Os carros tornam-se computadores com uma carroceria em volta, mas há um problema: a liquidez da infraestrutura
A indústria automobilística — qualquer que seja a tecnologia empregada na construção de motores ou da fonte de energia — está passando por uma transformação a que todos os ramos da atividade humana estão sujeitos, a convergência tecnológica. Já há quem chame os automóveis de celulares sobre rodas. Muitos acham que se trata de um veículo com computadores dentro, mas a tendência é que se transforme em um computador com um carro em volta.
O que pode parecer uma solução para alguns setores do pensamento humano apresenta-se como ameaça para outros. Para os engenheiros, a convergência tecnológica representa o grande avanço, a “sacada” para manter a indústria funcionando numa sociedade em que a prestação de serviços aumenta progressivamente seu peso no total da economia. Os economistas também admiram esse fenômeno, que demonstra que a sociedade tem uma capacidade ímpar de adaptação.
Quem vai prover os serviços cujo prazo de maturação não atrai os empresários? Interessa ao Estado que atividades de segurança nacional passem para a iniciativa privada?
Existe, porém, uma ameaça pairando no horizonte: a ditadura da liquidez. Esse termo vem do fato de se medir o desempenho de um plano de negócios a partir de sua capacidade de geração de caixa. É só observar que os balanços são apresentados em ordem decrescente de liquidez. Primeiro vêm as contas do disponível; depois, as do realizável de curto prazo, o realizável de longo prazo e, finalmente, o imobilizado. Em outras palavras, para o investidor, o que a empresa tem em máquinas ou imóveis não interessa muito, desde que ela possa pagar suas contas.
A convergência tecnológica passa pela conectividade. Quanto maior a tecnologia compartilhada, maior a necessidade de investimentos de longo prazo em infraestrutura. Ocorre que, sabe-se lá em que bases, convencionou-se o prazo de cinco anos como máximo aceitável para recuperar o capital investido — e o exigido pela convergência tecnológica excede em muito esse período. Há investimentos imprescindíveis que não amadurecem em menos de 20 anos, como a rede de distribuição de eletricidade. Outros nunca amadurecem.
Um exemplo é a própria internet: se não fosse o interesse militar norte-americano em um processamento distribuído de dados, num projeto conhecido por Arpanet, você não estaria lendo aqui esse texto. Não se pode esperar que serviços de apoio como o GPS (sistema de posicionamento global), também fornecido pelos militares norte-americanos, recuperem-se em cinco anos ou menos. Contudo, sem ele, não se pode falar em condução autônoma de automóveis. Num mundo em que se busca o Estado mínimo, quem vai prover os serviços cujo prazo de maturação não atrai os empresários? Será que interessa ao Estado que determinadas atividades tidas como de segurança nacional passem para a iniciativa privada?
Sinalização codificada
Certos investimentos trariam mais insegurança, como o lançamento privado de satélites. Outros dependem de acordos entre países e do uso de águas internacionais, como os cabos submarinos de fibra ótica. Mas não precisamos tratar de assuntos tão grandiosos.
Seria viável que os semáforos fossem codificados e uma transmissão unificada alterasse o status de cada um deles entre verde, amarelo e vermelho, tal que os automóveis pudessem obedecê-los por si mesmos. As faixas pintadas no asfalto, assim como as placas de sinalização, podem conter o QR Code (Quick Response Code) para que o carro tenha maior precisão acerca de seu posicionamento, velocidade permitida, mão e contramão nas transversais e outras informações complementares — até como alternativa ao GPS, que pode não estar disponível.
Se a ideia é que o veículo seja de fato autônomo, é preciso que haja uma redundância de informações que garanta sua independência. Pode parecer um paradoxo falar em independência baseada em informações exógenas, mas é a velha história de que “quem tem dois tem um; quem tem um não tem nenhum”. Quanto custa isso? Será que o Estado tem recursos? Se tiver, existe vontade política?
Engenheiros alemães podem estar projetando uma biela em CAD, para imprimir em impressora 3D de uma ferramentaria portuguesa, cujo molde vai para uma forjaria sueca
Tudo indica que não se pode contar com o governo para suprir essas necessidades. Se não for pela lentidão ocasionada pelo aspecto político das decisões, será pelo diferencial de velocidade entre o desenvolvimento tecnológico e os procedimentos burocráticos para as compras públicas. Qualquer coisa nova que o Estado implante, depois de todo o processo de licitação, já estará obsoleta. Ao mesmo tempo, os investimentos são tão vultosos que a iniciativa privada geralmente não tem recursos e, como a maturação é lenta, não se encontram investidores interessados em financiá-los.
A coisa veio à baila no início dos anos 2000, quando a Emron, a maior distribuidora de energia elétrica dos Estados Unidos, usou de subterfúgios para mascarar os maus resultados. As empresas de telefonia do mundo inteiro estão se ressentindo da mudança de pulsos para bits na transmissão de voz que, aliás, também se está substituindo pelo chat. Ao mesmo tempo, a indústria — mormente a de automóveis, por conta de sua capilaridade a jusante e de sua longa cadeia de suprimentos a montante — depende cada vez mais desses serviços porque todo o controle de processos está cada vez mais centralizado.
Não há um robô que opere numa fábrica brasileira cujo funcionamento não se copie em tempo real para a matriz, que pode estar do outro lado do mundo. A cadeia de suprimentos depende da mesma teia (web) e, caso o consumo de bens e serviços não se reporte por ela, a indústria simplesmente para. Engenheiros alemães podem, neste momento, estar projetando uma nova biela em CAD para imprimir em impressora 3D de uma ferramentaria portuguesa, cujo molde vai para uma forjaria sueca.
Assim, tudo o que hoje conhecemos como mecânica de alta precisão, seja embarcada, seja em forma de bens de capital, baseia-se progressivamente em três pilares: eletrônica digital, conectividade e geração/distribuição de energia. Enquanto o primeiro ponto do tripé depende da infraestrutura em educação, o segundo e o terceiro estão fortemente ligados ao investimento público, cuja fonte é incerta.
Impedir que tudo isso desabe é o grande dilema da administração pública do século XXI. Isso vale para a indústria em geral e para a automobilística em particular, porque talvez seja a que, graças à necessidade ancestral de rede de logradouros, é tradicionalmente dependente da infraestrutura pública. Afinal, coletivo é o direito de ir e vir.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars