Hoje eles são flagrados por toda parte, mas os automóveis em testes já deram mais trabalho para se tornar notícias
Uma briga de gato e rato: é como se pode definir a eterna competição entre fabricantes e importadores, que buscam esconder os veículos em desenvolvimento, e os profissionais da imprensa, que tentam encontrá-los e registrá-los em fotos e vídeos para mostrar ao público que os lê ou assiste — se possível, em primeira mão.
Nos tempos em que estava “do outro lado do balcão” (ou seja, era leitor de revistas de automóveis em vez de produzir uma na internet), uma de minhas seções prediletas era a de segredos de fábrica, que o lendário Nehemias Vassão, falecido em 2010, conduziu com maestria do fim da década de 1960 ao começo da de 1990 na Quatro Rodas.
Os seguranças da empresa atiraram no carro dos jornalistas — chegando a perfurar a placa — para forçá-los a parar e quebraram a câmera
Vassão criou estratégias inusitadas para desvendar os carros que os fabricantes escondiam, desde burlar a segurança para entrar nas empresas até subir no teto de uma Kombi em cima de um caminhão para fotografar por cima de um muro, passando por viagens pelo interior do País atrás de uma novidade da qual tivesse recebido informações de leitores. Era Vassão que estava com o fotógrafo Cláudio Larangeira, ainda hoje em franca atividade, quando passaram por um dos momentos mais marcantes da caça a segredos da imprensa brasileira.

Pouco antes do lançamento do Volkswagen Brasília, em 1973, eles encontraram a novidade em uma caravana na estrada velha de Santos, no litoral sul de São Paulo. Os seguranças da empresa, em plena ditadura militar, atiraram no carro dos jornalistas — chegando a perfurar a placa dianteira — para forçá-los a parar, após o que quebraram a câmera de Larangeira. Isso não impediu que as fotos, bem guardadas em filmes nos sapatos do fotógrafo, estampassem a capa da revista de maio daquele ano.
Os tempos de Vassão ficaram no passado, mas a busca aos segredos das fábricas continua despertando o interesse jornalístico.
Já tive meus momentos de caçador nesses 18 anos do Best Cars, facilitados pelo fato de morar em Pindamonhangaba, no interior paulista, a poucos quilômetros das fábricas da Ford e da Volkswagen em Taubaté: ambas as empresas usam a região (a alemã, bem mais) para testes rodoviários de seus carros. Além disso há a proximidade a Campos do Jordão, destino frequente de equipes de várias marcas com seus protótipos camuflados, caso do Chevrolet Cruze flagrado em janeiro por um leitor.
Na década de 1990, quando era mais comum retornar de São Paulo à noite, encontrava carros em testes na Rodovia Carvalho Pinto com relativa frequência. Embora fosse difícil estar com câmera e improvável obter alguma imagem válida ao volante e à noite, algumas vezes consegui conversar com os motoristas e ver os carros mais de perto. Foi também na região que, descendo a serra de Campos com o colega Luís Perez em um evento da Jeep em 1999, fotografamos o Ford Focus sedã disfarçado — um segredo que, ao lado do jornal Folha de S. Paulo, no qual Perez trabalhava, divulgamos em primeira mão.
Acelerador, pra que te quero
Mais tarde, em 2002, passei a encontrar na mesma Carvalho Pinto protótipos do VW Polo nacional, que estava por ser apresentado. Eu estava sempre só ao vê-los, mas resolvi armar uma emboscada com o colaborador Luciano Prudente. Deu resultado e o segredo apareceu no site em diversos ângulos. Mas não seria tão fácil meses depois, quando avistei a versão sedã do mesmo modelo na pista oposta da citada rodovia.
Ao volante da Chevrolet Meriva de teste a caminho de São Paulo, não resisti: retornei como pude, saquei a câmera e disparei-a sobre o volante enquanto acelerava atrás do Polo levemente disfarçado. Com a distância entre os carros e a resolução modesta da câmera (minha primeira digital), as fotos não mostraram muita coisa, mas esse não foi o maior problema.
Ford Focus e VW Polo, dois dos segredos que flagramos na região de Taubaté, SP
O motorista da VW disparou rumo à fábrica, por uma rua que dava acesso a uma portaria secundária, e logo a perseguição mudou de personagens: desapareceu o “rato” Polo e surgiu um “gato” — uma Kombi repleta de seguranças, sabe-se lá com que intenções — atrás do “rato” que eu me tornara. Precisei de cada um dos 102 cv da Meriva… Não quero imaginar como poderia ter sido se, em vez da perua, eles me perseguissem de Golf GTI ou, pior, usassem dos mesmos métodos do episódio de Vassão e Larangeira.
Nos últimos anos os segredos perderam parte do atrativo, por mais de uma razão. A primeira é que hoje todos carregam no bolso uma boa câmera, a de seu telefone celular: carros em teste aparecem com muita frequência na internet, como se os “gatos” se houvessem multiplicado de forma desproporcional aos “ratos”. Outra é que as próprias fábricas e os importadores resolveram ganhar divulgação com “falsos segredos”.
A Ford colocou Fiestas “em testes” em meio aos Corsas que eram avaliados pela imprensa: os carros saíram nas mesmas edições
A estratégia é simples: se não há um produto da empresa que possa sofrer perda de mercado quando o público souber que será remodelado ou substituído, vamos colocar a novidade para circular — com disfarces ou não — e aguardar que o público e a imprensa façam sua parte na divulgação.
A General Motors recorreu a esse expediente até cansar, anos atrás, e chegou a lançar um concurso pela melhor foto do Agile com chamativas decorações em 2009. Fez também os jornalistas de bobos em um evento do Omega em seu campo de provas de Indaiatuba, SP, em 2005: simulando surpresa, os assessores de imprensa gritaram “Olha o Vectra!” enquanto o modelo de terceira geração, a ser lançado meses depois, passava com leves disfarces pela pista. A chinesa JAC também tem deixado os carros à mostra, ansiosa por fotógrafos. No exterior, marcas como a Mercedes-Benz volta e meia divulgam fotos de carros disfarçados para revelar em parte um lançamento próximo.
Agile teve até campanha pela melhor foto; Fiesta circulou no meio do evento do Corsa
História curiosa sobre segredos nem tão secretos ocorreu em 2002 no lançamento do Chevrolet Corsa no complexo hoteleiro Costa do Sauípe, na Mata de São João, Bahia. Como se sabe, a Ford estava inaugurando a fábrica de Camaçari, na região metropolitana de Salvador, e seria natural que o mesmo complexo (muito em voga na época) fosse escolhido para o evento de estreia do Fiesta, semanas mais tarde.
Talvez incomodada porque a concorrente veio “a sua casa” lançar um produto adversário, talvez apenas desejando ganhar espaço na mídia ao lado das matérias sobre o Corsa, a marca do oval azul colocou vários Fiestas “em testes” para circular em meio aos carros da rival que eram avaliados pela imprensa. Não deu outra: jornais, revistas e sites estamparam os dois carros nas mesmas edições.
Uma coisa é certa: enquanto houver interessados no mundo do automóvel, haverá jornalistas atentos aos segredos da indústria e leitores aguardando pela revelação da próxima novidade. E se ela aparecer para você, não perca tempo: compartilhe conosco.
Editorial anteriorFotos: Fabrício Samahá (Focus e Polo), Rodrigo Espíndula (Agile), Cláudio Leyria (Fiesta)