Análise no Salão revela que fabricantes começam a atender as necessidades de consumidores como um todo
Quem me lê sabe que sou tenaz defensor de que os carros sejam acessíveis, não só para quem os dirige como para quem os ocupa como passageiros. Aproveitando o Salão do Automóvel de São Paulo, fomos verificar como anda o relacionamento da indústria com os 25% da população que possuem algum tipo de deficiência — parcela que só tende a subir com o acréscimo de longevidade do ser humano, bem como pelo fato de a Medicina ter evoluído a ponto de manter vivos, com sequelas, indivíduos que, até poucos anos atrás, não teriam sobrevivido a acidentes ou a moléstias então tidas como incuráveis. Usamos dois critérios, o W3C e o Desenho Universal.
Quem é do ramo do desenvolvimento de software deve estranhar usarmos uma instituição que padroniza o acesso à internet como meio de avaliação para automóveis. Ocorre que, como se costuma dizer, carros estão-se tornando celulares sobre rodas e um termo passa a ser cotidiano nas discussões que envolvem a interface com o usuário: responsividade. Isso significa que, qualquer que seja a plataforma, o sistema tem que funcionar com as mesmas características e funcionalidades.
O colunista no Mercedes C200, um dos 19 carros analisados no Salão; à direita, tela do painel do VW T-Cross com instruções dos comandos por voz
Um dos critérios aceitos pelo W3C (World Wide Web Consortium) é que haja três formas para atingir o mesmo objetivo. Em geral, são o mouse, o teclado e a tela sensível ao toque, podendo-se substituir um deles pelos comandos de voz como o Cortana da Microsoft, o Siri da Apple e o Ok Google do Android. O uso de telas sensíveis ao toque pelos automóveis facilitou muito o trabalho dos estilistas, mas sem assumir completamente um padrão de interface com o usuário, o que se resolveria com facilidade, caso a SAE fosse um dos 400 integrantes do W3C. Dispositivos como Apple TV e Chromecast levaram a cara da internet para os televisores, e a internet das coisas ampliou o conceito até para máquinas de lavar, fornos de micro-ondas e torradeiras. Por que não os carros?
O Desenho Universal inclui o acesso físico, como um cadeirante entrar e sair sem adaptação ou ajuda externa, e procura evitar a “ditadura da maioria”
Não sejamos injustos. A SAE padronizou os ícones dos comandos há mais de 30 anos, permitindo que fossem entendidos pelo comprador com quaisquer idioma e forma de escrita. Por tabela, foram inclusos entre os possíveis consumidores os que têm dislexia, deficiência neurológica que impede a leitura, mesmo que o indivíduo enxergue perfeitamente. Foi um passo inconsciente na direção do Desenho Universal, conceito que inclui o maior número possível de pessoas que uma dada tecnologia permitir — não a simples maioria, como sempre se adotou na indústria.
O Desenho Universal inclui o acesso físico, como um cadeirante poder, sem adaptação do veículo, entrar e sair autonomamente, assim como o espectro de estatura precisa incluir anões e “gigantes”. O Desenho Universal procura evitar a “ditadura da maioria”, como queria Bertrand Russel (1872-1970), matemático e filósofo britânico, vencedor do prêmio Nobel de literatura em 1950.
Redundância de comandos
Nossa pesquisa no Salão mostrou que 80% dos carros expostos adotam integração a Apple Car Play e Android Auto. Até que ponto isso favorece a acessibilidade? Ambos os produtos espelham os celulares com todas as suas funções na tela do painel, de sorte que o motorista pode usar dois produtos interessantíssimos, o Talkback do Android e o Voiceover da Apple. Ambos, respeitando o W3C, permitem que o usuário ouça a descrição por voz sintética do que está sob seu dedo que, ao ser levantado, seleciona o item e, com dois toques em qualquer ponto da tela, ativa a opção selecionada. Isso permite que a tela seja operada sem se olhar para ela e, principalmente, que pessoas com tremores, mesmo com o carro em movimento, possam ativar a seleção com segurança. Seria ótimo para todos, caso incorporassem os menus exclusivos dos automóveis.
Constatamos também que 70% dos automóveis contam com redundância nos comandos por toque na tela. Para isso, mantendo a ideia de três formas de se alcançar os objetivos, consideramos o acesso pelo volante, como nos Porsches, que permitem navegar por menus; por comandos de voz, como os da Mercedes-Benz; teclado adicional, como os da Chevrolet e da Ford; e botões giratórios, como nos BMW. Alguns carros têm combinações de todas as soluções, algumas mais, outras menos completas. A Mercedes, por exemplo, é a única a apresentar absolutamente todos os comandos de tela com redundância por voz.
O cão-guia coube no piso à frente do banco traseiro, salvo no Mercedes (na foto, Porsche Cayenne); em Equinox e Cruze (à direita) ele pôde ficar entre o banco do carona e o painel
Alguns carros merecem destaque pela originalidade na forma com que permitem acesso aos comandos. Um exemplo é a própria Porsche, que põe a tela tátil ou via teclado como algo configurável e, quando a opção é pelos comandos por toque, são sob pressão e não por contato, que induz a muitos erros a e alijam de seu uso os que tremem. Há ainda os carros da Subaru que têm botões bisotados ao redor da tela principal, permitindo comandar todas as funções sem que se tenha de enxergar os menus.
A integração a Car Play e Android Auto permite usar o Voiceover e o Talkback, para que o usuário ouça a descrição e opere a tela sem olhar para ela
Quando o assunto é Desenho Universal, a coisa fica mais complicada. Testamos a possibilidade de emparelhar uma cadeira de rodas com o assento dianteiro (motorista ou passageiro). Raros foram os carros em que isso foi possível, ora porque a porta não se abria em ângulo suficiente, ora porque a porta era espessa demais por conta de porta-objetos ou alto-falantes, ora pela falta de alça de teto, ou ainda pela posição de coluna dianteira. Para que a acessibilidade seja razoável, é preciso que o ocupante, seja cadeirante ou não, possa entrar ou sair do veículo sem ter de virar os pés por falta de espaço. Os carros da BMW foram os mais prejudicados nesse quesito, pela proximidade entre a coluna dianteira e a central, embora a acessibilidade ao banco traseiro seja a melhor entre os carros examinados.
Todos os carros, exceto o Mercedes C200 Avantgarde, apresentaram espaço suficiente para pôr o cão-guia sobre o piso à frente do banco traseiro, mas somente os Chevrolets Cruze e Equinox permitiam pô-lo entre o banco do carona e o painel. Em geral, a bolsa inflável desloca o porta-luvas para baixo, em alguns casos até de modo desconfortável para os pés do passageiro. Havia também alguns carros adaptados, como uma Chevrolet Spin, um Ford Ecosport e um Fiat Cronos, este com um interessante sistema que põe o banco dianteiro para fora permitindo emparelhar a cadeira de rodas. Finalmente, a Ford apresentou uma cobertura de porta-malas do Ecosport que pode transformar-se em rampa de embarque, muito original por ser dobrável e possível de encaixar no encosto da cadeira.
O pessoal de apoio dos fabricantes está de parabéns pelo preparo e precisão nas informações, Havia até especialistas em atendimento a pessoas com deficiência (PCD), o que demonstrou que a indústria de automóveis está despertando para atender as necessidades dos consumidores como um todo e deixando de imaginar carros para atletas. Provas do caminho na direção do Desenho Universal são detalhes como poder passar o pé por baixo do para-choque e abrir a tampa do porta-malas. Sem dúvida, há um longo caminho a percorrer, mas o Salão mostrou que o primeiro passo foi dado.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars
Fotos: Guilherme do Valle