A sensação de comandar a máquina pela estrada relaxa, acalma,
coloca a cabeça em ordem, fomenta novas ideias: é a “carroterapia”
Poucas coisas são mais prazerosas do que cumprimentar um automóvel pela manhã: entrar na garagem, abrir a porta, embarcar, se acomodar, inserir a chave no miolo, ouvir a bomba de combustível, bombear o acelerador (nos carburados) e finalmente girar a chave no contato. Hoje é domingo: se eu não tivesse uma pilha de afazeres para dar conta, provavelmente estaria lá na garagem, cumprimentando meu automóvel, logo após combinar um programa interessante com a família. Ou mesmo sozinho: o volante ainda é um dos melhores divãs para saborear deliciosos momentos de introspecção.
Durante a semana a coisa fica ainda melhor: logo que chego ao trabalho tenho o prazer de dar “bom dia” a mais três automóveis que ficam guardados no pátio. Ainda que não seja minha obrigação, faço questão de dar a partida, manobrar e colocar os três na rua. Gosto tanto da tarefa que sempre chego mais cedo que os colegas: se eu me atrasar só um pouco, deixarei de curtir o som do motor de arranque, a mecânica dos fluidos (óleo, água e combustível circulando), a termodinâmica (câmaras aquecendo, válvula termostática fechada), a dilatação dos componentes metálicos e a estequiometria irregular, muitas vezes gerenciada por um singelo afogador.
Um amigo dirige o mesmo automóvel desde
1982: basta uma vibração ou som fora do
compasso para que ele dê o diagnóstico preciso
Mas, voltando aos fins de semana, é realmente muito prazeroso quando a marcha-lenta se estabiliza e os gases de escapamento mudam sua coloração. Uma visualizada rápida no painel indica que os ponteiros da temperatura e pressão de óleo estão em seus devidos lugares: é hora de ganhar a rua. Carro em movimento, janela aberta — não consigo me isolar da interação social, mesmo nesses tempos de violência desenfreada. Vai além da questão de ver e ser visto: nada melhor que curtir a brisa de um dia ensolarado enquanto se ouvem os ruídos de funcionamento do automóvel.
É nessa intimidade com a máquina que percebemos alguma irregularidade: tenho um amigo que nada entende das teorias mecânicas, mas que dirige o mesmo automóvel desde 1982. Basta uma vibração ou som fora do compasso para que ele indique um diagnóstico preciso da anomalia — motor fora de ponto, disco empenado, tambor ovalizado, bieleta rompida… Uma expertise empírica e infelizmente cada vez mais rara entre aqueles que gostam de automóveis: proliferam as discussões inúteis sobre números absolutos em fichas técnicas transcritas diretamente dos materiais de imprensa.
Dias frios também são especiais: ar mais denso resulta em maior enchimento dos cilindros e melhor desempenho, com ganhos nítidos em motores com cabeçote de fluxo lateral. Comportamento igualmente interessante é aquele demonstrado por motores sobrealimentados dotados de resfriador de ar: a eficiência do sistema aumenta sensivelmente a sensação de lançamento nas arrancadas (launch feel), mas submete o motor às perigosas “cabeçadas”, causadas pelos limites de alimentação do carburador ou a vazão total dos bicos injetores.
Ar quente, teto aberto
O clima frio também é o melhor para se curtir o sistema de ar quente com o teto solar aberto. No Brasil, me causa espanto perceber o desvio de finalidade do cultuado teto solar, quase sempre restrito aos quentes dias de verão: o equipamento foi idealizado para que os motoristas do hemisfério Norte pudessem curtir os poucos momentos de claridade dos curtos dias de inverno. Considerando que o que não falta aqui é sol, o acessório acaba se tornando um instrumento de exposição solar — e uma via rápida para o câncer de pele.
O mesmo se aplica aos conversíveis: são automóveis ideais para curtir noites quentes de verão à beira-mar ou em regiões pacatas pelo interior do país. Nunca fui muito fã deles: a dança do monobloco provocada pela carência de rigidez torcional ao transpor irregularidades no piso limita bastante a experiência ao volante, por maior e mais potente que seja a unidade motriz. As suspensões também não trabalham a contento nesse tipo de carroceria e, salvo poucas exceções, o comportamento dinâmico é imprevisível.
Estradinhas bucólicas, desimpedidas e
bem conservadas colaboram para a sublime
experiência de guiar um bom automóvel
Cupês e sedãs sempre agradam mais e são acompanhados de perto pelas peruas: neles percebe-se melhor a posição de cada roda, mesmo quando a suspensão oferece um acerto macio demais. Adicione ao conjunto uma caixa de direção rápida, precisa e com peso correto. Para finalizar, freios com pouca ou nenhuma assistência, aliados a uma caixa de mudanças com engates secos e sonoros, com o bom e velho pedal de embreagem. A arte final é concluída com a posição correta de cada comando.
O cenário também é de fundamental importância. O estado de São Paulo oferece algumas das melhores e mais belas rodovias do país, mas quem mora na capital já sofre um bocado para encontrar percursos livres sem precisar apelar para dias e horários pouco ortodoxos. A vida do entusiasta é mais divertida no interior do estado, repleto de estradinhas bucólicas, desimpedidas e bem conservadas (mesmo sem pavimentação). Tudo colabora para a sublime experiência de guiar um bom automóvel, sem compromisso algum.
Uma sinfonia regida a quatro tempos: admissão, compressão, explosão e escapamento. A resistência dos pneus ao comando da direção. A resposta imediata do acelerador, a contrapressão hidráulica do freio, a alavanca do câmbio alcançando o fim de curso. A sensação de comandar a máquina pela estrada que escolhi até o destino desejado relaxa, acalma, coloca a cabeça em ordem, fomenta novas ideias. Um processo de higiene mental, um tratamento de choque contra a rotina maçante do dia a dia. Eu o denomino “carroterapia”.
Os efeitos surgem após as primeiras dezenas de quilômetros percorridos, mas o pico de satisfação dificilmente aparece antes que o marcador de combustível indique que meio tanque daquele precioso líquido já foi transformado em felicidade. É hora de encostar em algum posto, completar o tanque e curtir o resto do passeio de volta — chegar em casa apenas no fim do dia, em ritmo calmo, para não submeter o motor a temperaturas desnecessárias. Na garagem, motor desligado, ventoinha desarmada: o silêncio é quebrado apenas pelos estalos de retração do sistema de escapamento enquanto esfria. Você sabe que já é hora de se deitar, mas ainda assim fica longos minutos namorando cada detalhe daquela máquina.
Poucas coisas são mais prazerosas. Pouquíssimas.
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