Com o acordo pretende-se a exoneração fiscal de carros e autopeças, o que pode resultar em menor fabricação local
Desde Adam Smith os economistas discutem o comércio internacional. Primeiro foram as vantagens absolutas: defendia-se que quem tem vende para quem não tem, e que tentar ter custa mais caro que comprar. Vieram as vantagens comparativas de David Ricardo, teoria pela qual países deveriam trocar produtos conforme seu custo de produção. Ou seja, se a produção da lã, que dependia do maquinário instalado na Inglaterra, fosse trocada pelo vinho, que dependia do clima ameno de Portugal, ambos sairiam ganhando — Inglaterra por consumir vinho de melhor qualidade a um preço mais baixo, Portugal ao contar com tecido de lã mais barato para suas roupas.
Recentemente, Michael Porter apresentou a teoria das vantagens competitivas, em que a inovação, a administração, o marketing e o acesso à matéria-prima barata trazem, juntos, o poder de impor produtos. Todas as teorias têm algo em comum com roupagem mais ou menos sofisticada: quanto maior o valor agregado das exportações, mais o país se vale do comércio internacional.
Ford, com o Modelo T, pretendia fabricar um carro que todos os seus operários pudessem comprar: ele entendia que o subdesenvolvimento deve ser combatido
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A Inglaterra impôs um monopólio sobre as exportações de tecidos de lã e algodão aos Estados Unidos, enquanto importava tabaco, algodão em pluma e lã tosquiada. Os norte-americanos perceberam que eram explorados, revoltaram-se e declararam a independência. Pombal fez o mesmo com o Brasil, no afã de industrializar Portugal. Isso nos revoltou e nosso país seguiu os passos dos EUA.
Durante os séculos XIX e XX, economistas criaram sucessivas teoria do desenvolvimento, reforçando que tudo depende da produtividade da mão de obra e esta recai na capacidade de inovar. Não houve país, com ou sem auxílio externo, que atingisse desenvolvimento respeitável sem se industrializar ou sem primar pela educação. Restava um ponto a discutir. Raúl Prebisch, Celso Furtado e Paul Singer mostraram que, se o país quiser ser inovador, se ele pretender exportar produtos de alto valor agregado, terá antes de fortalecer seu mercado interno, pois é ele que gera capital suficiente para fazer a máquina deslanchar. Em caso contrário, o subdesenvolvimento é inexorável.
Para eles, o subdesenvolvimento é como um animal malnutrido à infância que, mesmo tendo acesso ao que houver de mais avançado, não será forte ou inteligente o bastante para competir, passando o resto da vida na dependência. Os norte-americanos sempre souberam disso, a ponto de Ford, ao lançar o Modelo T, dizer que pretendia fabricar um carro que todos os seus operários pudessem comprar. Os europeus, com seus pequenos países em eterno conflito, preferiram importar matérias-primas e exportar industrializados porque não haveria mercado interno suficiente, daí dividirem o mundo em impérios, sendo o maior o britânico.
Mercosul não tem por que existir
Hoje, que a industrialização correu o mundo, os europeus internalizaram seu mercado, formando um enorme bloco de quase 700 milhões de habitantes. O Mercosul não teria por que existir, visto que a indústria não é tão intensa em capital e o mercado somado não chega a 300 milhões de habitantes. Além disso, a região é dispare demais. Um país (Brasil) tem 8 milhões de quilômetros quadrados e 210 milhões de habitantes, e outro (Uruguai), 3,5 milhões de moradores numa área que não chega a 200 km² mil.
Talvez a colonização ibérica e a semelhança de idiomas sejam o amálgama, o que não se tem comprovado. Disputas territoriais e guerras povoam a história da região. Além disso, a União Europeia vem se formando desde o fim da Segunda Guerra Mundial, enquanto o Mercosul foi implantado numa convergência política dos anos 1990. A estratificação social é muito diferente entre as duas regiões do globo. Por causa disso, a independência econômica nunca foi o alvo dos governantes desse bloco.
A ameaça à indústria nacional vem das autopeças, pois elas terão imposto zerado e sem cotas: motores fatalmente deixariam de ser produzidos no Brasil
O acordo que foi assinado durante o encontro G-20 de 2019, entre Mercosul e União Europeia, é muito semelhante ao que Portugal assinou com a Inglaterra em 1703. O Mercosul exportará produtos de baixo valor agregado como carne bovina, de frango e porcos, ração animal, bens agrícolas in natura e minérios, enquanto importa o que houver de tecnologicamente mais avançado. Importante é ter em mente que todos esses bens ficam isentos de tributos aduaneiros mediante quotas que, a rigor, são muito menores que as já comerciadas. Como o valor agregado é baixo, ocorre o que os economistas chamam de perda nas relações de troca. É que, mesmo que os totais sejam equivalentes, o exportador de bens intensivos em capital obtém um resultado líquido muito mais favorável.
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A indústria de automóveis está no olho do furacão. Pretende-se a exoneração fiscal de carros montados e autopeças em 10 anos a começar da assinatura definitiva do acordo, o que não deve ocorrer antes de 2021, pois tem que passar pela concordância de todos os países dos dois blocos. Barreiras sanitárias terão de ser vencidas, e os mecanismos de retaliação comercial, extintos. O maior entrave é a França, que possui os maiores subsídios relativos à agricultura e não pretende ter o Brasil como concorrente. Ademais, ela não goza de uma fatia significativa de mercado de bens industrializados, em geral, e de automóveis, em particular, no Mercosul como um todo.
Em condições normais de temperatura e pressão, o mercado de automóveis do Mercosul é de seis milhões de unidades ao ano. O máximo de 50 mil para o bloco, sendo 32 mil para o Brasil, não faz nem cócegas. A ameaça à indústria nacional vem das autopeças, pois elas terão imposto zerado e sem cotas. O texto não informa se serão somente peças ou se estão inclusos dispositivos completos. Nesse caso, considerando que transmissões já vêm do Oriente, restam motores que fatalmente deixariam de ser produzidos no Brasil. Outros componentes tradicionalmente europeus, como sistemas de injeção, tenderão a ficar mais baratos. Nada disso, porém, vai se refletir em redução de preço ao consumidor final graças à tendência ao cartel no setor. Pode, sim, aumentar a margem dos fabricantes locais.
O Brasil tem um trunfo, o combustível renovável com preços sem subsídio inimagináveis para norte-americanos e europeus. Ele pode ser usado diretamente em motores, em termoelétricas, ou mesmo em carros puramente elétricos com pilhas a combustível. Tudo depende da implantação do Rota 2030 de forma acelerada, com suas medidas precedendo os passos do tal acordo. Se formos reativos, ficaremos ainda mais para trás. O livre comércio não significa o fim da política comercial externa: pelo contrário, requer que ela seja mais apurada, visto que a livre concorrência faz as empresas caminharem pelo fio da navalha.
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