos essas BM (jargão para BMW) de três-dois-cinco e vocês chamam de trezentos e vinte e cinco”. Isso ficou na minha cabeça: “Nós quem? Vocês quem?”.
Veio imediatamente à minha mente a tribo dos Hell Angels com suas camisetas e casacos de couro, suas correntes e outros adereços que os caracterizavam como membros de uma tribo, que existem também para os amantes do rock and roll, ou ainda para os hooligans em todas as suas variações pelo mundo afora. As tribos são, portanto, a expressão máxima das redes sociais, que por elas são afetadas em um ciclo vicioso.
A internet é, depois do automóvel e da popularização da energia elétrica, o maior evento da história da humanidade. Talvez eu dissesse, 30 anos atrás, que o computador teria esse papel. Naquele tempo eu dizia que o computador é a máquina que não é. Se me perguntassem se o computador é uma calculadora, eu responderia que “não, mas pode ser”; se questionassem acerca de ele ser uma máquina de escrever, a resposta seria a mesma: “Não, mas pode ser”.
A exemplo do que ocorreu com nosso motor Emi-Sul da Simca (baseado em uma receita dos hot rods), as fórmulas de preparação de motores migraram para dentro da indústria
Seguindo o mesmo raciocínio, encontramos o computador dominando os projetos de automóveis para, em seguida, tornarem-se componentes daquilo que ajudaram a criar, pela injeção eletrônica, pelo ABS e por toda a sopa de letrinhas que compõem os carros de hoje.
A internet é um exemplo ainda maior de que a criatura pode absorver o criador. O fato é que sem o computador — melhor, sem a tecnologia digital — a internet não existiria, só que ela puxou para si toda a tecnologia pela qual ela própria foi criada. Ela domina os processos de produção e está enveredando pelos passos comercial, de controle, racionalização de uso e de manutenção dos mercados de locomoção e transporte. Tudo o que acabo de dizer tem sido amplamente debatido na mídia, só que há um fenômeno muito pouco estudado: o da formação de tribos cibernéticas.
As tribos são a manifestação mais antiga e permanente da sociedade humana. O carro não poderia ficar de fora disso. Esse fenômeno intensificou-se muito depois da Segunda Guerra Mundial, seja pelo impacto do cinema, seja pela melhora das condições econômicas da população, que fez com que o carro deixasse de ser uma demonstração de status pela queda do seu preço. Só que o ser humano odeia ser diferente e tem repugnância ainda maior por parecer igual. Aí, surgiram os hot rods, que punham sobre quatro rodas a ideia de pertencimento que os Hell Angels puseram sobre os assentos de suas motos Indian e Harley-Davidson.
Ocorre que, a exemplo do que ocorreu com nosso motor Emi-Sul da Simca (baseado em uma receita dos hot rods com motor Ford V8), as fórmulas de preparação de motores migraram para dentro da indústria. O que estivera sob capôs decorados com chamas alaranjadas podia ser comprado pelas mais pacatas famílias de classe média. Vieram outras tribos, como as dos corredores de fim de semana na Inglaterra e a dos dragsters e muscle cars nos Estados Unidos, o que não deixa de ser um exemplo de absorção de tribos pela indústria. Os fabricantes continuaram internalizando, como é o caso da AMG, casa de preparação que foi adquirida pela Mercedes-
Tribos sem fronteiras
A internet popularizou as receitas de preparação. Preparadores tornaram-se alvo de milhares de seguidores. Existem tribos interessantíssimas como a dos amantes dos Mazdas com motor rotativo na Flórida, os de Toyota Supra de 2.000 cv na Geórgia, ou mesmo os que preparam Fuscas com até 300 cv — também no Brasil. A diferença das tribos atuais, criadas a partir da internet, é a rapidez com que se comunicam, além de que podem apresentar seus espécimes sem sair de casa para o mundo inteiro. São tribos sem fronteiras, mesmo assim tribos. Elas podem buscar Kombis no Paquistão ou no Brasil para restaurar ou mesmo modificar na Alemanha.
Três coisas são dignas de nota. A primeira é que essas tribos, que chegam aos milhares de aficionados, criaram um mercado crescente e contínuo para itens de preparação. Um exemplo disso são os kits para recuperar motores antigos, como os Hemis da década de 1960, que também acabaram absorvidos pela própria Chrysler. Outro exemplo é o imenso mercado de peças especiais para o Fusca, com itens dos mais complexos e de montagem mais apurada, incluindo modificações nas galerias de lubrificação para melhorar o arrefecimento.
O objeto de agregação não precisa estar em produção — melhor que não esteja, porque a possibilidade de qualquer um poder adquirir o bem reduz em muito sua exclusividade
O segundo ponto diz respeito a que os vídeos de montagem e reparo popularizaram o conhecimento técnico do consumidor. Hoje, são poucos os participantes de uma dada tribo que não conheçam profundamente seu espécime. Antes, o consumidor comprava o carro, levava para um preparador e ia passear com uma verdadeira caixa preta no lugar do capô. Hoje, antes de se decidir pelo que vai fazer em seu carro, o aficionado assiste inúmeros vídeos, passa a seguir preparadores e depois escolhe a receita de preparo que mais lhe agrada, no que até o som do escapamento pode contribuir.
O terceiro ponto — talvez o mais importante — é que se dissociou a participação de uma tribo do fato de seu objeto de agregação estar ou não em produção. Pensando bem, é até melhor que não esteja, porque a possibilidade de qualquer um poder adquirir o bem reduz em muito sua exclusividade. A tribo de consumidores de carros zero-quilômetro da BMW, por exemplo, pode esvaziar-se e ser substituída por quem os prefira antigos e preparados.
A microeconomia ainda não estudou esse evento com a profundidade necessária, enquadrando esse mercado entre o do consumo fútil, também conhecido como conspícuo, e o de concorrência monopolística. Assim como o ser humano continua criando cavalos de raça — apesar de seu uso prático ser muito restrito —, mesmo que os carros elétricos dominem o mercado, substituindo os modelos a combustão nas concessionárias, as tribos vão continuar cultuando a tecnologia anterior. É quase que um rito religioso em que se acendem velas em vez de iluminarem-se os altares com leds.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars