Itens de conforto e segurança, ou mesmo a definição de versões, nem sempre seguem o que o bom-senso indica como ideal
Quando o Volkswagen Golf foi lançado no Brasil, em 1994, a versão GTI — única disponível até que viessem a GL e a GLX — tinha uma peculiaridade. O teto solar oferecia controle elétrico, raro naquele tempo, mas os vidros das portas usavam… manivelas. Isso mesmo: por uma incoerência que nunca compreendi, alguém no fabricante especificou comando manual de vidros para um carro médio em versão de topo, em um tempo em que até o Fiat Mille ELX já oferecia controle elétrico.
Nesses 25 anos desde o caso do GTI, outras escolhas incompreensíveis de versões e equipamentos apareceram no mercado brasileiro. Ora isso acontece por questão de custos, ora por escolhas infelizes de fato. Muitos devem ter percebido que as alças de teto para apoio dos passageiros (aquelas popularmente chamadas por um palavrão) estão rareando dos carros. O Ford Fiesta nasceu já sem elas, em 2013, enquanto outros perderam mais tarde. Por que isso?
Uma explicação está nas bolsas infláveis de cortina, que ficam acomodadas acima das janelas laterais e disparam dali para baixo em caso de colisão. Embora seja possível instalar as alças, é necessária uma estrutura especial para que elas suportem, por exemplo, um passageiro mais pesado que entra ou sai. Diante do custo, algumas fábricas optam por não colocar as alças, mesmo em versões sem tais cortinas. E o exemplo logo se espalha: se meu concorrente não tem o item, por que vou instalar?
Em alguns casos se nota a definição inadequada de equipamentos: certos itens estão presentes, mas ficaram de fora outros, talvez, mais relevantes

Outra falta que tem sido frequente, mesmo em carros nada baratos, é a de iluminação de cortesia na parte traseira da cabine ou ao menos central. Isso se aplica desde marcas japonesas — é assim no Toyota Yaris XLS, embora as versões inferiores sem teto solar tenham a luz — até francesas: há iluminação apenas na frente no Citroën C4 Cactus, apesar da profusão de acessórios da versão de topo Shine Pack.
Em outros casos, o que se nota é a definição inadequada de versões e equipamentos: certos itens estão presentes, mas ficaram de fora outros, talvez, mais relevantes. Vimos isso no Yaris XL Plus Tech de Um Mês ao Volante: vem com chave presencial, retrovisor interno fotocrômico e faróis com acionamento automático, enquanto câmera traseira de manobras ou mesmo sensores de estacionamento não constam.
Está bem, é uma versão intermediária e a Toyota oferece duas com mais acessórios. A nosso ver, porém, faria mais sentido adotar a câmera ou os sensores e abrir mão do retrovisor e dos faróis automáticos, cujas ausências trariam menos trabalho. E o que dizer da linha Hyundai HB20, que não oferece câmera traseira nem na versão de topo, apesar de ter televisão na central de áudio?
Anos atrás, quando bolsas infláveis frontais não eram exigidas por lei, houve casos de definição inadequada nesse item de segurança. O Fiat Stilo 16V, versão intermediária, chegou a oferecer oito bolsas (frontais, laterais dianteiras e traseiras de tórax e cortinas) como opcionais, mas não tinha qualquer uma de série. Caso parecido foi o do Ford Fiesta sedã importado que chegou em 2010: se comprado sem o pacote de sete bolsas (frontais, laterais dianteiras, cortinas e de joelhos do motorista), vinha sem nenhuma.
Voyage tem, Jetta não
Mesmo com a obrigatoriedade das bolsas frontais, há fabricantes que deixam de foram itens de segurança que não deveriam, como a Nissan: a Frontier importada do México não tinha fixações Isofix para cadeira infantil, cinto de três pontos no meio do banco traseiro, bolsas infláveis laterais dianteiras e de cortina, que só chegaram com a versão argentina. Tal cinto continua ausente do Hyundai Tucson e de duas das quatro versões do Kia Sportage, que também não tem controle eletrônico de estabilidade na opção mais barata.
Quando se trata de itens de conveniência, o quadro piora. O Volkswagen Polo em versões de 1,0 e 1,6 litro vem sem ajuste do volante, oferecido no mais simples Fox, e por algum tempo não dispunha de regulagem elétrica de retrovisores nem como opcional. Ao novo Jetta faltam difusores de ar-condicionado para o banco traseiro, presentes no “irmão menor” Virtus, e comandos no volante para mudanças de marcha, que até o Voyage oferece. No Toyota Corolla e no Nissan Kicks, as versões de entrada (GLi e S, na ordem) trazem um sistema de áudio simplório e dispensam câmera ou sensores traseiros. No Chevrolet Onix Joy a tampa do porta-malas só pode ser aberta com a chave, sem qualquer comando interno.
O cinto de três pontos no meio do banco traseiro continua ausente do Hyundai Tucson e de duas versões do Kia Sportage, que também não tem controle de estabilidade

Definições de versões também podem ser incoerentes. A General Motors fez algumas delas, como o Astra GSi de cinco portas em 2003: para que, em um esportivo, se a carroceria de três portas estava em produção? Ou a série de despedida Vectra Collection de 2005, que usava o motor de 2,0 litros e oito válvulas — para uma edição tão especial o 2,2 de 16 válvulas seria a escolha certa.
No Golf nacionalizado em 2016 a Volkswagen conseguiu errar duas vezes. Primeiro adotou o motor aspirado de 1,6 litro na versão Comfortline, tirando o apelo de tecnologia e desempenho do 1,4 turbo importado até então. Depois lançou o turbo de 1,0 litro, com bons dotes dinâmicos, mas restrito à transmissão manual. Quando corrigiu o engano, na linha 2019, o carro já estava a meses de sair de produção. Já o Fiat Mobi ganhou, meses depois do lançamento, a boa novidade do motor Firefly de três cilindros em lugar do Fire de quatro cilindros. Só que a versão Way continua com o motor antigo, bem menos eficiente.
Em alguns casos a decisão errada está nos pneus, caso do Ford Ecosport Storm. Se não temos neve e gelo nas ruas, o propósito de um SUV com tração integral é a aptidão ao uso fora de estrada. Assim, por que aplicar pneus de asfalto e de perfil baixo (205/50 R 17)? Seria coerente manter os 205/60 R 16 de uso misto do Freestyle, como oferecido na Argentina.
Curioso mesmo é quando o carro tem recursos sobrando. Foi assim com o Chevrolet Celta de cinco portas, em 2003, que manteve o mecanismo de rebater os bancos dianteiros do três-portas. Como não haveria como um passageiro entrar entre o banco e a coluna da porta (mais avançada nessa versão), seria óbvio eliminar o rebatimento.
Economia de escala na produção dos bancos? Não, a questão era outra. A indústria exerce forte barganha junto aos fornecedores e os preços tendem a se defasar com o tempo. Se um componente precisa ser refeito para nova versão ou mudança de desenho, o fornecedor tem a oportunidade de subir os preços — o que o fabricante evita, claro. Assim, há casos em que oferecer uma função inútil sai mais barato que sua retirada.
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