A que um fabricante de automóveis deve atentar quando pretende ampliar seu leque a categorias inexploradas do mercado
De uma forma ou de outra, cada fabricante conquista uma imagem no mercado, em geral obtida com alguns decênios da mesma estratégia. A Ferrari é o que é porque desde sua fundação, em 1947, o comendador Enzo manteve o foco em carros esporte. Uma certa marca britânica não teria o mesmo prestígio se, no começo do século passado, Charles Rolls e Henry Royce tivessem investido em um automóvel popular em vez do sofisticado Silver Ghost.
A Mercedes-Benz simboliza qualidade, luxo e tecnologia porque assim foram seus carros desde o início. E a Volkswagen talvez não fosse mundialmente reconhecida por modelos robustos e eficientes se não tivessem existido o Fusca e seus derivados. A questão da imagem parece decisiva para explicar não apenas o êxito, mas também o fracasso de alguns automóveis pela história.
O Cimarron não convenceu os tradicionais clientes da Cadillac nem atraiu outros: uma lição do que não fazer para ampliar vendas
Tome-se como exemplo a iniciativa da Mercedes em 1997 com o Classe A, lançado no Brasil dois anos depois. De repente uma marca notabilizada por modelos luxuosos — sedãs, cupês e peruas de tamanho médio para grande e tração traseira — propunha um carro curto, alto, mais simples, de motores pequenos e tração dianteira. E que ainda apostava em soluções incomuns como o chassi “sanduíche”, com a fatia sob a cabine destinada a absorver a energia de colisões (ou, quem sabe, alojar baterias em uma versão elétrica).

Sabe-se que, em parte pelas características construtivas, o Classe A enfrentou um sério problema logo de início: capotou no “teste do desvio de um alce” da revista sueca Teknikens Värld, o que exigiu da Mercedes extensas alterações em chassi e controles eletrônicos. Estabilidade à parte, aquela primeira geração nunca foi bem-sucedida nos principais mercados (o brasileiro inclusive), tampouco a segunda, de 2004. O Classe A só conheceu o verdadeiro sucesso no terceiro modelo, de 2012, um carro 69 centímetros mais longo e 15 cm mais baixo que o primeiro.
O que o caso permite concluir é que a Mercedes podia, sim, conquistar um novo perfil de clientes, notadamente mais jovem que seu público de outros tempos. Mas precisou fazê-lo com um carro que os empolgasse em aparência e que mantivesse elementos de sua tradicional imagem.
A Cadillac, marca norte-americana da General Motors, havia incorrido em erro estratégico semelhante com o sedã compacto (pelo método local) Cimarron. Fruto do mesmo projeto J que originou nosso Monza, ele apareceu em 1982 como uma versão “de terno” do acessível Chevrolet Cavalier com poucas diferenças além da grade dianteira e dos bancos de couro. A proposta não convenceu os tradicionais clientes da marca nem atraiu outros, e o Cimarron ficou como lição do que não fazer para ampliar seu volume de vendas.
Como o fracasso de uns nem sempre ensina a outros, o grupo Ford caiu no mesmo engano ao buscar um modelo mais acessível para a Jaguar. Em 2001 aparecia o X-Type, inspirado no estilo do consagrado XJ, mas com plataforma e até itens bem visíveis — como botões do controle elétrico de vidros — emprestados pelo Ford Mondeo. Assim como a Cadillac, o fabricante tradicional em carros de luxo não encontrou o melhor método para atuar em um segmento mais baixo: o X-Type não alcançou metade da meta anual de vendas e saiu discreto em 2009. Hoje a Jaguar, sob outras mãos, tem no XE uma proposta mais condizente.
O VW que queria ser Mercedes
Na contramão do Classe A, a popular Volkswagen passou nos anos 90 a buscar patamares cada vez mais altos. Não bastaram aos planos megalomaníacos de Ferdinand Piëch adquirir a Bentley, a Bugatti e a Lamborghini, ampliando um leque de marcas de prestígio que até então se restringia à Audi. A própria marca do “carro do povo” recebeu sua versão do Audi A8 — em termos, pois não compartilhava sua carroceria de alumínio —, o sedã de luxo Phaeton, lançado em 2002. Requintado, com motores de até 12 cilindros e preço na faixa de US$ 100 mil nos Estados Unidos, o carro colocaria a VW no mesmo andar de BMW e Mercedes.
Não conseguiu. O Phaeton fracassou entre os norte-americanos, mercado do qual saía em 2006, e apenas 84 mil foram produzidos até março passado após infindáveis 14 anos na mesma geração, sustentado a maior parte do tempo pelo mercado alemão. Curioso é que lá atrás, em 2004, o chefe da Audi nos EUA Axel Mees havia declarado que a VW “subestimou a fraqueza da marca” para competir em tal segmento. Foi demitido em seguida.
Qual a demanda e o que se espera encontrar no carro? Se ambos forem atendidos, mesmo uma proposta incomum pode ser bem-sucedida
Outro caso de busca sem êxito de novo segmento foi o da Smart, divisão da mesma Daimler que faz os Mercedes, com o Forfour de 2004. Com plataforma de Mitsubishi Colt — a marca japonesa era então parceira dos alemães —, fabricação holandesa e previsão de se tornar brasileiro, o pequeno hatch de quatro lugares vendeu mal e saiu de linha em dois anos. O mercado não mostrou interesse por um Smart sem o charme e a peculiaridade do original Fortwo. O Forfour renasceria em 2014, porém, como derivado do Fortwo de terceira geração.

Mais uma vez, nem sempre se aprende com o insucesso dos outros: o grupo BMW tomou atitude parecida em 2012 com o Paceman, um Mini crescido com seus 4,10 metros de comprimento, mantendo as três portas. Se a ideia de aproveitar a plataforma do Countryman (de cinco portas) para um modelo mais esportivo parecia atraente aos alemães, o mercado não concordou e o Paceman saiu de cena em três anos. Por outro lado, a empresa tomou o hatch original, o fez crescer e acrescentou duas portas — e tem obtido relativo sucesso.
Quando se trata de ingressar em novo segmento, tudo indica que as grandes questões são: 1) há uma demanda considerável? 2) O que esse público gostaria de encontrar no carro? Se ambos os requisitos forem plenamente atendidos, mesmo uma proposta incomum pode ser bem-sucedida.
Que exemplo seria melhor que o do Porsche Cayenne? Depois de meio século limitada a carros esporte, a marca alemã causou surpresa — e irritação aos puristas — ao lançar um utilitário esporte. Mas sabia o que estava fazendo: grande parte de seus clientes, sobretudo norte-americanos, comprava carros de outras marcas para levar a família quando o 911 ou Boxster tivesse de ficar na garagem. O que a Porsche fez foi aplicar seus elementos marcantes de estilo e sua forma empolgante de desenvolver automóveis a um novo perfil, com formato mais familiar e ampla vocação fora de estrada.
Muitos lamentaram o primeiro Cayenne quando o viram, mas milhares o compraram mundo afora — uma reprise do êxito da Mercedes com o Classe M ou da BMW com o X5, dessa vez em um fabricante com raízes mais esportivas. A Porsche, afinal, acertou na demanda e na execução. O Cayenne passou à segunda geração, rendeu um filhote (o Macan) e tem contribuído fortemente para a saúde financeira da empresa, que assim pode se manter tão presente e inovadora no setor de carros esporte.
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