O trânsito caótico dos grandes centros colabora para o aumento da preferência pelos carros automáticos
A imprensa de tecnologia usa a expressão em inglês hard user para designar aquele cara que usa muito um dispositivo ou serviço, em volume e intensidade. Algo como uso pesado (heavy duty), trazendo para o universo automobilístico. Eu fui um hard user de pedal de embreagem durante 20 anos pelo pesadíssimo tráfego de São Paulo, indo e voltando todos os dias da zona norte à zona sul, usando vias das mais congestionadas do hemisfério, como o Corredor Norte-Sul e as Marginais dos rios Tietê e Pinheiros, nos horários mais detestáveis — se é que exista algum horário em que ainda seja possível trafegar sem se sentir detestável por essas bandas.
Por tanta experiência adquirida com o músculo da panturrilha esquerda, passei a abominar carros com transmissão manual. Enjoei, de verdade. Simplesmente não consigo mais. E esse dado parece ser endêmico, pois sobe sem parar a porcentagem de opções automáticas no portfólio de carros à venda no País, em muito devido ao caos das vias nas regiões urbanas. A discussão manual versus automático é bem comum entre aqueles que gostam de carros e afins, porque há uma contraposição entre os conceitos de carro como esporte e carro como transporte.
Em que lugar poderia um motorista comum fingir de piloto? Nas ruas cheias de crianças, quebra-molas e crateras? Ou nas avenidas limitadas, se muito, a 80 km/h?

Os que gostam de carro como esporte militam no argumento de que, ao trocar manualmente as marchas e acionar a embreagem, exercemos uma espécie de ritual automotivo e aproximamos o motorista de um piloto. Faz algum sentido — embora seja difícil obter alguma emoção visceral tentando “pilotar” algo como um Fiat Palio Fire, para trazer um exemplo prosaico de carro lento e anestesiado no contato, com alavanca longa e borrachuda, associado a uma embreagem de curso longo.
Trafegando o exemplo para um oposto, mesmo que o carro em questão fosse um Honda Civic SI com sua tradicional caixa manual, em que lugar poderia um motorista comum fingir de piloto? Nas ruas cheias de crianças, quebra-molas e crateras? Ou nas avenidas de trânsito rápido, que raramente permitem algo acima de 80 km/h? Isso fora das capitais, claro. “Na estrada, oras!”, diria o atento leitor. Sim, mas quem troca marchas o tempo todo rodando em cruzeiro? O que sobra ao motorista, em mais de 90% do tempo no centro urbano, é o desprazer de ficar pressionando inúmeras vezes um pedal com o pé esquerdo e mudando entre primeira e segunda.
Por isso, minha visão é que os manuais acabarão virando uma opção de conveniência por preço e nada mais, restritos a segmentos de nicho ou de entrada. Nos segmentos médios e superiores, continuarão rareando até desaparecer. A consultoria Jato Dynamics apontou em pesquisa que em 2006 os automáticos representavam 8,6% do total de carros vendidos, parcela que subiu para 40% em 2017.
CNH só para automáticos
Aos que acham que a tendência não é tão favorável à caixa automática, lembro que tramita no Congresso um projeto de lei que prevê Carteira de Habilitação exclusiva para guiar carro com esse tipo de transmissão — o que acho uma excelente ideia. Tirando o fato de que o candidato deve ser proficiente na regulamentação de trânsito e nos elementos básicos de saúde, como visão, quase toda a energia da atual prova prática vai para provar perícia em guiar um carro sem que o motor morra pelo caminho.
Todos sabemos que o terror do aprendiz de motorista é usar corretamente a famigerada embreagem. Quantas pessoas são reprovadas por puro nervosismo, quando seriam perfeitamente aptas se fosse preciso apenas acelerar e frear o veículo.
Minha visão é que as caixas manuais se tornarão opção de conveniência por preço e nada mais, restritas a segmentos de nicho ou de entrada
Àqueles que consideram carro como transporte, o troca-troca de marchas e o pisa-solta da embreagem são algo totalmente execrável. Ideal seria para esse tipo de usuário que andasse de passageiro, enquanto um motorista contratado fizesse o serviço de levá-lo do ponto A ao B, com o mínimo de estresse. Se não podem ter esse funcionário — ou não querem usar táxi ou carro de aplicativo —, quanto menos esforço, melhor. Daí toda a automação é bem-vinda, já que não há interesse na experiência de dirigir.
Para os que optam pelo caminho do meio, há muitas boas opções de transmissões automáticas com acionamento manual quando desejado, que agradam aos motoristas que não abrem mão de interferir no desempenho do carro ou, simplesmente, preferem controlar a serem controlados. Eu não faço proselitismo à caixa automática — passei a preferi-la por questões de saúde e ergonomia. Sendo sincero, gostava de trocar marchas e, provavelmente, ainda seria um contente usuário se morasse num lugar com trânsito amigável e rápido.
Hoje, porém, passei a ver a transmissão automática como uma escolha mais natural, da mesma forma como não consegui mais abrir mão da direção assistida, do ar-condicionado e outras comodidades que, quando são experimentadas, deixam aquele gosto de “como vivi sem isso até hoje?”.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars