Um dispositivo, mesmo que barato na produção do carro, acarreta custos pela assunção dos riscos de operação
Uns oito anos atrás, conversando com um engenheiro amigo meu, que hoje trabalha na BMW em Munique, estávamos relembrando o funcionamento genial da roda-livre do DKW. O automóvel tinha roda-livre por dois motivos. O primeiro é que, como o motor era de dois tempos, não contava com o resfriamento dos pistões causado pela evaporação do combustível durante a admissão, o que, aliado ao fato de haver uma queima por volta em cada cilindro, fazia com que o conjunto trabalhasse em temperatura muito elevada, podendo até travar.
O segundo motivo diz respeito a que o óleo era misturado à gasolina até a invenção do Lubrimatic, quando, graças a uma bomba à parte, a lubrificação passou a ser indexada à rotação do motor e não mais ao fluxo de combustível. Ora, se antes dependia da mistura, se o motorista tirasse o pé do acelerador para usar o freio-motor, fechando o gargulante do carburador, a quantidade de óleo também diminuía, embora a rotação se mantivesse elevada, tornando a lubrificação deficitária.
Uma peça a mais no carro custa muito mais que seu preço, pois requer mão de obra para instalação e novos dispositivos na linha: o consumidor pagaria por tudo isso?

O mecanismo de roda-livre não tinha nada a ver com as catracas com linguetas das bicicletas, o que seria frágil demais para um automóvel, sem contar com as folgas e o ruído. O dispositivo continha roletes sobre rampas circundadas por um tambor, tal que, aplicando-se torque sobre o eixo primário do câmbio, o tambor fosse impulsionado para a frente, travando o conjunto. Com torque no sentido oposto, o tambor se retraía e o conjunto ficava independente.
Eu imaginei que, instalado ao contrário, com o tambor preso à carcaça do câmbio, o eixo primário giraria sempre no mesmo sentido, fazendo as vezes de assistente de saída em rampa. Não sabia eu que os engenheiros da Studebaker já haviam tido essa ideia em 1949. Na época, meu interlocutor ainda trabalhava na Volkswagen e eu comentei que isso poderia servir para os carros com câmbio manual. Ele então comentou que, se desse essa ideia, seria no mínimo ridicularizado e, no máximo, demitido, porque a empresa não queria nem ouvir falar em peças a mais, só a menos. Além disso, com uma pequena alteração de programação, o sistema antitravamento de freios (ABS) já faria esse papel com custo muito menor.
De fato, uma peça a mais traz acréscimo de custo muito maior do que seu preço, pois requer mão de obra para instalação, novos dispositivos na linha de montagem, horas-homem nos departamento de compras e almoxarifado, entre outros. Será que o consumidor pagaria por tudo isso? Já uma alteração no ABS para fazer o sistema de freio segurar o carro por alguns segundos, até que o torque aplicado às rodas movesse o conjunto na direção desejada, parece sair muito mais barato. Quando pensamos em peças, é verdade. Mas, quando pensamos na quantidade de testes necessários para o sistema ser confiável, aprendemos que há um bom custo a ser amortizado.
Indenizações milionárias
Os incêndios com o novo Chevrolet Onix, bem como os problemas com aceleração inesperada dos Toyotas há cerca de 10 anos, são uma prova de que a calibração errada pode ser desastrosa, levando o fabricante a prejuízos inimagináveis. É de se esperar que a empresa se queira remunerar pelo custo de desenvolvimento, que bem pode ter sido arcado por um ou vários fornecedores ao longo da cadeia de suprimentos. Seria possível estimarmos qual é a parcela desempenhada pela fabricação de software no orçamento de desenvolvimento do projeto de um automóvel novo?
Podemos dividir essa parte em duas etapas. Na primeira, o desenvolvimento fica a cargo da cadeia de suprimentos. Um fabricante de sistemas de injeção, por exemplo, demanda projeto de semicondutores que permitam calibração, tal que o conjunto possa ser usado numa larga variedade de motores. O fabricante de motores, por sua vez, trabalha nos ajustes, até que que se chegue ao maior desempenho possível no uso diário. Esse custo, mesmo que transposto para fabricantes indianos ou vietnamitas de software, pesa muito — mas não tanto quanto o da segunda etapa, que corresponde ao risco a que a empresa se sujeita quanto a possíveis indenizações milionárias.
Se for vendida a ideia de que a máquina contribui mais para a segurança que o motorista, o fabricante estará comprando parte do risco de operação do veículo

O consumidor há de reclamar sob o justo argumento de que, em o carro já contando com ABS e distribuição eletrônica de frenagem (EBD), o acréscimo de custo causado pela introdução do controle eletrônico de estabilidade (ESC) é pífio. No que tange à construção do veículo, sim, o custo é baixo. Os testes inerentes à calibração correta podem ser diluídos pelo número de veículos vendidos. A assunção do risco de operação, porém, é proporcional ao uso: quanto mais carros usando dado equipamento estiverem nas ruas, maior será a probabilidade de falha que redunde em indenização. Nada mais justo que a empresa queira se resguardar.
Se nos for vendida a ideia de que a máquina pode contribuir para a segurança dos ocupantes mais que a habilidade do motorista, teremos que o fabricante está comprando parte do risco de operação do veículo. Supõe-se que a frenagem autônoma de emergência evite colisões, que o EBD permita que se freie nas curvas, que o ESC corrija efeitos de uma curva malfeita. E se algum item da sopa de letrinhas que compõe os carros atuais falhar, quem arca com o prejuízo? Até que ponto se pode atribuir ao mal uso? Até onde vai a responsabilidade do fabricante pela infalibilidade do equipamento? Essas dúvidas geram disputas que vão de uma simples convocação à indelével perda de confiança do mercado sobre o produto ou a marca.
É natural que se queira cobrar um prêmio pela assunção dos prejuízos causados, eventualmente, por falhas em um dos dispositivos que compõem o crescente pacote de automação embarcada. Nós, como consumidores, não temos como calcular isso e, sinceramente, duvido que algum método de contabilidade de custos possa fazê-lo modelo a modelo, dispositivo a dispositivo. Trata-se da internalização de um cálculo atuarial que, geralmente, se atribui às seguradoras. Por causa disso, naquilo que a lei não obriga, resta à soberania do mercado determinar se o esforço no desenvolvimento gera valor suficiente ao consumidor para ser absorvido.
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