Fala-se sempre na “opção do Estado pelo automóvel”, mas será que houve uma escolha consciente do transporte sobre rodas?
Não há um dia em que, conversando sobre meios de transporte no Brasil, eu não ouça uma frase sobre “a opção do Estado pelo automóvel”. Como não gosto de verdades absolutas, fui investigar. Será que houve uma escolha consciente do transporte de carga e passageiros sobre trilhos? Terá sido o GEIA (Grupo Executivo da Indústria Automobilística, estabelecido em 1956 pelo presidente Juscelino Kubitschek) causa ou consequência?

O que terá vindo antes, a rodovia ou a ferrovia? Partindo do princípio de que o transporte sobre rodas tem mais de 10 mil anos e as ferrovias menos de 300, naturalmente a rodovia veio antes — haja vista que no Império romano já havia rodovias pavimentadas e aí está a via Ápia que não me deixa mentir. Contam que Adriano caminhava descalço sobre ela para atestar a qualidade do pavimento. No Brasil, a primeira estrada pavimentada com macadame foi construída no fim do século XVIII, permitindo o tráfego de carroções até o trapiche de Santos.
A ferrovia nasceu do fato de as primeiras máquinas a vapor serem grandes e pesadas demais para o material de pavimentação de então, sem contar a dificuldade de manobrar. As ferrovias resolveram tudo isso porque rodava aço sobre aço num espaço muito pequeno. Além disso, os trilhos garantiam que todos os carros do comboio fizessem exatamente o mesmo trajeto. Quando se queria velocidade, a rodovia continuava a opção na Europa, especialmente na França de Napoleão, em que — ao contrário dos Estados Unidos com o Poney Express — se usavam minúsculas charretes para levar cartas e pequenos objetos.
No Brasil os trens tiveram seus dias de glória: de início, acompanharam a expansão da produção do café pelo que se chamava de Oeste Paulista
No Novo Mundo a ferrovia foi instrumento de colonização, começando pela Union Pacific. Aproveitando o relevo favorável, a um só tempo servia para ocupar o Meio-Oeste e eliminar o alimento dos índios, ao cortar a rota de migração dos búfalos. Ela era privada e o governo concedeu dez milhas para cada lado, de modo que a terra pudesse ser concedida aos imigrantes que trabalhavam na construção.
No Brasil os trens tiveram seus dias de glória. Primeiro acompanharam a expansão da produção do café pelo que se chamava de Oeste Paulista, criando-se estradas como a Mogiana, construída pela família Prado, que atendia também o sul de Minas Gerais, e a Araraquarense, que percorria terras privadas como as fazendas Reunidas e a Fazenda Ponte Pensa. Elas deram origem a cidades como Bebedouro, Rio Preto e Votuporanga.
Modelo semelhante levou as ferrovias para o estado de Minas, primeiro como Estrada de Ferro D. Pedro II, depois como E.F. Central do Brasil. No início do século XX passou-se ao modelo norte-americano de colonização, em que o governo garantia um rendimento mínimo de 6% ao ano para a ferrovia, além de dar 15 km para cada lado, cuja ocupação produtiva forneceria a mercadoria a ser transportada pelos trens.
Aí nasceram a Sorocabana, a Noroeste e outras no Norte do Paraná e em direção de Porto Alegre. Nunca houve matança de índios como nessa época: até 1938 havia, na folha de pagamentos da Noroeste, o cargo de “bugreiro”, cuja função era desalojar índios mesmo que os matasse. No caso da São Paulo-Porto Alegre, a iniciativa resultou na Guerra do Contestado, que ceifou milhares de vidas entre os ocupantes tradicionais da terra, cuja posse foi contestada pelo governo federal, doando-a ao empreendedor norte-americano Percival Farquhar.
