Seu desenho, sua posição e sua lente acompanharam a evolução
do automóvel, mas também ficaram sujeitos aos caprichos da legislação
Um dos mais espetaculares automóveis de todos os tempos, o Bugatti Tipo 41 Royale — apresentado em 1926 — media 4,3 metros só de distância entre eixos, pesava mais de três toneladas, tinha rodas de 24 polegadas e usava um motor de oito cilindros em linha com cilindrada de 12,8 litros. Mas não tinha retrovisores. “Meus carros não precisam disso”, teria dito o fundador da marca, Ettore Bugatti: “O que importa é dirigir tão rápido quanto as condições permitirem, e não ver o que se passa atrás do carro”.
Eram mesmo outros tempos. Há controvérsias sobre o criador do retrovisor, mas se sabe que o piloto norte-americano Ray Harroun usou um já em 1911, no Marmon com o qual venceu a 500 Milhas de Indianópolis. Antes dele, a motorista inglesa Dorothy Levitt sugeria em 1906, no livro The Woman and the Car: A Chatty Little Handbook for All Women who Motor or who Want to Motor, que suas leitoras carregassem no carro um espelho a ser usado não para (ou apenas para) retoques à maquiagem, mas também para ver o tráfego atrás de tempos em tempos.
Nas décadas seguintes, com o crescimento da frota de veículos por todo o globo, o espelho que permitia ao motorista acompanhar o tráfego atrás do automóvel — em geral dois, pois havia um externo e um no interior — tornou-se cada vez mais necessário até ser exigido pela legislação de todos os mercados ou, antes mesmo, pelo bom-senso. Com isso, cada fabricante buscou soluções para que o retrovisor fosse incorporado de maneira harmoniosa ao conjunto.
Uma inglesa já sugeria em 1906 carregar no
carro um espelho a ser usado não só para
retocar maquiagem, mas para ver o tráfego atrás
Nos primeiros automóveis, nada era desenhado com o objetivo de agradar aos olhos — eram apenas máquinas que substituíam o cavalo e a carroça, deixando à mostra os componentes mecânicos e, quando muito, com capota e portas precárias para proteger seus ocupantes das intempéries. Quando o retrovisor começou a ser usado, em geral era uma peça com a face dianteira cromada “espetada” na coluna do para-brisa ou sobre o estepe, no caso de montagem deste junto ao para-lama dianteiro.
O espelho começou a se incorporar melhor na década de 1940, montado na porta, no para-lama ou na junção entre eles. Mas persistiram posições diferenciadas como no topo do para-lama dianteiro, acima da roda, usada por modelos ingleses pelo menos entre os anos 30 e 60 (não sei se havia imposição da lei, mas pode ser que sim). O Mercedes-Benz 300 SL “asas de gaivota” de 1954 foi um dos pioneiros no formato cônico, que deixava a face dianteira mais aerodinâmica. Sua posição avançada permitia a visão dos espelhos através do para-brisa, em vez dos vidros laterais como usual.
Retrovisores retangulares começaram a virar moda nos anos 70, em consonância com as formas cada vez mais retilíneas das carrocerias. É também desse período um dos tipos mais elegantes já vistos, com forma cônica acentuada e pintado na cor do carro, como já se usava em 1970 no De Tomaso Pantera. Na década seguinte consagrou-se o espelho integrado à coluna, com ou sem espaço de ventilação entre a peça e a carroceria, para menor arrasto aerodinâmico. Afinal, era o tempo em que mais se trabalhou nesse quesito para reduzir o consumo de combustível dos automóveis, em resposta às crises do petróleo deflagradas em 1973 e 1979.
De lá para cá o empenho em reduzir a resistência do ar se esvaiu em grande parte, com honrosa exceção para alguns fabricantes alemães, que continuam a alcançar números cada vez mais baixos de Cx. Isso deixou os departamentos de Estilo à vontade para retomar antigos formatos e montar a base do espelho na face da porta em vez de no canto das janelas. A solução, além do aspecto mais esportivo, faz todo o sentido em carros com um pequeno vidro fixo à carroceria à frente das portas dianteiras, como Honda Fit, Ford Fiesta e diversos modelos monovolume.
Em nome da lei
Há questões acerca dos retrovisores que não se devem a modas ou preferências dos fabricantes, mas a legislações. Caso clássico é o dos espelhos montados bastante à frente, no capô ou nos para-lamas, em antigos carros japoneses: era uma exigência da lei, abandonada em 1983, mas a posição ainda tem a preferência de muitos motoristas de táxi por lá.
Por mais estranha que seja a nossos olhos, a solução tem vantagens como mostrar ao motorista eventuais veículos ao lado de seu carro, que já não apareceriam em um espelho mais recuado. Além disso, o condutor não precisa desviar tanto o olhar para os lados, o que cansa menos em uma longa jornada de trabalho, e o carro fica mais estreito, importante em cidades como Tóquio. Diz-se, porém, que os motoristas particulares logo adotaram o padrão mundial porque nos anos 80 o Japão vivia uma onda de ocidentalização dos costumes. Os “espelhos de para-lamas” duraram um pouco mais em utilitários.
Do outro lado do componente — o da lente que reflete as imagens — também há influência das normas. Nos Estados Unidos e no Canadá é obrigatório o espelho plano no lado esquerdo, enquanto o direito pode ser convexo, desde que traga uma mensagem em inglês sobre os objetos refletidos estarem, na verdade, mais próximos do que parecem. Índia e Coreia também requerem tal mensagem, embora permitam o espelho convexo à esquerda.
Os espelhos no capô ou nos para-lamas
em carros japoneses eram exigência da lei,
mas ainda têm a preferência de taxistas
Nos últimos anos os fabricantes têm apelado para paliativos como o visto em alguns Fiestas e Fusions da Ford: há uma pequena seção em cada espelho com forte convexidade, de modo a mostrar um grande campo visual em tão pouco espaço. Quando se vai mudar de faixa para a esquerda, por exemplo, um carro ao lado pode ter desaparecido do espelho principal, mas ainda é visto bem pequeno na seção convexa. Usei-o nos modelos citados e afirmo: é uma solução infeliz para um problema que não deveria existir, não fosse o anacronismo da lei. Os carros que aparecem na seção menor estão tão perto que há grande risco de você os fechar, quando supõe estarem distantes, até que supere um perigoso período de adaptação.
Bem menos traumático é o retrovisor convexo ou biconvexo, bastante comum em carros europeus e japoneses e, no Brasil, usado com alguma frequência desde que apareceu em 1996 no Chevrolet Vectra, no Fiat Palio e no Ford Fiesta. É a melhor forma de ampliar o campo visual sem usar um enorme espelho, que prejudica a aerodinâmica. Há quem não goste dele pela dificuldade de calcular a distância até o carro ou objeto refletido, mas a meu ver é uma adaptação simples e rápida — e sempre haverá um espelho interno plano para dissipar eventuais dúvidas.
Os atuais retrovisores muitas vezes são peças sofisticadas, dotadas de motores elétricos para regulagem e para seu rebatimento junto à carroceria, resistência para desembaçamento, lente fotocrômica, led para sinalizar veículo em ponto sem visibilidade (um complemento à função original do espelho) e, na parte frontal, repetidores de luzes de direção. O grande problema é o custo de reposição desses itens quando quebrados, o que pode acontecer em uma breve distração em manobra apertada ou por obra de um motociclista irritado.
Os carros do futuro terão retrovisores? Há décadas que os modelos de conceito sugerem soluções mais modernas para ver o que se passa atrás, como câmeras que enviam imagens para telas no painel — coisa tão comum hoje, até em carros de preço moderado, mas apenas como complemento ao espelho interno. À parte questões de legislação que talvez precisem ser acertadas, parece que a maioria dos motoristas ainda está satisfeita com o velho e bom retrovisor.
P.S.: Decidimos “olhar pelo retrovisor” e, atendendo a vários pedidos, trazer de volta uma seção que auxiliou muitos leitores no passado: o Canal Direto. Espero que você tenha apenas satisfação com seu carro, mas, se um dia um problema não for resolvido pelas concessionárias, já sabe com quem contar.
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