O opcional mais desejado dos anos 90 virou item básico nos carros de hoje: o cativante ar fresco no painel
Depois de um longo período de pausa, encontrei um bom motivo para voltar ao Best Cars. Afinal, se não vivemos de carros, vivemos nos carros. Milhares, milhões deles em todas as avenidas, ruas, ruelas, estradas, estacionamentos de supermercados e shoppings centers. Nas grandes metrópoles temos vivido mais tempo com nossos carros do que com nossas famílias. Em maior ou menor grau, os automóveis viram partes de nossos corpos sem as quais fica impossível viver o cotidiano para boa parte das pessoas.
Para nós que amamos o assunto, essa relação com nossos autos fica ainda mais visceral. A maioria nem se importa, mas nos irritam as embreagens que trepidam na arrancada, o ar-condicionado que não gela no verão, o maldito óleo que baixa mais que o esperado e as pastilhas de freio que chiam quando nos aproximamos do farol fechado. Se você é do tipo que gosta de falar em mesa de bar que “tal motor é manco em baixa”, seja bem-vindo.
Nos dias de hoje o ar-condicionado é tratado como se fosse um volante, ou uma das quatro rodas. Um equipamento indispensável. A esmagadora maioria dos carros à venda traz o equipamento de série, até mesmo os modelos de entrada, salvo uma ou outra exceção.
Os mais novos motoristas talvez nem se lembrem, pois muitos já nasceram na era dos populares de luxo, aqueles mil-cm³ da segunda metade dos anos 90 que tinham, além das versões básicas (essas efetivamente populares, no conceito do produto), versões fetichizadas para a classe média emergente, com supercalotas, para-choques pintados, vidros, travas e retrovisores elétricos, a almejadíssima direção assistida e ele, a estrela-mor: o ar-condicionado. Pouco importava se os motores mal ultrapassassem 50 cv. O popular “raiz”.
Só aqueles que desfrutaram da experiência de dirigir um mil da década de 90 com o ar-condicionado ligado são capazes de compreender o significado da expressão “dupla personalidade”. Em geral, eram carros fraquíssimos como o ar desligado e perigosos com o ar ligado. Minhas duas experiências pessoais foram um Ford Ka Image 2000, já equipado com o outrora elogiado Zetec Rocam (um foguete perto do substituído Endura), e um Volkswagen Gol Plus 1995, na primeiríssima versão mil da segunda geração, com o motor Ford AE (ou CHT) que produzia incríveis 49,5 cv — o que seria de mim sem esse meio cavalo?
Só os que dirigiram um carro mil da década de 90 com o ar-condicionado ligado são capazes de compreender o significado de “dupla personalidade”

Com o Ka, tamanho era o roubo de potência, tinha-se a impressão de engatar um reboque de uma tonelada ao mero apertar do botão liga-desliga. Justiça seja feita: o ar refrigerava muito bem. Depois de andar no Ecosport 2004 de um amigo, concluí que o aparelho do Ka seria suficiente para gelar a cabine do Eco, ao passo que o ar do Eco mal daria conta da diminuta cabine do Ka. Com o Gol, não fui capaz de subir a rampa de acesso a um estacionamento, a menos que tostasse meio disco de embreagem. Restou desligar o equipamento e solicitar aos dois amigos que, gentilmente, descessem.
Esses dois carros à época para mim foram exceções, pois nunca gostei de carros com ar-condicionado. Sou drasticamente alérgico e as lufadas frias que saem das grelhas do painel sempre me fizeram um mal danado. Quando digo nunca gostei, talvez queira dizer que o ar nunca foi algo importantíssimo que me fizesse definir uma compra. Com o ar quente, não. Esse eu sempre exigi nos meus carros em função de três coisas: prefiro passar calor a passar frio; carro embaçado é uma desgraça (e detesto as ridículas calhas para chuva) e, acredite, me dava agonia ver o painel do carro vazio, com apenas dois botões giratórios em vez de três.
Aquela impressão de carro básico, versão de entrada, intensificava minha depressão. Quem viu um painel de Fiat Mille sem ar sabe do que estou falando. Como quando economizavam no termômetro e desenhavam qualquer patacoada no lugar, um logotipo, um boneco atando o cinto…
Meu primeiro carro zero-quilômetro, comprado em 2007, ainda era da fase de transição, quando o ar-condicionado era opcional em quase todos os segmentos. Montei meu carro pelo site, selecionando-o exatamente do jeito desejado: três portas, cor sólida, preparação para som e o tal kit visibilidade, apenas com o ar-quente. Pronto! Lá estava o terceiro botão giratório embelezando meu painel.
Os detratores da teoria do aquecimento global carecem mesmo de observação. Não creio ser apenas impressão minha, mas há 10 anos o mundo não me parecia tão quente. Depois desse, jamais consegui ter um carro sem ar-condicionado, tamanho aumento da frequência de dias de forte calor. Tem também o lance da violência nas metrópoles, que nos impede de trafegar deliciosamente de vidros abertos, como aqueles cachorros, com os beiços a trastejar. E o que os técnicos chamam de “amadurecimento do mercado”, popularmente conhecido como concorrência. Não tem ar, encalha na loja.
Mal sabem os modernos que nem faz muito tempo ainda havia carros sendo fabricados com quebra-ventos, né, dona Kombi? Não sabe o que é um quebra-vento? Você é mesmo um millenium…
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