Tradicionais no desenho e no requinte, os sedãs da série SZ
trouxeram à Bentley padrões de desempenho surpreendentes
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
A Bentley Motors Ltd. foi fundada em agosto de 1919 pelo inglês Walter Owen (W.O.) Bentley, um revendedor de carros da francesa DFP que sempre sonhou em desenhar e construir seus próprios automóveis. As criações de Bentley logo ganharam projeção com as cinco vitórias na prova francesa 24 Horas de Le Mans, conquistadas entre 1924 e 1930, mas a Grande Depressão causada pela queda da bolsa de 1929 colocou a empresa em crise. Em 1931 ela passava às mãos da também britânica Rolls-Royce.
Apesar de ter colocado nas ruas modelos notáveis como a série de cupês Continental das décadas de 1950 e 1960, a Bentley não teve um bom período entre os anos 70 e 80. Quando a Vickers assumiu as operações de automóveis da marca e da Rolls-Royce, em 1980, apenas 5% dos carros fabricados vinham recebendo o emblema do B — situação que chegou a colocar em risco sua própria continuidade. Mas havia algo em desenvolvimento desde 1976, já em vias de ser apresentado, capaz de melhorar esse quadro e recolocar o sobrenome de W.O. em evidência no mercado de carros de luxo.
Com o Mulsanne, em 1980, a Bentley ganhava sua versão do Rolls-Royce Silver Spirit;
o carro chegava em um momento de retração comercial para a marca britânica
Quando o Rolls-Royce Silver Spirit foi lançado, em outubro de 1980, o grupo inglês revelou também sua versão para a Bentley, o primeiro carro da chamada série SZ. O nome Mulsanne remetia ao passado de vitórias da marca em Le Mans: era o mesmo da reta de mais alta velocidade do circuito usado pela corrida francesa. Em seu estilo tradicional, avesso a modismos, predominavam linhas retas na carroceria e em detalhes como a ampla grade dianteira, os faróis e as lanternas. A grade era a principal diferença do Mulsanne para o Silver Spirit. O sedã estava disponível com distância entre eixos de 3,06 ou 3,16 metros, esta lançada sete meses depois e dotada de vidro traseiro menor.
O Mulsanne Turbo era o primeiro modelo da marca com superalimentação em mais de meio século desde os clássicos esportivos com compressor
No interior, as tradições de sofisticação da marca estavam respeitadas no painel retilíneo revestido em madeira de lei, nos bancos (com ajuste elétrico nos dianteiros) forrados no nobre couro Connolly, nos tapetes espessos e nos detalhes refinados. Atrás do grande volante de aro estreito vinha a alavanca de câmbio, embora houvesse console central entre os bancos individuais; atrás, um apoio de braço separava os privilegiados passageiros, que contavam com apoios de pés removíveis. Revestimento em tecido de poliéster era uma opção ao couro.
O clássico motor V8 de 6,75 litros — “seis e três quartos” em uma denominação habitual — com bloco de alumínio e comando de válvulas no bloco estava equipado com dois carburadores para o mercado europeu, mas recebia injeção Bosch para exportação aos Estados Unidos e ao Japão. Dentro da tradição da Rolls-Royce, sua potência não era divulgada — algumas vezes a empresa a definiu apenas como “suficiente” —, mas se estimam 200 cv.
Duas versões de distância entre eixos estavam disponíveis para o sedã, dotado de
sofisticado acabamento com couro, madeira de lei e espessos tapetes de lã
A caixa de câmbio automática de três marchas era a GM400 fabricada pela General Motors, com tração traseira. A suspensão independente nas quatro rodas usava braços sobrepostos na frente e braços semiarrastados na traseira, com subchassi e um sistema hidráulico posterior para manter a altura de rodagem independente da carga transportada; as rodas de 15 pol tinham pneus 235/70.
O Mulsanne foi comparado ao Aston Martin Lagonda e ao Maserati Quattroporte pela revista norte-americana Motor Trend em uma matéria de 2006. “O Bentley é de longe o mais tradicional dos três, de seu desenho icônico ao aconchegante interior todo revestido com couro Connolly, tapetes de lã Wilton e madeira de lei. Como o Silver Spirit, ele se comporta como alguém esperaria de um carro feito ‘por designação de Sua Majestade Elizabeth II'”.
E como ele se comportava? “Cada polegada do Bentley é sólida. As dobradiças das portas parecem fortes o bastante para sustentar a Tower Bridge [sobre o rio Tâmisa, em Londres]. A atmosfera é silenciosa, o banco traseiro é um trono imperial para se ver sobre o resto do mundo motorizado, com formas perfeitas. Todos os sinais vindos do chassi são abafados, silenciados e filtrados. Tudo é quieto, sereno e livre de contrações musculares até na torre de comando”.
