Fábricas de automóveis viabilizam a cadeia de suprimentos, mas reformas precisam ser graduais
Esta semana, estava comentando com um amigo o funcionamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Tudo indica que ele deixará seu papel de financiador de projetos de longa duração por falta de recursos exigíveis de muito longo prazo, ao ponto de se considerarem não exigíveis. Para entender esse palavrório, vamos entender como funcionam os bancos.
Eles não passam de lojas de dinheiro. Assim, vamos imaginar o funcionamento de uma loja qualquer. Ao contrário de um mascate, uma loja não paga mercadorias à vista para depois vender e auferir lucro pela margem, que tem que ser bem alta para suportar os custos de ir ao fornecedor, pagá-lo e as despesas da viagem de volta, como fazem os sacoleiros. As lojas compram a prazo e vendem à vista, recebendo antes de pagar, de forma que a margem pode ser bem mais baixa, pois só cobra a possível inadimplência e o lucro do comerciante. Se o prazo das compras for alto o suficiente, o lojista pode financiar seus consumidores ou mesmo conveniar-se a bancos, garantindo somente o risco de crédito.
Se os bancos só trabalhassem com dinheiro à vista, ou o valor dos empréstimos seria muito baixo por longo prazo, ou muito alto por prazo curto, tornando o dinheiro uma mercadoria difícil de vender
Os bancos, como lojas que são, compram dinheiro à vista dos depositantes, verificam qual é o tempo médio desse dinheiro na conta e o emprestam para quem dele precise por prazos que, em conjunto, não ultrapassem a permanência média. Todo o mais gira em torno dessa ideia. Se os bancos só trabalhassem com dinheiro à vista, ou o valor dos empréstimos seria muito baixo por longo prazo, ou muito alto por prazo muito curto, tornando o dinheiro uma mercadoria difícil de vender.
Assim como as lojas, os bancos passam a comprar dinheiro a prazo, sob a forma de aplicações e, quanto mais esse portfólio for alongado, maiores poderão ser valores e/ou prazos concedidos. É claro que outros fatores influenciam o comportamento dos bancos, mas todos eles giram em torno da mesma ideia: comprar dinheiro pelo menor preço e vendê-lo pelo maior valor possível. O preço do dinheiro é a taxa de juros.
Os governos do mundo inteiro entendem isso e tratam de montar bancos que comprem dinheiro por prazos e juros que não interessem a nenhuma empresa privada, baseando-se no fato de que governos não quebram, países não desaparecem, portanto, podem garantir riscos. No Brasil, esse papel é assumido pelo BNDES, que se financia pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT); pelo Banco do Brasil, que se financia pelos depósitos de empresas estatais e governos nas três esferas; e pela Caixa Econômica Federal, que retém os recursos do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).
O BNDES financia projetos produtivos de longo prazo, o Banco do Brasil financia atividades de alto risco como a agricultura e a Caixa financia a habitação, cujo prazo é muito longo. O FAT é fruto da arrecadação com o PIS-Cofins, dinheiro este que é uma transferência da circulação de mercadorias para um fundo, cujo rendimento pode ser distribuído anualmente entre os trabalhadores de menor renda ou retirado por ocasião da aposentadoria. O Fundo de Garantia, que financia a Caixa, também tem regras para resgate, o que induz à permanência por longo prazo, permitindo-se financiar a aquisição de moradias.
Recursos drenados
Desde 2016, recursos do FGTS e do FAT têm sido drenados para impulsionar o consumo imediato, reduzindo o prazo de permanência no BNDES e na Caixa, o que diminui fortemente a capacidade de os projetos de longo prazo financiarem-se. Até 2017, o BNDES contava com 100% da arrecadação do PIS-Cofins, caindo para 40% nos dois anos seguintes. No atual governo foram 28% nos dois primeiros anos, passando a zero para os anos vindouros. Os recursos foram desviados para o pagamento de juros sobre a dívida pública.
Isso é um golpe de morte no BNDES; portanto, no financiamento de novos projetos ou da compra de bens de capital. O primeiro programa a sofrer com isso foi o Moderfrota, que, como o nome diz, pretende modernizar a frota de caminhões, ônibus, tratores agrícolas e máquinas de terraplenagem, além de alguns itens que compartilhem partes e componentes com a indústria de automóveis. É o caso de pivôs, grupos geradores, esteiras rolantes, guindastes e muitos outros.
O BNDES contava com 100% da arrecadação do PIS-Cofins, o que foi retirado no atual governo: um golpe de morte no financiamento de novos projetos ou da compra de bens de capital
Como insistimos nesta coluna, a indústria nacional, como um todo, depende da escala oferecida pela presença das fábricas de automóveis como viabilizadoras da cadeia de suprimentos. Mas o BNDES não financia somente o consumidor desses bens — financia também o fabricante. Exemplo disso é parte dos US$ 5 bilhões que a Ford destinou para abandonar seu parque fabril, parcialmente construído com financiamento público via BNDES.
O BNDES também faz o papel de exim bank (banco de importação e exportação). Ele financia a compra de bens de capital no exterior, sem o que jamais teríamos uma indústria de autopeças ou mesmo de automóveis no país. Na exportação, embora haja a crença de que se está dando dinheiro para outros países, ao financiar obras no exterior, fornecem-se recursos para a indústria nacional exportar, ficando a riqueza, em sua totalidade, circulando no Brasil mesmo.
É possível manter os financiamentos de longo prazo sem os agentes financeiros oficiais? Sim, parcialmente, via fundos de investimento, que hoje representam 70% do financiamento ao consumidor no que se chama de FIDC (Fundo de Investimento em Crédito Direto ao Consumidor). É graças a esses fundos que se podem comprar automóveis em até 80 meses e com juros razoáveis. Também são esses fundos que passaram a construir galpões, muitas vezes, para uso exclusivo de uma dada empresa, que o aluga em sequência.
Já os projetos, que envolvem estudos de viabilidade, não são abrangidos por esses fundos. Para que funcionem, é preciso torná-los palatáveis ao mercado financeiro. Nesse ponto entram dois fatores essenciais, uma moeda forte e uma estabilidade política, que permita venderem-se papéis cujo prazo seja independente da maturação do investimento em si.
Ao contrário do que se propagandeia, isso não tem nada a ver com tributos ou custos de logística. Tem a ver com segurança, simplesmente, posto que o projeto tem viabilidade econômica em essência — ao menos parcial, pois sempre haverá investimentos de base que não são palatáveis aos fundos. O papel de exim bank, por exemplo, tem participação estatal até mesmo nos Estados Unidos. Lá, sem a participação estatal, entidades como a Nasa (Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço na sigla em inglês) ou mesmo a internet não existiriam. Resumindo, a Economia detesta solavancos, de forma que a reforma das instituições precisa sempre ser gradual.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars