O programa de incentivo à indústria automobilística está em discussão em salas fechadas, deixando o público de fora
Muito tem sido discutido, nos últimos meses, sobre os erros e acertos do Inovar-Auto — o programa de incentivo à indústria automobilística lançado em 2012 e agora encerrado — e sobre as perspectivas para seu sucessor, o Rota 2030. Entretanto, um aspecto importante parece ter passado despercebido até aqui.
O Inovar-Auto era um verdadeiro cipoal entre decretos e portarias, mas nasceu de um projeto de lei que seguiu todos os trâmites do Poder Legislativo, primeiro, e do Executivo depois. Quaisquer que fossem seus defeitos, não se pode dizer que fosse uma caixa-preta. Baseava-se na lei federal nº 12.712/2012 e tudo o que se fez a respeito foi público, a ponto de haver até um domínio na Internet para qualquer um poder consultar. O Rota 2030, ao contrário, está em discussão em salas fechadas, participando ministérios e empresas e deixando o público de fora.
Enquanto os empresários mantêm a exigência de isenções para — segundo eles — não fechar as portas, esbarramos na mesma tecla: a falta de transparência do setor
O que se vê até agora, apesar de todos os anúncios de o acordo estar próximo, são propostas de uns e de outros, enquanto terceiros vetam parcialmente as decisões dos outros grupos. Cabe perguntar: onde está a íntegra do texto em debate? Não seria o caso de qualquer cidadão poder consultar e formar sua própria opinião a respeito? Tudo indica que isso será resolvido via canetada do Executivo. Se a coisa for assinada pelo Presidente da República logo depois do Carnaval, como noticiado, não passará pelas vias normais do Congresso como aconteceu com o Inovar-Auto.
![O Rota 2030 está em discussão em salas fechadas, participando apenas ministérios e empresas (foto ilustrativa da fábrica da Land Rover)](https://autolivraria.com.br/bc/wp-content/uploads/2018/01/Fabrica-Land-Rover-Brasil-340x226.jpg)
Até agora, por parte dos empresários, o discurso que vem a público de forma fragmentária não mudou uma vírgula sequer, mantendo a exigência de isenções para — segundo eles — não fechar as portas. As declarações trazem ainda vícios recorrentes na economia brasileira, como refinanciamento ou perdão de dívidas e isenções para que pesquisas sejam feitas na melhoria e modernização dos produtos oferecidos. E aí esbarramos na mesma tecla em que venho batendo desde sempre: a falta de transparência nos números do setor.
Será que os resultados obtidos até hoje por toda a cadeia produtiva dos automóveis justificam o R$ 1,5 bilhão ao ano em renúncia fiscal, solicitados pela indústria e negados pelo Ministério da Fazenda? A penúria por que passa a Federação e, mais notadamente, os estados não deixa dúvidas acerca da inconveniência do pleito.
Ainda sem acesso a fontes primárias, só por ouvir dizer, há pontos que defendemos como deixar de cobrar impostos por cilindrada ou potência, mas de acordo com o dispêndio de energia por quilômetro. Escolheu-se usar megajoules por quilômetro (MJ/km). Isso é mais racional do que acontece na Europa, onde a tributação é determinada por peso de carbono resultante do trabalho executado. Pelo critério europeu um carro elétrico ficaria isento, apesar de sua fonte primária de energia resultar em emissão de óxidos de carbono.
É que não adianta nada em termos energéticos trocar um motor a combustão elaborado por um sistema elétrico tosco, mesmo que por definição motores elétricos sejam mais eficientes. Por mais que eu concorde com isso, não penso que seja um assunto inerente à indústria de automóveis, mas ao marco legal destinado à proteção do ambiente e aos recursos naturais destinados à geração de energia.
Homogeneização tecnológica
Juntamente com executivos de multinacionais recém-instaladas aqui ao abrigo do Inovar-Auto, que agora pranteiam terem sidos deixados à própria sorte com o fim do programa, há os representantes das usinas que anseiam pelo desenvolvimento de carros somente a álcool. Isso coaduna perfeitamente com a tributação baseada em MJ/km, distinguindo os carros puramente a álcool dos flexíveis, e amplia o mercado para o combustível vegetal, não importando se de primeira ou segunda geração. Partindo do mesmo raciocínio, não se conseguiria distinguir tributariamente os motores Diesel que empregassem o diesel de cana, pois, assim como acontece nos carros flexíveis, o motor funciona teoricamente com um ou outro.
O caleidoscópio de fragmentos de informação dá conta de que não se conseguiu um acordo de homogeneização tecnológica entre o Brasil e seus parceiros comerciais. Isso nos faz antever que parte dos ditames, se forem aprovados internamente, poderão não entrar em vigor por não serem oferecidos em veículos importados — como já acontece com a obrigatoriedade dos controles eletrônicos de tração e de estabilidade, que têm data para tornarem-se obrigatórios no Brasil, mas não no restante do Mercosul.
Primeira sugestão: em vez do índice baseado no valor dos componentes locais, adotar o cômputo da parcela desenvolvida aqui para privilegiar a engenharia nacional
Mas o governo é mais ambicioso e, neste ponto, com razão. Não faz sentido aprovar um programa para 15 anos sem que ele caminhe a par com os acordos comerciais em âmbito global. Se assim for, cai por terra o “depenamento” recorrente dos veículos que são importados para o Brasil.
Ao ver do colunista, temos mais uma vez uma chance de mudar o jogo a nosso favor, haja vista que, em condições normais de temperatura e pressão, o Brasil possui o quarto maior mercado mundial de automóveis e torna-se impensável simplesmente jogá-lo fora, ou melhor, deixá-lo de presente para a concorrência — pois cada empresa que sair aumentará o mercado para os que permanecerem. Se houvesse a transparência necessária à construção de um programa consistente de desenvolvimento, haveria uma consulta pública. Se houvesse uma consulta pública, todos poderíamos sugerir.
Se nos fosse dado sugerir, minha primeira sugestão seria a de alterar o conceito de índice de nacionalização baseado no valor dos componentes fabricados aqui pelo cômputo da parcela desenvolvida no Brasil, independentemente do país de origem da peça, para que se privilegiasse a engenharia nacional (leia coluna). Minha segunda sugestão seria a de que a tributação se baseasse em um veículo padrão, aplicando-se ágio e deságio nas alíquotas consoante o cumprimento de metas de desempenho, segurança e economia. Estas, por sua vez, seriam um alvo móvel, levando a indústria a competir em qualidade e preço e não pelo poder político em conseguir benesses para o setor.
Finalmente, essa é a grande oportunidade para abrir a caixa-preta da indústria brasileira de automóveis. Bastaria condicionar a participação no programa às que decidirem por abrir seu capital internamente e passarem a, além de publicar balanços e sujeitar-se à nossa padronização das demonstrações contábeis (Lei nº 11.638/2006), permitir que os investidores brasileiros participem de um mercado tão significativo.
Infelizmente, as decisões tomadas por trás dos bastidores indicam que, mais uma vez, seremos tidos como o país das oportunidades perdidas.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars