Com nova marca, nova fábrica e novos carros, os norte-americanos buscavam enfrentar o avanço nipônico
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Das várias medidas da indústria norte-americana para combater o avanço japonês em seu território, uma das mais ousadas foi a instauração da Saturn pela General Motors. Quando tudo começou, em 1982, a proposta resumia-se a um modelo de automóvel compacto para os padrões locais, apresentado como conceito em 1985. Mas evoluiria para a criação de uma divisão com fábrica e rede de concessionárias exclusivas (no Canadá as revendedoras eram comuns a Isuzu e Saab, do mesmo grupo).
“Um novo tipo de fabricante de carros” era como a GM anunciava sua sétima marca nos EUA — ao lado de Buick, Cadillac, Chevrolet, GMC, Oldsmobile e Pontiac, embora tenham existido outras no passado —, que começava em julho de 1990 a produzir automóveis na também nova unidade de Spring Hill, no estado do Tennessee. Sua estratégia abrangia uma política de preços sem margem para descontos, frequentes na GM, e ênfase na satisfação com a assistência técnica.
A fábrica seguia métodos japoneses de controle de qualidade. A produção usava mínimos estoques (just in time) e todos os componentes, até pneus, tinham um só fornecedor — privilégio concedido aos que aceitassem seus padrões de exigência e negociação de preços. Funcionários eram tratados como parceiros, com poder de influenciar decisões por meio de suas equipes, e cada um podia parar a linha de montagem se detectasse um defeito.
O Saturn SL: plástico na carroceria, motor 1,9-litro, métodos orientais na fabricação
Os Saturns eram diferentes também como produtos. O sedã de quatro portas SL e o cupê SC usavam plataforma exclusiva com chassi espacial de aço e carroceria mista: portas, para-lamas e painéis laterais de plástico resistente a riscos e o restante de aço. Suas linhas eram ousadas para a época, com frente baixa e longa, ausência de grade (admitia ar pelo para-choque), amplo para-brisa, vidro traseiro bastante envolvente.
O SC adotava terceira porta “suicida” (aberta para trás), já vista em picapes, para facilitar a colocação de volumes pelo motorista
O sedã, que media 4,48 metros de comprimento e 2,60 m de distância entre eixos e pesava a partir de 1.053 kg, competia com Honda Civic, Nissan Sentra e Toyota Corolla. O cupê acusava 4,47 m, 2,52 m e 1.040 kg, na ordem, e enfrentava Honda CRX, Mazda MX-3, Mitsubishi Eclipse e Toyota Paseo. Seus faróis escamoteáveis, em voga na época, seriam abandonados na versão de entrada SC1 em 1993 — mesmo ano em que aparecia a perua SW. O interior podia ser confundido com o dos rivais japoneses.
Também inédito na GM, o motor de 1,9 litro com bloco de alumínio oferecia versões com comando de válvulas simples, duas válvulas por cilindro e injeção monoponto (potência de 85 cv e torque de 14,7 m.kgf) e comando duplo com quatro válvulas e injeção multiponto (124 cv e 16,9 m.kgf). Com tração dianteira, o SL e o SC podiam ter transmissão manual de cinco marchas ou automática de quatro com controle eletrônico; usavam suspensão McPherson em ambos os eixos e freios a disco na frente e a tambor atrás, os primeiros na categoria com opção por sistema antitravamento (ABS). No cupê, suspensão e direção tinham calibração mais esportiva.
O cupê SC usava faróis escamoteáveis; por dentro, semelhanças aos concorrentes
A revista inglesa Car gostou do que viu: “A qualidade de rodagem tem uma firmeza germânica. Sua referência em amortecimento foi a BMW. Imagine um motor de 124 cv, ajustado para torque, que empurre desde 1.000 rpm em quinta. Zero a 96 km/h requer cerca de 8,5 segundos com caixa manual e 9,1 s com a automática. Ele tem um jeito esportivo e é divertido de dirigir, qualidade que fugiu da maioria dos carros norte-americanos da GM por anos”.
Como o site canadense Autos.ca analisaria mais tarde, “o primeiro modelo imitou e, em algumas áreas, aprimorou a fórmula dos competidores importados. Oferecia um motor eficiente, suspensão independente, comportamento preciso e preço razoável. Tinha também recursos únicos, como os painéis à prova de riscos. Embora não tenha substituído o Civic e o Corolla como carro pequeno mais vendido da América do Norte, ele forneceu aos compradores uma alternativa nacional confiável no mercado de sedãs compactos”.
“Este sedã confortável e de boa estabilidade é repleto de custo-benefício, feito com atenção cuidadosa ao controle de qualidade”, definia a Motor Trend. Com a adoção de bolsa inflável para o motorista em 1993 e para o passageiro um ano depois, os cintos dianteiros deixavam de ter o criticado acionamento automático. “A Saturn Wagon é um veículo atraente. Oferece muito espaço interno, bolsa inflável de série e, do banco do motorista, parece um sedã esportivo. Elogiamos a suspensão pelo rodar firme com boas respostas e excelente previsibilidade”, acrescentava a Road & Track.
Mais espaço e teto arredondado nos modelos 1996; depois o SC ganhava faróis fixos
Alterações no interior dos modelos 1995 incluíam painel de instrumentos e console redesenhados, enquanto o cupê ganhava novos para-choques e lanternas traseiras. Um ano mais tarde o sedã e a perua adotavam linhas e teto mais arredondados, faróis maiores e aumento de espaço interno. O motor básico ganhava injeção multiponto para obter 100 cv e 15,8 m.kgf. O SC acompanhava a reforma para 1997: faróis fixos inclinados, formas mais curvilíneas e o mesmo entre-eixos do sedã. “Chassi ágil, motor potente e interior silencioso. Ficamos surpresos com sua natureza divertida de dirigir”, destacou a Car and Driver, que lamentou o rodar áspero e os ruídos internos.
Dois anos mais tarde o SC adotava terceira porta “suicida” (aberta para trás) no lado esquerdo. A ideia, já vista em picapes, mas nunca em cupês, era facilitar a colocação de pequenos volumes no interior pelo motorista, não a entrada de passageiros — para isso ela deveria estar no lado direito, como se veria no Hyundai Veloster. “A porta adiciona 21 kg ao peso, mas não penaliza sua integridade estrutural. O SC2 possui um caráter razoavelmente esportivo e levou 8,5 segundos para atingir 96 km/h. Não é um sonho de corredor de rua, mas provavelmente satisfará o comprador típico, que valoriza estilo e confiabilidade sobre desempenho puro”, analisou a Motor Trend.
Depois de reduções de ruídos e nova caixa automática em 1998, sedã e perua recebiam para 2000 faróis maiores, lanternas traseiras interligadas sobre a placa de licença e novos painel e volante. Apenas teto e tampa do porta-malas eram mantidos da carroceria anterior. Em comparativo a Car and Driver colocou o SL2 em nono lugar, à frente de Suzuki Esteem, Toyota Echo, Daewoo Nubira e Kia Sephia, mas atrás de Mitsubishi Mirage, Chevrolet Prizm, Hyundai Elantra, Dodge Neon, Honda Civic, Ford Focus, Nissan Sentra e Mazda Protegé (do 13°. para o 1°.).
No cupê, terceira porta à esquerda em 1999; o sedã mudava pouco, um ano depois
“O preço do Saturn é o mais alto do grupo e não há margem de negociação. Isso é muito ruim, porque ele não tem a qualidade ou a sofisticação para competir nesse valor. O melhor é o motor potente, mas sua frenagem foi abaixo da média, mesmo com ABS. Piores aspectos: conforto e qualidade. O painel tem moldagem rústica, o motor é ruidoso, espaço e conforto no banco traseiro são os piores”, alegava a revista ao constatar a defasagem do projeto.
Os modelos da série S deixavam o mercado em 2003, cedendo lugar ao sedã e ao cupê Ion. Embora os Saturns iniciais tenham obtido relativo sucesso — mais de dois milhões vendidos entre as três carrocerias —, a proposta da marca perdeu-se com o tempo, a começar pela exclusividade técnica. A série L de carros médios, de 2000, já recorria a plataforma e motores do Opel Vectra em um compartilhamento que se acentuaria nos anos seguintes.
Ao fim da década, toda sua linha usava mecânica e arquitetura comuns a outras divisões. Vários modelos eram iguais aos das marcas europeias Opel e Vauxhall; carrocerias de plástico já não tinham lugar. Com a crise de 2008 veio o golpe final: a GM decidiu priorizar quatro marcas (Buick, Cadillac, Chevrolet e GMC) e vender ou encerrar Hummer, Pontiac e Saturn — a Oldsmobile havia desaparecido em 2004. Fracassada a tentativa de venda à Penske Automotive Group, a fabricação da Saturn era encerrada em outubro de 2009, com prazo de um ano para fechamento das concessionárias. Acabava ali o sonho da divisão da GM contra os japoneses.
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