Diversos nas soluções, cinco supercarros representam o melhor que a Ferrari desenvolveu em mais de 30 anos
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
A marca do cavalinho empinado foi responsável, em seus mais de 70 anos de existência, por alguns dos carros esporte de rua mais fascinantes que o mundo já conheceu. Neste artigo especial do aniversário de 22 anos do Best Cars, contamos como surgiram e evoluíram cinco modelos de topo entre os supercarros da Ferrari: 288 GTO, F40, F50, Enzo e La Ferrari. Grandes automóveis que, por mais de 30 anos, ocuparam a parede do quarto, o fundo de tela do computador e a galeria do celular de gerações de aficionados. E que formaram uma tradição a ser seguida, daqui em diante, pelo SF90 Stradale.
288 GTO: feito para o Grupo B
O 288 GTO — como é mais conhecido hoje, embora a denominação oficial fosse apenas GTO — não foi o primeiro Ferrari a usar a mitológica sigla, que significa Gran Turismo Omologato ou grã-turismo homologado (aprovado para competição): houve entre 1962 e 1964 o 250 GTO, projetado pelo famoso engenheiro Giotto Bizzarrini. Foram fabricadas apenas 36 unidades desse supercarro, dotado de motor V12 de 3,0 litros e 300 cv para um peso de 880 kg. Hoje elas são peças de coleção valiosíssimas: em 2018, uma alcançou US$ 48,4 milhões em um leilão da RM Sotheby’s.
Na época, os avanços tecnológicos conquistados nas corridas chegavam rapidamente aos carros esporte de rua, mas esse processo começou a se perder na década de 1970. Era cada vez mais raro um comprador de Ferrari levar seu automóvel às pistas. Bem mais comum tornava-se a demanda de que a marca de Maranello aprimorasse o conforto e o refinamento de seus modelos, tornando-os mais adequados ao uso em rua, mas também mais “mansos” e pesados.
Grã-turismo homologado: a sigla do clássico 250 GTO ressurgia no 288 GTO de 1984, o primeiro Ferrari a usar fibras de carbono e de aramida na carroceria
Ao reduzir sua atuação em competições — salvo a Fórmula 1, muito distante dos carros de rua —, a Ferrari começou a ver seu reinado entre os carros esporte ser ameaçado por outras marcas, como a Lamborghini. A empresa de Sant’Agata Bolognese havia começado em 1963 com o grã-turismo 350 GT, mas em 1966 lançara um ícone da história dos supercarros, o Miura. Seu sucessor Countach, de 1974, voltou a causar sensação entre os aficionados.
Além da concorrência, a Ferrari sofria os efeitos da escolha do motor boxer de 12 cilindros horizontais opostos, adotado no 365 GT/4 BB (Berlinetta Boxer) de 1971 e seguido pelo Testarossa de 1984 e suas evoluções 512 TR e 512 M. Apesar da charmosa ligação com as pistas — os Fórmula-1 imortalizados por Niki Lauda —, o “V12 a 180 graus”, como o fabricante o anunciava, era longo demais para um verdadeiro carro esporte.
Na década de 1980, a direção da Ferrari decidia tomar um novo caminho para se reerguer. O recém-criado Grupo B da Federação Internacional do Automóvel (FIA) parecia a oportunidade ideal para, novamente, vincular seus carros de rua aos de competição: o regulamento exigia uma série mínima de 200 exemplares em um ano para a homologação, como na antiga categoria GT em que o 250 GTO competira.
Embora derivado do 308, o GTO tinha melhores proporções pelo maior entre-eixos; o motor V8 biturbo de 2,85 litros produzia 400 cv para superar 300 km/h
O novo GTO era revelado no Salão de Genebra em março de 1984 — ficaria conhecido como 288 GTO em alusão ao motor de 2,8 litros e oito cilindros, seguindo o critério de denominação de vários Ferraris. O ponto de partida do projeto foi o 308 GTB, mas com proporções mais agradáveis pelo aumento da distância entre eixos em 110 mm, a traseira encurtada e os para-lamas e bitolas mais largos. Quatro faróis retangulares, estrias para saída de ar nos para-lamas traseiros (inspiradas nas dos para-lamas dianteiros do 250 GTO) e defletor “rabo de pato” completavam o belo desenho, obra de Leonardo Fioravanti à frente do estúdio Pininfarina.
No GTO o motor V8 foi para a posição longitudinal e recebeu dois turbos; a cilindrada de 2,85 litros atendia ao limite do Grupo B tendo em vista o coeficiente de equivalência
Se por fora ele se parecia com o Ferrari mais “acessível” da época, sua mecânica era inovadora. O chassi tubular era vestido por uma carroceria de materiais leves, como plástico reforçado por fibra de carbono e fibra de aramida (kevlar, usada em carros blindados), esta aplicada ao capô e ao teto, o que continha o peso em apenas 1.160 kg. Tais materiais eram empregados em um Ferrari pela primeira vez.
O motor V8 a 90º central-traseiro com bloco de alumínio e quatro válvulas por cilindro, também derivado do 308, foi realocado para a posição longitudinal e recebeu dois turbocompressores da japonesa IHI (Ishikawajima-Harima Heavy Industries) e dois resfriadores de ar. A cilindrada era reduzida de 3,0 para 2,85 litros para atender ao limite do Grupo B (4,0 litros), tendo em vista o coeficiente de equivalência de 1,4, vigente na época para motores com superalimentação (2,85 x 1,4 = 3,99). Com avançada central eletrônica, o GTO produzia potência de 400 cv a 7.000 rpm e torque de 50,6 m.kgf a 3.800 rpm, o bastante para acelerar de 0 a 100 km/h em torno de 5 segundos e atingir velocidade máxima de 306 km/h — pela primeira vez um modelo de série superava 300 km/h.
Bancos de couro e opcionais de conforto faziam do GTO um carro agradável por dentro; a alavanca de transmissão com grelha era típica da marca
Para um carro tão rápido, o 288 GTO podia ser considerado luxuoso, com bancos revestidos em couro, assoalho acarpetado e boa aparência interna. Havia opcionais como ar-condicionado, controle elétrico de vidros e rádio/toca-fitas, que a Ferrari não colocava como itens de série por serem dispensados no uso em competições. O tanque de combustível para 120 litros garantia boa autonomia mesmo em viagens velozes.
Phil Hill, campeão de Fórmula 1 em 1961, dirigiu o novo GTO e o antigo para a revista norte-americana Road & Track e relatou: “Os puristas provavelmente lamentam que ele não tenha um V12, e admito que o som do GTO de 1962 pode ser mais emocionante, mas esse é o único ponto de superioridade. O novo GTO está livre dos incômodos que muitos carros turbo têm hoje, como a resposta inicial lenta do acelerador seguida por um excesso de potência. A progressividade e seu controle são dos melhores”.
Hill elogiou também o comportamento dinâmico: “Apesar da potência, ele tem uma sensação leve e ágil e não a natureza pesada e intimidadora de, digamos, um Berlinetta Boxer ou Lamborghini Countach. A aderência na estrada é fenomenal. Poucos carros que eu dirigi podem chegar tão longe. Não é difícil imaginar como seria essa máquina em Le Mans… Os freios provaram ser da mesma ordem que o restante do pacote. Estou feliz por a Ferrari ter, mais uma vez, um grã-turismo com verdadeiro potencial de competição”.
A competição que a Ferrari almejava não se concretizou: o Grupo B foi abolido após graves acidentes e o 288 nunca chegou a participar das provas
A revista inglesa Evo, nos anos 2000, incluiu o 288 GTO em uma avaliação especial da marca: “Ele é considerado por muitos o mais belo Ferrari de todos os tempos. A cabine é luxuosa comparada às dos outros modelos. Ele não parece mais lento que o F40, com seu V8 biturbo empurrando-o pela estrada com uma inundação de torque. O soberbo chassi extrai o máximo do carro”.
A mesma publicação colocou o GTO lado a lado ao Porsche 959, o confronto que os fabricantes idealizaram, mas nunca ocorreu no Grupo B: “Não existe tração integral ou ABS no Ferrari. Ao contrário do 959, o GTO acenderá os pneus traseiros e deixará um rastro largo e preto por toda a estrada em primeira e segunda marcha. Ele também possui a direção mais rápida e mais hiperativa de qualquer carro de estrada, à parte um Caterham. O GTO também é leve: 290 kg a menos que o 959. O resultado é um carro de desempenho incrivelmente ágil e maleável”.
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De 0 a 100 km/h em cerca de 5 segundos: o GTO era muito rápido para seu tempo, em que competia com o bem mais sofisticado Porsche 959
Qual teve maior significado para seu fabricante? “O 959 é o mais significativo. Para a Porsche, seu valor não era representado pelo lucro — de fato, Ferdinand Piëch, um dos principais acionistas da Porsche, dizia que cada 959 fazia a empresa perder dinheiro —, mas pelo puro aprendizado durante o desenvolvimento do carro. O 959 é talismânico por ser o avô de todos os Porsche modernos. Já o GTO é uma obra-prima até hoje. Explorável, emocionante, bonito e sedutor, o GTO pode nunca ter corrido, mas venceu esse confronto”.
O GTO não teve a esperada carreira em competições: o Grupo B foi cancelado, devido a acidentes fatais em ralis, e nem mesmo a versão Evoluzione (leia quadro na página 4) chegou a corridas. Mesmo assim, as 272 unidades fabricadas — todas na cor vermelha — até 1987 elevaram o prestígio da Ferrari e trouxeram lucros ao fabricante. Mais que isso, serviram de sedimento para um projeto mais ambicioso: o do F40.
Pouco antes de morrer, Enzo Ferrari viu nascer um dos carros mais marcantes de Maranello: o F40, idealizado como um esportivo puro, focado apenas em desempenho
F40: comemoração à altura
A Ferrari garante que não houve relação, mas o projeto do F40 talvez não tivesse existido se não fosse pelo Porsche 959. Apresentado como o conceito Gruppe B no Salão de Frankfurt de 1983, o supercarro alemão chegava ao mercado três anos depois como uma demonstração de capacidade tecnológica, um automóvel que buscava o desempenho por meio de extrema sofisticação mecânica e eletrônica.
Para combatê-lo, a Ferrari não poderia ter seguido em direção mais oposta que com o F40, cujo nome celebrava os 40 anos da marca. A proposta do F40 era ser um puro carro esporte — nu e cru, isento de qualquer refinamento ou conforto, mas voltado ao máximo desempenho e ao total envolvimento do motorista na direção. Essa escolha levou a escolhas como direção sem assistência e freios sem sistema antitravamento (ABS) ou mesmo servofreio, para maior sensibilidade e menor peso.
Seu desenho era belo de uma maneira especial: não a elegância de linhas curvas de um 250 GTO, mas a esportividade intimidadora de capô dianteiro e laterais com tomadas de ar do tipo NACA (sigla em inglês para o Comitê Consultivo Nacional de Aeronáutica dos Estados Unidos, que precedeu a NASA) e um aerofólio traseiro quase da altura do teto. Os faróis vistos atrás de carenagens eram os de neblina: os principais vinham escamoteáveis.
As tomadas de ar no capô e nas laterais do F40 seguiam o padrão NACA; na traseira, cobertura transparente sobre o motor e as clássicas lanternas
Em vez do vidro traseiro pequeno e vertical e da tampa de motor plana do GTO, uma grande janela plástica traseira tinha saídas de ar para dissipar calor do motor. As quatro lanternas circulares na traseira faziam a ligação a Ferraris de várias eras. As tampas dianteira e traseira da carroceria eram amplas, incluindo os para-lamas, mas finas e frágeis a ponto de terem de ser erguidas por uma pessoa de cada lado. Quando aberta, a de trás deixava tudo à mostra: motor completo, barras de reforço estrutural, os três silenciadores finais do escapamento rumo a saídas centrais, os imensos pneus.
O F40 recebeu carroceria com painéis de fibra de aramida e portas e capôs de fibra de carbono: o peso do conjunto foi reduzido em 20%, mas com rigidez 300% maior que no GTO
Por dentro, o F40 chocava pela simplicidade: a fibra de carbono ficava à vista nas portas e no assoalho, o painel dispensava estética e não havia nem mesmo travas externas e vidros que sobem e descem no modelo inicial — bastavam janelas corrediças de plástico para pagar o pedágio. Dentro da porta, nada de maçaneta: puxava-se uma cordinha para a abertura. Sistema de áudio, nem pensar. Ar-condicionado era a única concessão ao conforto, mesmo porque o calor interno seria insuportável sem ele, dada a escassez de revestimentos. Os bancos vermelhos ofereciam três tamanhos ao motorista, a escolher na compra, e vinham forrados em camurça como o volante Momo. Pedais perfurados de liga leve e cintos de cinco pontos completavam o tom esportivo.
A estrutura tubular do F40, com subchassis para o trem de força e a suspensão, recebeu uma nova carroceria leve e rígida, com painéis de fibra de aramida e portas e capôs de resina impregnada de fibra de carbono. Comparado ao GTO, o peso do conjunto foi reduzido em 20%, mas com rigidez 300% maior. Derivado do antecessor, o motor desse Ferrari comemorativo cresceu para 2.936 cm³ por meio de maior diâmetro de cilindros e menor curso de pistões, pois não havia mais a restrição do Grupo B.
Fibras de carbono e aramida faziam do F40 um carro leve e muito mais rígido que o GTO; evoluído do antecessor, o motor V8 biturbo de 3,0 litros fornecia 478 cv
Recebeu válvulas ocas para menor peso, virabrequim e bielas reforçados e pistões refrigerados por jatos de óleo por baixo. A pressão dos mesmos turbos aumentava de 0,8 para 1,1 kg/cm², os resfriadores tinham maior capacidade e o coletor de admissão usava oito borboletas. O sistema de injeção, mais sofisticado, era sequencial e com dois injetores por cilindro. Todo esse trabalho resultava em 478 cv a 7.000 rpm e torque de 58,8 m.kgf a 4.000 rpm. Como o F40 era ainda mais leve (em 60 kg) que o antecessor, obtinha aceleração fenomenal para a época: de 0 a 100 km/h em 4,1 segundos e de 0 a 200 em 12 s com máxima de 324 km/h. A transmissão manual ZF de cinco marchas usava um pomo metálico e grelha para marcar as posições da alavanca, na tradição Ferrari.
Se a Porsche apostara em um sofisticado sistema de tração integral para o 959, o F40 seguia a proposta essencial ao despejar toda a potência só nas rodas traseiras, contando apenas com os largos pneus Pirelli P-Zero assimétricos e direcionais (nenhum dos quatro era igual a outro) e diferencial autobloqueante. As suspensões independentes, como no GTO, tinham braços triangulares sobrepostos. Nos discos de freio ventilados, a superfície de contato de ferro fundido era aparafusada a uma parte central de liga de alumínio, mais leve.
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Os especiais
Os Ferraris deste artigo são carros tão especiais, que parece improvável alguém os levar a uma preparadora em busca de algo ainda mais potente e exclusivo — mas isso aconteceu com alguns deles.
O F40 passou pelas mãos de ao menos quatro preparadoras: Euromotor, Hamann, Imola Racing e Liberty Walk. Elas aplicavam rodas especiais, aerofólios reguláveis, peças de carroceria ainda mais leves e, em alguns casos, instalavam quatro faróis circulares fixos atrás de carenagens, como nos carros de corrida da Michelotto (leia quadro na página 4). O da Hamann usava saídas de ar no capô dianteiro e motor preparado para 620 cv, com os quais a empresa anunciava 345 km/h.
Já o F50 foi modificado pela Koenig Specials, empresa alemã de Munique, que aplicou dois turbos ao V12 para obter 850 cv e torque de 81,6 m.kgf. Rodas BBS de 18 pol e freios especiais mantinham sob controle o supercarro apto a 372 km/h, de acordo com a preparadora.
Para o Enzo, a alemã Gemballa (mais conhecida por trabalhos com Porsches) propôs o pacote MIG-U1, com alterações de estilo e aerodinâmica e motor V12 modificado para render 709 cv.
Dentro do F40, nada de luxo: fibra de carbono à mostra, portas sem forro e com cordas para abrir, janelas com escotilha corrediça para pagar pedágio
A revista inglesa Autocar elogiou a facilidade para dirigir um carro tão potente: “O F40 passa por um curto período de mansidão e, chegando a 3.000 rpm, começa a decolar. Logo surge uma corrida frenética quando o carro se lança para a frente, prendendo-o com força no assento. A entrada na próxima marcha é perfeita e, com os turbos a pleno, segue a explosão da aceleração. Ele tem a qualidade tonal de um motor de F-1, se não a pura ferocidade. Em pista, são necessárias apenas as primeiras curvas para demonstrar a precisão e a resposta da direção e a aderência absoluta”.
Também britânica, a Car fez o esperado comparativo com o 959: “O F40 é sensacional, muito mais emocionante e gratificante de olhar do que o Porsche. É um carro de corrida que pode legalmente ser solto na estrada. Para uma emoção de tirar o fôlego, o F40 é supremo. No entanto, há poucas dúvidas de que o 959 seja o melhor carro: mais rápido em uma viagem longa, porque é menos cansativo; mais rápido em uma estrada alpina, porque possui melhor tração e maior agilidade. Em suma, o 959 é um marco tecnológico, provavelmente o maior carro esportivo dos anos 80. O Ferrari será lembrado como o carro mais rápido de sua época, mas a velocidade por si só não substitui a grandeza”.
Nos Estados Unidos, a Car and Driver comparou-o em 1992 ao Lamborghini Diablo: “Qual é mais rápido? O F40. Embora com turbo, o motor responde muito bem, mesmo abaixo de 4.000 rpm. Em qualquer curva ele é praticamente neutro, enquanto o Diablo quer sair de frente. Apesar de suas pequenas dimensões, o interior parece arejado e espaçoso comparado ao do Diablo e não há um massivo console entre os bancos”.
Apto a 0-100 km/h em 4,1 segundos, o F40 era emocionante ao extremo; a produção acabou sendo bem maior que a prevista (nas fotos, encontro em 1992)
“O que falta é som de motor, absorvido pelos dois turbos. O que ele tem a mais é ruído de rodagem: sua cabine de fibra de carbono é um perfeito amplificador. Faixas de expansão de rodovias parecem tiros de rifle”, observou a revista. No teste, o F40 acelerou de 0 a 96 km/h em 4,2 segundos e alcançou 1,01 g de aceleração lateral, contra 4,4 s e 0,95 g do Diablo. A conclusão: “Nossa escolha unânime é pelo F40, mesmo US$ 198.440 mais caro que o Lamborghini” — diferença de 72% sobre o preço do rival.
A Ferrari sempre alardeou que o F40 fosse o último carro idealizado pelo comendador Enzo, que morreria no ano seguinte, mas isso é improvável. Além da idade avançada (89 anos quando o modelo foi apresentado), o chefe já não participava das decisões da empresa, que de resto vinham de cima — da Fiat, detentora de seu controle acionário desde 1969. Isso não tira nenhum dos méritos do F40, que foi um sucesso tanto de imagem quanto do ponto de vista comercial.
A produção prevista de 400 unidades foi estendida a exatas 1.311, encerradas em 1992. Mesmo assim, havia quem pagasse um polpudo ágio por um: nos EUA, em 1991, era comum alcançar mais de US$ 700 mil na revenda ante o preço sugerido de US$ 399 mil. Até o ex-piloto da escuderia Nigel Mansell vendeu o seu com enorme lucro assim que o recebeu. Sua combinação de interior espartano e desempenho brutal chamou atenção mundo afora e garantiu seu espaço entre os Ferraris mais lembrados da história — mesmo no Brasil, onde foi dirigido nas avenidas de Brasília em 1990, pelo então presidente Fernando Collor, antes de ser uma das estrelas do Salão do Automóvel de São Paulo.
Uma foto imortalizada: a vista frontal do F50, o mais veloz Ferrari do século XX, estampava a página inicial da primeira edição do Best Cars há 22 anos
Atribui-se ao F40 — mais que ao 959 — o começo de uma nova corrida dos fabricantes por supercarros cada vez mais potentes e impressionantes na década de 1990. Depois do Lamborghini Diablo vieram Bugatti EB 110, McLaren F1 e Jaguar XJ 220, todos aptos a mais de 320 km/h. Uma corrida que demandou da Ferrari uma resposta à altura: o F50.
De motor e transmissão estruturais unidos ao chassi e suspensão até o V12 de aspiração natural, tudo no F50 se espelhava na categoria de corridas mais prestigiada
F50: um Fórmula 1 para as ruas
Se o F40 comemorou à altura os 40 anos da Ferrari, o que seria preciso para celebrar meio século da fabricação de carros de rua? Mais uma vez, nada menos que o máximo — e esse máximo em 1995, com dois anos de antecipação, foi o F50.
A ideia de Maranello foi oferecer ao público a versão de rua de um Fórmula 1. Desde a concepção, com motor e transmissão estruturais unidos ao chassi e suspensão, até o V12 de aspiração natural, tudo se espelhava em um carro da categoria de corridas mais prestigiada do mundo. O motor de 4,7 litros com cinco válvulas por cilindro, bielas de titânio, lubrificação por cárter seco e borboletas de aceleração individuais era derivado do 3,5-litros usado na F-1 de 1990, devidamente “amansado” para girar a até 8.500 rpm em vez de 14 mil rpm.
Linhas arredondadas, teto targa, motor V12 aspirado em vez de V8 biturbo: o F50 era um supercarro com conceitos bem diferentes de seu antecessor
Os 520 cv indicavam potência específica de 110,7 cv/litro, um recorde à época em aspirados, mas o torque de 48 m.kgf era claramente menor que no F40 ou mesmo que no 288 GTO. Mesmo assim, o F50 acelerava de 0 a 100 km/h em 3,9 segundos e atingia a máxima de 325 km/h. O piloto Gerhard Berger, que participou dos testes em seu desenvolvimento, cumpriu a volta no circuito de Fiorano em 88 segundos, 3,5 s a menos que a melhor marca do F40.
Se o peso de 1.330 kg parecia alto comparado ao do antecessor, eram 225 kg a menos que no F512 M, o último da série Testarossa, também com 12 cilindros. Para contê-lo, além de toda a fibra de carbono, eram usadas rodas de magnésio (com fixação por elemento central) e partes da suspensão de titânio. Molas e amortecedores operavam em posição horizontal, como na F-1. Os pivôs da suspensão tinham uma junta esférica de metal revestida com Teflon, o que dispensava buchas de borracha para garantir a geometria mesmo sob esforço.
O F50 era mantido colado ao solo por um enorme aerofólio e pelo fundo plano todo carenado, recursos que produziam uma sustentação negativa de 310 kg a 300 km/h, sendo 65% no eixo traseiro. Para completar a sensação de dirigir um Fórmula 1, o interior deixava a fibra de carbono à mostra, usava bancos concha sem regulagens (os pedais, porém, eram ajustáveis) e dispensava sistema de áudio e acabamentos refinados — nada de toca-CD de 10 discos, como no McLaren F1, ou de apliques de madeira como no Bugatti EB 110. Também não havia assistência na direção.
O interior era mais confortável que o do F40, assim como a suspensão com controle eletrônico, que usava titânio em alguns componentes; as rodas eram de magnésio
Justiça seja feita, era um pouco mais fácil conviver com ele que com o F40. Cabiam alguns objetos em um conjunto de três bolsas de couro Connolly — tradicional fornecedora da Rolls-Royce —, usado também em parte do revestimento dos bancos. O acesso ao interior era mais fácil e o controle eletrônico dos amortecedores (com ajuste em separado para cada roda, não em conjunto como no F355 e no 456 GT) deixava a suspensão mais tolerante a irregularidades.
Coerente com seu tempo, o estilo do F50 aplicava curvas onde o F40 tinha apenas linhas retas. Os faróis eram fixos, atrás de carenagens, e havia grandes saídas no capô dianteiro para o ar admitido pela grade. O painel traseiro era uma tela para ajudar na dissipação de calor do motor, o que conferia charme adicional ao expor elementos mecânicos. O supercarro era um targa com teto rígido removível, cuja instalação ou retirada levava cerca de meia hora.
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Embora mais pesado, o F50 melhorava o tempo de volta em Fiorano em relação ao F40; a aerodinâmica produzia mais de 300 kg de sustentação negativa
A inglesa Car aprovou o F50: “Ele pode ter 520 cv, mas é meio que um gatinho. Ele confere a um motorista de habilidades comuns um gosto de algo sublime, sem assustá-lo ou removê-lo da ação. Outros carros devoram asfalto mais rapidamente em situações difíceis, mas nenhum deles eletrificará seu sorriso como o F50 em condições adequadas”. A favor do conforto, “o carro mais frenético da Ferrari tem a troca de marchas mais fácil da empresa, leve e agradável, mas ainda assim rápida e precisa. Você sabe em que forma a estrada está, pois o rodar é sempre firme, mas choques e vibrações são filtrados. Os amortecedores mantêm a aderência e não há uma molécula de folga, porque não há borracha em nenhum lugar da suspensão”.
“Você precisa trabalhar para extrair o verdadeiro poder” do motor V12. “A 4.500 rpm você está começando a provar daquele uivo devastador do túnel de Mônaco. O Ferrari não atinge o pico de torque até 6.500 e pode acelerar até 8.500 com uma música calamitosa, deliciosa, de explosão de escapamento. Os freios são colossais, sem servo e de tirar o fôlego. O pedal pede um empurrão forte. Este carro adora grande velocidade, mas mais do que isso adora mudanças: acelerar, frear, fazer curvas”, concluiu.
Nos EUA, a Motor Trend anunciou: “Em contraste com a eficiência do McLaren F1, o F50 é um hot rod extravagante, que soa selvagem quando acelera forte em direção à faixa vermelha. Embora seja o Ferrari mais potente e rápido de todos os tempos, é de longe o mais fácil de dirigir. Não apenas pelo chassi imensamente rígido, mas também pelos amortecedores variáveis. No lado externo de uma curva a suspensão pode endurecer, enquanto a interna permanece macia. A direção tem a precisão de um instrumento cirúrgico e a sensação de conexão mecânica direta entre motorista e estrada. O motor transmite alto nível de ruído e vibração para a cabine: um tremor suave murmura através do chassi, os pedais tremem sob seus pés. Mas é uma parte essencial da experiência e, depois de provar, você deseja mais”.
Linhas retas e “nariz” pronunciado como na Fórmula 1 marcavam o Enzo, que não precisava de um grande aerofólio para gerar quase 800 kg de força descendente
Talvez o F50 tenha sido o único supercarro da década de 1990 a trazer lucro ao fabricante. Todas as 349 unidades fabricadas entre 1996 e 1997 — uma a menos do que a Ferrari acreditava poder vender, para manter um interessado aguardando o próximo lançamento — foram vendidas antes de sair da linha de produção. Para evitar especulações no mercado como ocorrido com o F40, o programa de compra previa dois anos de locação e um pagamento final, antes do qual o carro não poderia ser revendido.
Enzo: em nome do comendador
A sigla FX chegou a ser tida como nome do sucessor do F50, mas o batismo oficial foi bem mais carismático: Enzo, em homenagem ao comendador, era como se chamava uma das estrelas do Salão de Paris em setembro de 2002. Visualmente, ele entraria para a história como um dos carros mais controversos da marca. As linhas retas incluíam detalhes como o “nariz” destacado, visto na época na Fórmula 1, e lanternas traseiras salientes.
A carroceria de fibra de carbono com reforços de alumínio não precisava de grande aerofólio traseiro: o assoalho plano, com extrator de ar na traseira, e os dutos frontais produziam sustentação negativa o bastante para mantê-lo na pista em altíssima velocidade — 775 kg a 300 km/h. Acima dos 300, duas aletas e um sutil defletor traseiro assumiam nova posição para menor arrasto aerodinâmico, o que reduzia a força descendente para a 585 kg ao atingir 350 km/h. As portas, abertas para cima e para frente, levavam junto a soleira para facilitar o acesso.
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Nas pistas
Embora o 288 GTO tenha sido projetado com foco no Grupo B de ralis, essa finalidade nunca foi atingida. Mesmo assim, a Ferrari desenvolveu uma versão do modelo com ênfase em competições: o GTO Evoluzione. A carroceria era toda refeita em plástico e fibra de carbono, de certa forma antecipando a do F40: desenho distinto, várias tomadas de ar do tipo NACA, faróis escamoteáveis e escotilha na janela do motorista em vez do vidro descendente. A seção traseira abria-se como no F40. Com peso baixíssimo de 940 kg, o Evoluzione oferecia 530 cv na versão inicial e 650 na posterior, com turbos maiores no motor V8. Apenas seis unidades foram feitas entre 1985 e 1988. Como o programa de corridas foi abandonado, nenhuma delas pôde brilhar nas pistas.
O F40, pelo contrário, nunca teve o uso em competições como um objetivo. Mas os clientes mostravam tal interesse e seu importador oficial na França, Charles Pozzi, convenceu o fabricante a desenvolver uma versão para esse fim. A Michelotto Automobili, concessionária da marca desde 1969, foi contratada para preparar os carros. De suas oficinas saíram 19 unidades do F40 Le Mans, em 1989, para o Campeonato da IMSA (Associação Internacional do Esporte a Motor) nos Estados Unidos; sete do F40 GT, em 1993, para o Campeonato Italiano de Grã-Turismo; e sete do F40 GTE, em 1994, para a BPR Global GT Series. O LM Barchetta, aberto e com uma bolha plástica diminuta no lugar do para-brisa, foi feito em exemplar único em 1998.
As versões LM e GTE tinham aspecto peculiar pelos quatro faróis circulares, montados no lugar onde o F40 original trazia luzes de neblina e de direção — os faróis escamoteáveis eram abolidos. O aerofólio traseiro era novo e regulável e havia diversas outras tomadas de ar. As janelas laterais eram de plástico e traziam os retrovisores. O interior ganhava quadro de instrumentos digital e volante forrado de camurça.
No LM o motor V8 recebia novos resfriadores de ar, comandos de válvulas e injetores (dois por cilindro), além de turbos revistos, para obter 720 cv — com aptidão para 900 cv durante voltas de qualificação! A transmissão mantinha o esquema de marchas do F40 de rua, mas dispensava sincronização. Os freios eram bem maiores, a suspensão vinha refeita e havia novas barras de reforço estrutural junto ao motor.
A versão GT, com potência reduzida a 560 cv, foi campeã do Italiano de Grã-Turismo de 1994 nas mãos de Vittorio Colombo. Por fim, o GTE de 620 cv obteve algumas vitórias na BPR, mas problemas mecânicos impediram um título. Alguns desses carros participaram da 24 Horas de Le Mans, lendária prova francesa de longa duração. Em 1995, o melhor entre os três carros foi o de Michel Ferté, Olivier Thévenin e Carlos Palau em 12°. lugar. Em 1996, quatro unidades competiram pela equipe italiana Ennea com resultados mais modestos.
O F50 e o Enzo não correram em provas multimarca, mas a Ferrari desenvolveu versões para seus clientes desfrutarem nas pistas. A intenção com o F50 GT era participar de provas da BPR Global GT Series, mas a empresa ficou insatisfeita com a homologação pela FIA de alguns modelos, como o Porsche 911 GT1, e assim abortou o projeto.
O F50 GT foi elaborado em parceria com a Michelotto. Comparado ao F50 de série, traziapotência elevada a 750 cv a 10.500 rpm, transmissão sequencial de seis marchas, teto fixo, maiores tomadas de ar e aerofólio traseiro ajustável e destacado da carroceria, além do interior despojado. O peso era reduzido a 910 kg. Só três carros foram produzidos.
No caso do Enzo, a versão especial destinava-se a um programa de avaliação por clientes especiais. O FXX teve 20 unidades produzidas com 800 cv, novos anexos aerodinâmicos (para sustentação negativa 40% maior que a de qualquer modelo da marca já feito) e pneus sem sulcos. O sistema de telemetria monitorava 39 parâmetros do veículo em tempo real, sendo as informações transmitidas aos técnicos da Ferrari para contribuir em atualizações do carro. Os clientes puderam competir entre si em provas fechadas em circuitos internacionais — antes disso, cada um recebeu um curso especial de pilotos da marca no circuito de Fiorano.
O FXX dava lugar em 2014 ao FXX K, derivado do La Ferrari e destinado ao mesmo programa de clientes. O V12 ficava mais potente, com 860 cv ante 800 do original, e o auxílio elétrico passava de 163 para 190 cv para total de 1.050 cv (eram 963 cv no La Ferrari). O sistema Kers operava em quatro modos: Qualify, para máxima potência em pouco tempo de uso; Long Run, intermediário; Manual Boost, para aumento de torque apenas quando solicitado; e Fast Charge, para rápido carregamento da bateria. Ele tinha ainda anexos aerodinâmicos mais pronunciados; pneus com sensores de temperatura, pressão e acelerações longitudinal, lateral e radial; e comando no volante para ajustar controle de tração, ABS, diferencial eletrônico e controle de desvio de trajetória.
Uma evolução aparecia em 2017: o FXX K Evo, disponível como automóvel completo e como kit para modificar o FXX K. Trazia aumento da sustentação negativa em 23%, redução de peso, novo volante e tela central com imagens e informações de telemetria.
Abertas para frente e para cima, as portas do Enzo levavam as soleiras para mais fácil acesso
No interior do Enzo, mais uma vez, o ambiente de “trabalho” era mais relevante que o refinamento. Os bancos concha de couro, o painel e até o assoalho usavam fibra de carbono, sem a intenção de escondê-la. Controle elétrico de vidros e sistema de áudio ficavam de fora, mas a direção e os freios enfim traziam assistência. O volante tinha comandos para trocas entre as seis marchas da transmissão manual automatizada F1, a única disponível, e luzes para orientar o momento ideal das trocas.
O sistema, tão rápido quanto o do 360 Modena, chegava a efetuar mudanças em 150 milissegundos e permitia ajuste do modo de funcionamento entre Sport e Race (corrida). Não havia operação automática, pois o objetivo dessa transmissão era desempenho, não conforto. Outros comandos do volante eram para engatar a marcha à ré e para erguer a frente do carro, que em altura-padrão ficava a meros 10 cm do solo, a fim de transpor obstáculos ou rampas.
Bancos concha de couro e volante com muitas funções no Enzo, que enfim trazia direção e freios assistidos; com transmissão automatizada, havia só dois pedais
O motor do Enzo, de código F140, tinha 12 cilindros em V de 65°, 6,0 litros de cilindrada, duplo comando e variação de tempo de abertura das válvulas, que voltavam a ser quatro por cilindro. A potência de 660 cv a 7.800 rpm era a maior em um carro aspirado de produção, embora a potência específica não mais liderasse — tinha 110 cv/l, menos que os 120 cv/l do Honda S2000 inicial. O torque máximo de 67 m.kgf surgia a 5.500 rpm, mas 80% dele (53,6 m.kgf) estavam disponíveis a 3.000 rpm.
Com peso de 1.365 kg, acentuado pelas legislações mais recentes de resistência em impactos, cada cv carregava 2 kg. A Ferrari anunciava máxima de 350 km/h e 0-100 km/h em 3,65 segundos. O conceito de motor e transmissão estruturais do F50 era abandonado por sua maior transmissão de vibrações: no Enzo eles vinham presos a um subchassi de alumínio.
A suspensão seguia o conceito de braços sobrepostos, com molas e amortecedores horizontais e recursos para evitar oscilações longitudinais como o “mergulho” em frenagens. Os amortecedores tinham controle contínuo de carga e havia controle eletrônico de tração. Para quem o rejeitasse, valia a pena saber que apenas dois pilotos melhoraram seu tempo na pista de Fiorano ao desativá-lo: Dario Benuzzi, o chefe dos pilotos de teste da marca, e um tal Michael Schumacher… Para os demais, a recomendação era mantê-lo ativo.
Como no F50 o motor V12 era aspirado, mas agora com 6,0 litros, 48 válvulas e 660 cv; o assistente de largada facilitava transmitir tanta potência ao solo
Inéditos em um Ferrari eram os freios a disco de carbono-cerâmica, mais resistentes ao aquecimento e 12,5 kg mais leves no conjunto. Ao contrário dos antecessores, eram dotados de antitravamento (ABS). Um seletor de modos de condução deixava a transmissão mais rápida, o amortecimento mais firme e o controle de tração mais permissivo ao aplicar o modo Race. O Launch Control (controle de largada) acoplava a embreagem da melhor forma para uma arrancada rápida e eficaz.
O motor do Enzo tinha potência de 660 cv, a maior em um carro aspirado de produção; inéditos em um Ferrari eram os freios a disco de carbono-cerâmica
Na descrição da Evo, “altas velocidades são incrivelmente fáceis com o Enzo. É como se o carro fosse revestido de teflon, deslizando sem esforço pelo ar da noite fria. À parte o Bugatti Veyron, não conheço outro carro que ganhe velocidade tão facilmente. Você deve estar alerta, porém, pois ele se torna sensível em alta velocidade, sobretudo por causa da direção ultraprecisa”.
A Car and Driver também se empolgou: “Ao dar partida, a cadência harmônica de 12 pistões é absorvida pela sucção assobiada da admissão e pelo pulsar sonoro dos tubos de escapamentos quádruplos. É um P-51 Mustang a todo vapor, é um Stradivarius nas mãos de Heifetz [Jascha Heifetz, um dos maiores violinistas do século XX], são 9.000 cópias do Guia de Economia de Combustível da EPA sendo rasgadas ao meio simultaneamente”.
O Enzo trazia freios de carbono-cerâmica e controle de tração, tão eficaz que só dois pilotos ganharam tempo em Fiorano ao desligá-lo — um deles, Schumacher
“Em 3,3 segundos o carro atinge 96 km/h (os pilotos de F40 e F50 estarão pelo menos meio segundo atrás). O Enzo puxa 1,05 g de aceleração lateral (mais aderente que seus antepassados e qualquer outro carro de produção atual que testamos), mas a traseira pode sair abruptamente pelo acelerador eletrônico sensível e pela energia explosiva do motor. Equilibrar o Enzo é um desafio; ele reserva seu melhor comportamento para os talentosos. Na pista, é fácil levar os freios até o limiar do ABS e produzir mais força de frenagem do que a maioria das pessoas sabe o que fazer”, acrescentou a revista.
Concorrente direto do Enzo, o Porsche Carrera GT de 612 cv foi comparado a ele pela Evo em 2010: “O Porsche pode andar como um carro de corrida, mas o Enzo tem a cabine de um carro de LMP [protótipos como os que competem na 24 Horas de Le Mans]: você pode ver até a coluna de direção pelos vãos do painel. O Enzo não tem o nervosismo do CGT com pneus frios e parece pronto a ser dirigido com vigor após uma curva ou duas. O motor V12 tem maior resposta em baixa rotação, mas se equipara em altos regimes ao V10 do Porsche. Ele é gloriosamente brutal, e em modo Race você leva um empurrão nas costas a cada troca de marcha”.
O Enzo tinha a previsão de ser produzido em 399 exemplares, mas a Ferrari fez uma concessão: construir a unidade de número 400, a ser presenteada pelo presidente da fábrica, Luca Corderi di Montezemolo, ao Papa João Paulo II em janeiro de 2005. O pontífice agradeceu e preferiu que o carro fosse vendido, para destinar a renda às vítimas do tsunami que atingira a Ásia pouco antes. Assim foi feito e, embora João Paulo II tenha morrido em abril, o valor foi entregue a seu sucessor Bento XVI.
Próxima parte
O clone
O Enzo deu origem a um clone na Maserati: o MC12, que teve apenas 50 unidades de uso em rua fabricadas em 2004 e 2005. A plataforma do Ferrari recebia uma carroceria maior, mas com melhor aerodinâmica — o para-brisa era a única peça externa em comum entre eles. O motor V12 de 6,0 litros, com menos potência (630 cv) e torque (66,5 m.kgf), o levava de 0 a 100 km/h em tempo pouco maior: 3,8 segundos com máxima de 330 km/h. A pintura em branco e azul, este aplicado à seção traseira, era homenagem aos Tipos 60-61 Birdcages dos anos 60.
O objetivo da Maserati era competir no campeonato FIA GT, um retorno da marca às corridas após 37 anos. O MC12 não demorou a chegar ao pódio e venceu o campeonato de fabricantes em 2005. Foram feitos 12 exemplares para corridas. Os carros de rua tinham interior bem-acabado com certos requintes típicos da marca, como o clássico relógio oval no console central, e pesavam cerca de 1.500 kg. Um deles esteve em São Paulo, SP, em 2004 no estande da Fiat no Salão do Automóvel.
Houve ainda o MC12 Corsa, de 2006, dedicado a eventos em circuito para clientes — não foi homologado para competições nem para uso em rua. O motor vinha preparado para 756 cv e o peso era reduzido a 1.100 kg.
Com o sistema híbrido Hy-Kers o La Ferrari acrescentava 163 cv do motor elétrico aos 800 do V12, para acelerar de 0 a 100 em menos de 3 segundos
La Ferrari: a eletricidade como aliada
O quinto supercarro dessa linhagem era revelado em março de 2013 no Salão de Genebra. Chamava-se simplesmente La Ferrari, ou “a Ferrari”, como que resumindo o que a própria marca expressa em tecnologia, desempenho e carisma.
Era o primeiro modelo da marca de Maranello a adotar o sistema Hy-Kers (em inglês, sistema híbrido de recuperação de energia cinética), inspirado no Kers da Fórmula 1, que fazia o motor elétrico auxiliar a unidade a gasolina. O V12 aspirado de 6,3 litros desenvolvia a potência de 800 cv a 9.000 rpm (nada menos que 128 cv/l) e o torque de 71,4 m.kgf a 6.750 rpm e podia atingir 9.250 rpm. Somado o motor elétrico de 163 cv, eram 963 cv e 92 m.kgf. Outra unidade elétrica acionava acessórios.
O supercarro impressionava pela aceleração: de 0 a 100 km/h em menos de 3 segundos, passando pelos 200 em 7 s e chegando a 300 em 15 s para atingir mais de 350 km/h. Completava a volta no circuito de Fiorano em 1 min 20 s, ou seja, 5 s mais rápido que o Enzo e em 3 s a menos que o F12 Berlinetta. A adoção do auxílio elétrico representava 20% de ganho em aceleração e 50% de redução da emissão de gás carbônico (CO2) em modo híbrido.
Pininfarina ficava de fora do desenho do novo supercarro, que tinha portas abertas para frente e para cima; atrás, duas lanternas quebravam a tradição
A bateria de íons de lítio de 2,2 kWh, refrigerada a líquido e fixada ao chassi em posição central para contribuir com a distribuição de massas entre os eixos, recebia energia tanto nas desacelerações quanto nas acelerações, caso o V12 produzisse maior torque que o adequado para tracionar as rodas. Não foi prevista rodagem apenas com eletricidade. Todo o sistema híbrido pesava 146 kg, cerca de metade daquele usado pelo Porsche 918 Spyder — os alemães, mais uma vez, ofereciam um dos maiores concorrentes. Ainda assim, ele era 220 kg mais pesado que o Enzo.
O chassi usava quatro tipos de fibra de carbono. Na carroceria ou mesmo abaixo dela, os anexos aerodinâmicos assumiam diversas posições para produzir sustentação negativa apenas quando necessária, sem prejudicar todo o tempo a aerodinâmica. Seu desenho dispensava o estúdio Pininfarina pela primeira vez em décadas, sendo elaborado pelo centro de estilo da marca sob comando de Flavio Manzoni. Certamente mais belo que o Enzo, o La Ferrari abandonava as quatro lanternas traseiras circulares em favor de apenas duas.
Para obter um centro de gravidade 35 mm mais baixo que no antecessor, uma das medidas foi rebaixar ao extremo os bancos, colando sua almofada diretamente ao assoalho do chassi. Para evitar complicação no acesso a Ferrari cortou as soleiras e as fixou às portas, deixando um aspecto incomum com elas abertas. No interior, o banco do motorista era fixo e adequado a suas medidas, enquanto pedais e volante (achatado em cima e embaixo) podiam ser ajustados. Uma tela de 12,3 pol servia como quadro de instrumentos.
O La Ferrari usava painel digital, volante multifunção e bancos rebaixados ao máximo; no console, comandos de transmissão e do controle de largada
O La Ferrari tinha transmissão automatizada de dupla embreagem com sete marchas, suspensões (agora com conceito multibraço na traseira) com carga ajustável de amortecedores e freios Brembo com discos de carbono-cerâmica. Eles não eram usados para obter até 0,4 g (40% da aceleração da gravidade) de desaceleração, condição em que o sistema regenerativo de energia bastava. Em frenagens, os anexos aerodinâmicos assumiam nova posição para contribuir na dissipação de velocidade.
Com 963 cv combinados, o La Ferrari acelerava de 0 a 200 km/h em 7 segundos; o auxílio elétrico reduzia a emissão de gás carbônico (CO2) à metade em modo híbrido
A versão conversível Aperta (aberta) do supercarro era apresentada três anos depois, no Salão de Paris em 2016. Além do belo trabalho de estilo, a marca destacava a rigidez torcional e a aerodinâmica tão próximas da versão fechada quanto possível. A Ferrari fabricou 500 exemplares do modelo inicial, até janeiro de 2016, e 210 do Aperta até agosto de 2018.
No teste da revista Car and Driver, o La Ferrari obteve “a aceleração mais rápida até 240 km/h de qualquer carro de produção que já testamos: 1,5 segundo mais rápido que o Bugatti Veyron. Colocado contra o Porsche 918 Spyder, o La Ferrari percorre o quarto de milha nos mesmos 9,8 s. O que torna o desempenho ainda mais notável é que o La Ferrari tem tração traseira. O controle de largada é fácil de acionar e obtém corridas consistentes, mas a tração nas quatro rodas do 918 oferece uma vantagem inicial”.
Depois dos 500 carros fechados a Ferrari fez mais 210 unidades do conversível Aperta; a bateria era recarregada até ao acelerar se sobrasse torque
Na opinião da Evo, “o hardware pode ser completamente moderno, mas o coração do La Ferrari continua sendo o V12. A mágica real é a maneira como o motor elétrico faz sua contribuição sem nunca fazer sentir sua presença. Ele preenche o torque nas faixas inferior e média, com um sólido empuxo, sem barulho ou sensação de múltiplas fontes de energia. Aderência e tração são extremamente bem avaliadas e o controle de estabilidade é preciso, permitindo a você deslizar a traseira suavemente antes que ele aplique uma mão invisível. Ele parece totalmente intuitivo. O La Ferrari consegue seu desempenho heroico com uma experiência de dirigir acessível, explorável e totalmente envolvente”.
A Top Gear considerou-o melhor que o 918 Spyder e o McLaren P1: “A todo vapor, o La Ferrari acelera feroz, é estranhamente estável e freia como um empurrão nos ombros. E essa coisa uiva, um soprano V12 com um tipo de resposta de acelerador que parece bruxaria. A potência elétrica do Kers não parece antinatural. Eles tornaram os 963 cv utilizáveis, previsíveis. Ele se comporta melhor do que qualquer outro rival, tem uma destreza surpreendente, é flexível e comunicativo sem esforço”.
Trinta e cinco anos depois do surgimento do 288 GTO, esse grupo de elite dos supercarros da Ferrari continua a encantar multidões. A julgar pelo carisma que envolve a marca de Maranello, os puros-sangues vermelhos serão para sempre desejados.
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Ficha técnica
288 GTO (1984) | F40 (1988) | F50 (1996) | |
Motor | |||
Posição e cilindros | central-traseiro, longitudinal, 8 em V | central-traseiro, long., 12 em V | |
Comando e válvulas por cilindro | duplo nos cabeçotes, 4 | duplo nos cabeçotes, 4 | duplo nos cabeçotes, 5 |
Cilindrada | 2.855 cm³ | 2.936 cm³ | 4.698 cm³ |
Potência máxima | 400 cv a 7.000 rpm | 478 cv a 7.000 rpm | 520 cv a 8.500 rpm |
Torque máximo | 50,6 m.kgf a 3.800 rpm | 58,8 m.kgf a 4.500 rpm | 47,1 m.kgf a 6.500 rpm |
Alimentação | injeção multiponto sequencial, 2 turbos, 2 resfriadores de ar | injeção mult. sequencial | |
Transmissão | |||
Tipo de caixa e marchas | manual, 5 | manual, 5 | manual, 6 |
Tração | traseira | traseira | traseira |
Freios | |||
Dianteiros | a disco ventilado | a disco ventilado | a disco ventilado |
Traseiros | a disco ventilado | a disco ventilado | a disco ventilado |
Antitravamento (ABS) | não | não | sim |
Suspensão | |||
Dianteira | independente, braços sobrepostos | ||
Traseira | independente, braços sobrepostos | ||
Rodas | |||
Pneus dianteiros | 225/55 R 16 | 235/45 R 17 | 245/35 R 18 |
Pneus traseiros | 265/50 R 16 | 335/35 R 17 | 335/30 R 18 |
Dimensões | |||
Comprimento | 4,29 m | 4,43 m | 4,48 m |
Entre-eixos | 2,45 m | 2,45 m | 2,58 m |
Peso | 1.160 kg | 1.100 kg | 1.330 kg |
Desempenho | |||
Velocidade máxima | 306 km/h | 324 km/h | 325 km/h |
Aceleração de 0 a 100 km/h | 5 s (aprox.) | 3,8 s | 3,9 s |
Dados do fabricante; ND = não disponível |
Enzo (2003) | La Ferrari (2014) | |
Motor | ||
Posição e cilindros | central-traseiro, longitudinal, 12 em V | central-traseiro, longitudinal, 12 em V |
Comando e válvulas por cilindro | duplo nos cabeçotes, 4 | duplo nos cabeçotes, 4 |
Cilindrada | 5.988 cm³ | 6.262 cm³ |
Potência máxima | 660 cv a 7.800 rpm | 800 cv a 9.000 rpm |
Torque máximo | 67 m.kgf a 5.500 rpm | 71,4 m.kgf a 6.750 rpm |
Potência combinada | NA | 963 cv |
Torque combinado | NA | 91,8 m.kgf |
Alimentação | injeção mult. sequencial | injeção direta |
Transmissão | ||
Tipo de caixa e marchas | manual automatizado, 6 | automatizado de dupla embreagem, 7 |
Tração | traseira | traseira |
Freios | ||
Dianteiros | a disco de carbono-cerâmica | a disco de carbono-cerâmica |
Traseiros | a disco de carbono-cerâmica | a disco de carbono-cerâmica |
Antitravamento (ABS) | sim | sim |
Suspensão | ||
Dianteira | ind., braços sobrepostos | ind., braços sobrepostos |
Traseira | ind., braços sobrepostos | ind., multibraço |
Rodas | ||
Pneus dianteiros | 245/35 R 19 | 265/30 R 19 |
Pneus traseiros | 345/35 R 19 | 345/30 R 20 |
Dimensões | ||
Comprimento | 4,70 m | 4,70 m |
Entre-eixos | 2,65 m | 2,65 m |
Peso | 1.365 kg | 1.585 kg |
Desempenho | ||
Velocidade máxima | 350 km/h | 350 km/h |
Aceleração de 0 a 100 km/h | 3,65 s | 2,4 s |
Dados do fabricante; NA = não aplicável; ND = não disponível |