A grade dianteira era uma das poucas diferenças entre o Bentley e o Rolls; atrás dela,
o clássico motor V8 de “seis litros e três quartos” garantia torque e suavidade
O perfil menos formal da Bentley — talvez se pudesse falar em mais esportivo — em comparação à Rolls-Royce foi decisivo para que o Mulsanne recebesse uma versão mais potente no Salão de Genebra de 1982. Sem recursos financeiros para desenvolver um novo motor, o grupo optou pela solução do turbocompressor, que vinha se tornando frequente em diversas marcas.
O Mulsanne Turbo usava o tradicional V8 de 6,75 litros com turbo Garret e carburador de corpo quádruplo (como o do Rolls-Royce Corniche), sendo o primeiro modelo da marca com superalimentação em mais de meio século desde os clássicos esportivos com compressor. Usar injeção eletrônica teria sido uma boa solução, mas acarretaria custos que o fabricante não podia bancar. Uma recirculação automática do ar comprimido, quando o acelerador fosse fechado, levava a pressão de ar de volta à entrada do compressor. A medida evitava que a pressão de superalimentação se perdesse a cada vez que o motorista deixasse de acelerar, o que exigiria alguns instantes para o turbo “encher” outra vez (retardo de atuação do turbo, o chamado turbo lag). Na Alemanha eram divulgados a potência de 298 cv, cerca de 50% acima do motor básico, e o torque de 62,2 m.kgf.
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Os especiais
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Alguns de bom gosto, outros um tanto questionáveis, diversos Bentleys personalizados foram feitos com base nos sedãs deste artigo.
A construtora de carros especiais Jankel fez dois modelos de peruas. A Val d’Isere baseava-se nos sedãs de entre-eixos curto ou longo, que recebiam traseira encurtada. Já a Provence tinha a traseira ainda mais longa que a dos carros de origem, para oferecer mais espaço para bagagem. Ambas podiam ter tração integral — as rodas dianteiras recebiam torque apenas até 48 km/h, sendo desengatadas acima dessa velocidade. Como a definição do acabamento interno ficava a cargo do cliente, aberrações como o interior em amarelo e magenta da foto tornavam-se possíveis.
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A encarroçadora Hooper criou o Empress II,baseado no Turbo R. O quatro-portas era transformado em um cupê com carroceria de alumínio mais baixa e frente inclinada, além de itens como teto solar oval e bocais de abastecimento de combustível em ambos os lados. O interior ganhava bancos individuais ajustáveis, também na traseira, e requintes como televisor, sistema de áudio Alpine e um gabinete com taças de cristal.
O Mentley Insanne (abaixo) é um Mulsanne Turbo 1983 modificado em 2002 que teve toda a carroceria refeita. Faróis de Range Rover, teto envidraçado e rebaixado em 7,6 cm, saídas de ar nos para-lamas e rodas esportivas de 20 pol garantem que o clássico sedã deixe sua fleuma britânica longe, bem longe no passado.
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O carro vermelho parece um caso de personalização numa periferia brasileira qualquer? Talvez, mas é o Mulsanne que a dupla Bernie e Leepu — o mecânico Bernie Fineman e o encarroçador Nizamuddin “Leepu” Awlia — mandou modificar para marcar o fim da série Chop Shop: London Garage no canal Discovery Channel. As alterações da carroceria, feitas em aço, pretendiam lembrar um sanduíche de bacon — o mais tradicional lanche inglês —, mas é difícil encontrar alguma semelhança além da cor… O carro recebeu para-lamas exagerados, seis faróis e rodas esportivas enormes e foi usado em uma promoção da rádio Virgin.
Um Turbo R tornou-se conversível, mantendo as quatro portas, pelas mãos do encarroçador italiano Salvatore Diomante e sua empresa Autocostruzione SD, de Turim. Denominado Torpedo, o modelo amarelo estava longe de ser harmonioso nas formas, com a capota acondicionada atrás do banco traseiro, mas o que vale é o prazer de acelerar o potente V8 a céu aberto, sem abrir mão do conforto.
Nas telas
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Automóveis caros com os da Bentley não são para filmes de qualquer orçamento, mas sempre agregam muito em imagem de requinte aos personagens, o que explica o razoável número de aparições dos modelos desta série no cinema.
O Mulsanne de 1980 pode ser visto na comédia Stella Street (2004), enquanto uma versão Turbo está no filme policial Essex Boys (2000). O primeiro Brooklands, de 1993, tem presenças nas comédias Sabrina (1995) e Ellis in Glamourland (2004), esta holandesa. Um carro mais recente (1996) do mesmo modelo está no policial Fique Rico ou Morra Tentando (Get Rich or Die Tryin’, 2005). Enfim, aparições do Turbo R inicial de 1988 estão no filme policial Efeito Zero (Zero Effect, 1998) e na ação Tiros na Escuridão (Do Not Disturb, 1999). Uma versão de 1996 pode ser notada na comédia Três é Demais (Rushmore, 1998).
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