Rodoviaristas vs. ferroviaristas
A qualidade das construções das ferrovias era a menor possível, porque o relevo brasileiro, com seus mares de morros, jamais favoreceu esse tipo de transporte — trens não sobem ladeiras. Um traçado racional exigiria a construção de pontes e túneis que jamais se realizaram, preferindo-se contornar os morros. As curvas requeriam bitola estreita. Tudo isso aumentava as distâncias e diminuía a velocidade, assim como a capacidade de carga.
Além disso, por serem privadas, as ferrovias concorriam entre si e não havia entroncamentos, sendo o mais conhecido o de Bauru. Clamava-se por construí-los, como no projeto de ligação entre a Araraquarense, a Noroeste e a Sorocabana, saindo de Novo Horizonte, passando por Promissão e chegando a Marília, o que nunca saiu do papel por conta da concorrência privada. Não havia meio de interligá-las sem o uso de rodovias.
Em 1934 as rodovias públicas já se igualavam à malha ferroviária em distância. As pessoas preferiam usar as jardineiras para ir de uma cidade a outra, sem se sujeitar à morosidade e imprevisibilidade dos trens. Aos poucos construíram-se rodovias margeando as ferrovias, como a SP-300 (Marechal Rondon). Antes da Segunda Guerra Mundial a discussão tornou-se política, com rodoviaristas brigando com ferroviaristas. Os primeiros defendiam a retificação das estradas de ferro e a abertura de rodovias para alcançar o novo trajeto. Os segundos concordavam parcialmente com que eles precisavam ser melhorados, mas defendiam a construção de ramais das estações já existentes até o novo traçado para recomposição dos comboios.
Quando a cana-de-açúcar tomou o lugar do café, as ferrovias perderam sua função: era muito mais barato levar a cana de caminhão para as usinas

Então o café entrou em decadência em São Paulo e Paraná, mudando-se para Minas Gerais. A cana-de-açúcar, migrando do Nordeste para o Sudeste, tomou seu lugar. As ferrovias perderam sua função: era muito mais barato levar a cana de caminhão para as usinas do que fazer um transbordo a mais para os trens. Os caminhões teriam de entrar na lavoura e levar a cana para um ponto de transbordo para que os trens a levassem para as usinas, prática comum no Nordeste. Para ver como funcionava, recomendo o livro A Usina de José Lins do Rego. Isso era notoriamente inviável para a escala de produção a que o Sudeste se destinava.
Ao mesmo tempo, a construção de rodovias custava um oitavo da de ferrovias, a ponto de os produtores de álcool e açúcar assumirem a abertura e a manutenção das estradas vicinais. Tudo pressionava a importação de caminhões, que começaram a ser produzidos em Xerém, RJ, na Fábrica Nacional de Motores em 1949 com tecnologia da italiana Isotta-Fraschini. Aí veio a construção de Brasília e era preciso levar material de construção para lá. A solução foi abrir a BR-050, continuação da Via Anhanguera, que já ia até Uberlândia, MG, enquanto se prolongava a BR-040 que ligava o Rio de Janeiro a Belo Horizonte.
A meu ver, o GEIA não fez outra coisa além de refletir uma tendência fortíssima. Isso só se agravou com a constante ameaça de internacionalização de nosso território por falta de ocupação. As estradas passaram a sair de Brasília em direção ao desconhecido, como a Belém-Brasília. Como se não bastasse, a cana teve sua área plantada decuplicada porque Cuba perdeu sua cota de exportação de açúcar para os Estados Unidos em 1961. O Brasil despontou como a única fonte capaz de suprir a demanda interna e ainda abastecer o mercado norte-americano.
Mais cana, mais rodovias; mais cana, maior a ocupação da fronteira agrícola para as commodities. A produção de automóveis é muito mais próxima do cidadão comum — daí chamar tanto a atenção —, mas não foram eles que motivaram a construção de estradas. A rigor, não houve uma opção consciente pelas rodovias: elas vieram por uma conjunção de fatores históricos, econômicos e de política interna e internacional.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars