Desenvolvido por ingleses e alemães em parceria, o médio fez sucesso por quatro gerações e notabilizou-se pelas versões esportivas
Texto: Fabrício Samahá* – Fotos: divulgação
Até a década de 1960, as unidades inglesa e alemã da Ford costumavam trabalhar de maneira independente. Enquanto a primeira havia desenvolvido modelos como os pequenos Anglia e Prefect, os médios Consul e Cortina e os grandes Zephyr e Zodiac, a segunda depositava esforços no Taunus, fabricado em diferentes gerações e tamanhos por 34 anos.
Na segunda metade daquele período os britânicos precisavam de um sucessor para o Anglia de 1959, enquanto os germânicos mostravam interesse em um carro menor que o Taunus para ampliar seu mercado. Dessas necessidades nasceu uma bem sucedida parceria: o Escort, primeiro projeto em comum entre as Fords dos dois países. Em novembro de 1967 começava sua produção em Halewood, no Reino Unido, seguida por Genk, na Bélgica, e em 17 de janeiro do ano seguinte era lançado ao mercado.
Anunciado pela publicidade como “o carro pequeno que não é um”, o Escort (acompanhante em inglês) não tinha um nome inédito na marca: nos anos 50 havia sido designada assim a versão simplificada da Squire, perua da linha Anglia. Suas linhas eram simples e arredondadas, com faróis circulares nas versões de entrada e retangulares nas superiores, inseridos em uma grade mais estreita na região central que seria conhecida como “osso de cachorro”.
O primeiro Escort, resultado de parceria entre ingleses e alemães, tinha tração traseira e motores de 1,1 e 1,3 litro: o começo de uma história concluída apenas em 2000
Com 4,05 metros de comprimento, 1,57 m de largura, 1,49 m de altura e 2,40 m de distância entre eixos, o sedã de três volumes e duas portas pesava 770 kg. Uma perua de três portas aparecia em março seguinte e, na sequência, um furgão dela derivado. O sedã de quatro portas vinha em 1969.
Para competir com o Mini Cooper, a Ford aplicou o motor de 110 cv do Lotus Cortina ao Escort Twin Cam, que inaugurou sua tradição em competições
A concepção mecânica era tradicional, com tração traseira, câmbio manual de quatro marchas e o veterano motor Kent com comando de válvulas no bloco e cabeçote de ferro fundido, do qual derivaria o Endura usado até 1999 nos Ka e Fiesta brasileiros. Havia opções de 1,1 litro (potência de 45 cv) e 1,3 litro (52 cv). A direção de pinhão e cremalheira era novidade em carros pequenos da marca, mas as suspensões seguiam os antigos conceitos de McPherson à frente — a Ford fora pioneira nesse esquema com o Consul de 1951 — e eixo rígido com molas semielípticas atrás.
O motor 1,3 passava a 64 cv no Escort GT, que vinha ainda com conta-giros no painel, suspensão mais firme e freios a disco dianteiros, e no Sport, que acrescentava para-lamas dianteiros alargados. No 1300 E os mesmos para-lamas e rodas esportivas vinham associados a um acabamento superior com apliques de madeira. Um câmbio automático de três marchas passava a ser oferecido logo após, em maio. A produção belga era transferida em 1970 para Saarlouis, na Alemanha.
A linha cresceu rápido, com sedã de quatro portas (mostrado na versão GT), perua e furgão; todos usavam a grade “osso de cachorro” com faróis circulares ou retangulares
Em teste, a revista inglesa Autocar assim descreveu o Escort 1,3 de caixa automática: “Desempenho razoável para sua classe. Sedento se dirigido rápido. Boa transmissão, excelente direção, bons freios. Preço competitivo”. Entre os concorrentes estavam os alemães Opel Kadett e Volkswagen 411, os ingleses MG 1300 e Vauxhall Viva, o italiano Fiat 128 e o holandês DAF 44.
Nas pistas e nos ralis, a alternativa da Ford para competir com o diminuto e ágil Mini Cooper havia sido o sedã Cortina com motor Lotus de 1,6 litro e duplo comando no cabeçote, mas um carro menor e mais leve certamente o aproveitaria melhor. O propulsor de 110 cv com torque de 14,8 m.kgf passou então ao esportivo Escort Twin Cam (duplo comando em inglês), que inaugurou sua tradição em competições (leia quadro abaixo). O para-choque dianteiro em duas partes indicava aos conhecedores que ali atrás não estava um carro qualquer.
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Nas pistas
Em 1968 o Escort substituiu nas competições o bem sucedido Ford Cortina, que teve versões apimentadas pela Lotus, mas era grande e pesado demais para ralis. Antes mesmo que o modelo ganhasse as ruas, o departamento de competições da marca iniciara a adaptação do máximo de componentes — motor, transmissão, suspensões — do Lotus Cortina ao leve e robusto monobloco do pequeno Escort.
O potente Twin Cam estreou no asfalto ainda em 1968, no Campeonato Britânico de Sedãs, usando o motor de 16 válvulas e mais de 200 cv que a Ford empregava na Fórmula 2. Mas em provas de todo tipo de terreno é que o novo carro faria fama mundial. No ano de estreia Roger Clark vencia o Rali das Tulipas, nos Países Baixos, e o da Acrópole, na Grécia, deixando para trás dois Porsches 911, enquanto o jovem finlandês Hannu Mikkola ganhava o Rali dos Mil Lagos em sua pátria no começo de uma carreira brilhante.
Pilotos daquele país — como Hannu Mikkola, Markku Alen, Ari Vatanen, Timo Salonen e Juha Kankkunen — sempre fizeram bonito nos ralis de todo o planeta. Outro bom de braço, o sueco Bengt Soderström, vencia com o Twin Cam no mesmo ano o Rali dos Alpes, na Áustria. Em 1969, mais três vitórias — Alpes, Tulipas e Mil Lagos — e o título de campeão europeu. O Twin Cam de 160 cv tinha como concorrentes o Alpine-Renault A110, o BMW 2002 TI e o Lancia Fulvia 1600 HF.
No ano seguinte o Escort GT com motor de 1,85 litro vencia a prova Londres-Cidade do México, de mais de 25 mil quilômetros; chegou ainda em 3º., 5º., 6º., 8º. e 23º. lugares. Depois de percorrerem várias capitais e cidades famosas da Europa, 71 carros deixaram o velho continente em Lisboa, no navio Derwent, e chegaram ao Rio de Janeiro. Em seguida, muito chão pela América do Sul e pela América Central até a terra dos astecas. Participaram várias equipes oficiais de fábrica, particulares, amadores e aventureiros. O Escort venceu ainda o rali World Cup, com um motor V6 de 2,3 litros, e o dos Mil Lagos.
As vitórias prosseguiram: em 1972 o RS 1600 fazia sua estreia e vencia o Rali Safári no leste africano, o RAC (Royal Automobile Club) na Inglaterra e o de Hong Kong; no ano seguinte ganhava o Mil Lagos, o RAC e o de Heatway, na Nova Zelândia; em 1974, uma dobradinha no Mil Lagos, outra no Tour of Britain (com o RS 2000) e mais uma vitória no RAC. O Escort foi bem sucedido também no Deutsche Rennsport Meisterschaft (campeonato de corridas alemão), categoria antecessora do DTM disputada entre 1972 e 1985. A equipe Zakspeed Racing conquistou quatro títulos com ele, pilotado por Dieter Glemser em 1973 e 1974 e por Hans Heyer em 1975 e 1976.
A segunda geração, que estreava nas pistas em 1975, foi o carro de ralis mais bem sucedido de seu tempo: 17 vitórias até 1981. No primeiro ano o RS 2000 ganhava a prova do RAC nas mãos de Timo Mäkinen, apesar da intensa concorrência de Lancia Stratos, Fiat 131, Alpine, Opel Ascona e Peugeot 504. Pilotado pelo finlandês Ari Vatanen, o RS 1800 faturava um ano depois o Campeonato Britânico de Rali. No Mundial vencia novamente o RAC, chegava em 2º. no Mil Lagos e em 4º. no de Monte Carlo.
O Escort era campeão mundial de rali em 1977 com Mäkinen, Mikkola e Clark e vencia provas como o RAC, o Safári, o Rali Weser-Ems (Alemanha), o Acrópole e o Mil Lagos. Mais vitórias no ano seguinte, entre as quais o RAC, o Circuit des Ardennes (França) e os Ralis da Suécia e do Chipre. O sueco Björn Waldegård era campeão entre os pilotos com o RS 1800, vencendo os ralis Acrópole e de Quebec (Canadá), e a Ford levava o título de construtores em 1979.
Depois de duas vitórias em 1980, Vatanen garantia no ano seguint o troféu de pilotos no Mundial de Rali (venceu no Brasil, na Acrópole e no Mil Lagos) com o mesmo modelo de Escort, diante da feroz concorrência do bem mais moderno Audi Quattro de tração integral. O RS 2000 dessa geração chegou a obter 270 cv, mas não foi a única versão bem sucedida: Escorts mais acessíveis podiam ser transformados em grandes competidores com custos moderados, o que foi feito com êxito não só na Europa, mas também na África do Sul, na Austrália e na Nova Zelândia.
Quando o Escort de rua já usava tração dianteira, nos anos 80, uma versão de tração traseira foi desenvolvida para os ralis da categoria de carros superpotentes Grupo B. O RS 1700T usava motor Cosworth de 1,8 litro com turbo e mais de 300 cv, sendo uma unidade Hart (de Fórmula 2) de 2,4 litros também estudada. A carroceria era a do terceiro Escort, mas com quatro faróis circulares e para-lamas bem largos. Contudo, o carro apresentou problemas e a Ford logo engavetou o projeto, passando a trabalhar em um modelo todo novo e com tração integral: o RS 200, que teria vida curta com o encerramento da categoria após graves acidentes. Apesar disso, pilotos particulares usaram essa geração em ralis.
Ao fim daquela década a fábrica buscava um sucessor nos ralis para o Sierra RS Cosworth, que estava em fim de produção e, como o Lotus Cortina dos anos 60, era grande e pesado demais para tal aplicação. Stuart Turner, diretor de competições da Ford, então propôs: “Por que não tentamos usar a plataforma e o trem de força do Sierra, encurtá-la e ver se a carroceria do novo Escort se encaixa?”. A ideia podia parecer absurda, pois o Escort tinha motor transversal e tração dianteira, enquanto o Sierra básico usava motor longitudinal e tração traseira. Mas os estudos indicaram viabilidade e o projeto começou em 1988.
O Escort RS Cosworth obtinha sua homologação em janeiro de 1993, usando uma versão do motor de rua com potência declarada de 300 cv, embora a estimativa seja de cerca de 350 cv reais. Com câmbio manual de seis marchas, suspensões McPherson em ambos os eixos e peso de 1.230 kg com piloto, acelerava de 0 a 100 km/h em cerca de três segundos. Ele começava a correr no mesmo ano, vencendo os Ralis de Portugal, da Córsega, da Acrópole e da Catalunha pelo Mundial de Rali. No ano seguinte faturava as provas de Monte Carlo e dos Mil Lagos, em 1995 obtinha dois segundos lugares e um ano mais tarde vencia na Indonésia. Pilotos como o espanhol Carlos Sainz, o francês François Delecour, o italiano Massimo Biasion e o finlandês Tommi Mäkinen esbanjaram competência a seu volante.
Com o encerramento da produção do RS Cosworth de rua, o Escort de rali foi revisto para a temporada de 1997, da qual participaria na classe World Rally Cars. O motor agora produzia 310 cv declarados, o câmbio era do tipo sequencial e a suspensão traseira evoluía a partir de técnicas do Mondeo. Grade, tomadas de ar, para-choques e aerofólio traseiro eram remodelados. Naquele ano, Sainz venceu com ele os Ralis da Acrópole e na Indonésia, mas no seguinte — o último de sua carreira esportiva — ele não passou do segundo lugar. Foi dirigido nessa fase por outros notáveis como o alemão Armin Schwarz e os experientes finlandeses Kankkunen e Vatanen.
Com Francis Castaings
* Bob Sharp colaborou com o texto original que foi base para este artigo
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