Bem sucedida com motos, a fábrica alemã fez apenas um automóvel, com peculiar simetria entre frente e traseira
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Quem assiste ao segundo filme da série Carros, da Disney/Pixar, vê entre os numerosos automóveis — alguns copiando modelos do mundo real, outros não — um curioso minicarro alemão de formas simétricas, com uma porta frontal e outra traseira. O personagem é o vilão Professor Zündapp, ou apenas Professor Z, que coloca nas telas um modelo de vida curta no mundo real: o Zündapp Janus.
A Zündapp foi fundada em 1917 em Nurembergue, na Baviera, Alemanha, com o nome Zünder und Apparatebau GmbH (detonador e aparatos ltda. em alemão) para fornecer detonadores de explosivos para a Primeira Guerra Mundial. Com a queda da demanda após o fim do conflito, o fundador Fritz Neumeyer passou a de dedicar à produção de motocicletas e lançava a primeira delas, a Z22, em 1921.
Na década de 1930 suas motos ganharam sucesso com uma linha diversificada de 200 a 800 cm³, incluindo modelos com carro lateral (sidecar). A K800, com motor de quatro cilindros horizontais opostos e transmissão por cardã, foi fornecida em quantidade para o exército alemão durante a Segunda Guerra, período no qual a empresa fez também motores para aviões. Antes disso, porém, houve sua primeira experiência com automóveis.
O Tipo 12 (à esquerda) de Porsche não chegou à produção; o Dornier Delta foi a base para o Janus
Anos antes que o Volkswagen fosse patrocinado por Adolf Hitler, Ferdinand Porsche desenvolveu para a Zündapp em 1931 o Auto für Jedermann (carro para todos), projeto de um modelo popular para dar rodas aos alemães. Embora Porsche tivesse preferido um motor de quatro cilindros opostos, como o que acabaria equipando o Volkswagen, a Zündapp optou por um radial de cinco cilindros. No ano seguinte estavam prontos três protótipos, que seriam destruídos durante a guerra, depois de a empresa se desinteressar em trazer o projeto ao mercado.
Com tal arranjo de portas e bancos, não surpreende a montagem do motor de motoneta: a posição era central
Ao fim do conflito a produção de motocicletas para uso civil foi retomada, com ênfase em modelos de pequena cilindrada e motonetas como a Bella. Países em recuperação da guerra, como a Alemanha, precisavam de automóveis que fossem quase tão baratos e econômicos quanto as motos, mas oferecessem proteção contra o inverno severo. Foi quando surgiram modelos como o Isetta (projeto da italiana Iso adotado pela BMW e fabricado no Brasil sob licença como Romi-Isetta), os triciclos da Messerschmitt e, pela Zündapp, o Janus.
O projeto não nasceu na própria empresa: especializada em duas rodas, a marca preferiu estudar desenhos externos como o do carro de três rodas da Fuldamobil, que acabou recusado por seus técnicos. Passou então a analisar o projeto do Delta, modelo com “duas frentes” do projetista de aviões Claudius Dornier, do qual adquiriu a licença. O estranho minicarro tinha uma grande porta frontal e outra traseira, abertas para cima e cada uma com dois vidros, e desenho totalmente simétrico nas laterais: à exceção dos faróis, as partes anterior e posterior eram iguais.
As portas vinham à frente e atrás e cada banco ficava voltado a uma direção; ao contrário do Isetta, o volante estava fixo à lateral (fotos: RM Auctions)
A Zündapp, contudo, preferiu usar portas que se abriam lateralmente, vidros inteiriços e para-lamas protuberantes que o deixavam um pouco mais parecido com os carros, digamos, normais. O nome Janus, o mesmo do deus romano que tinha face nos dois lados da cabeça, era justificado: sua cabine era um trapézio com lados igualmente inclinados correspondentes à frente e à traseira. Com dois bancos inteiriços de dois lugares cada, os passageiros de trás viajavam voltados para a retaguarda. Nas laterais, sem portas, eram usadas janelas de plástico Plexiglas.
Não fosse pelos faróis salientes, pelo retrovisor ou pelos arcos dos para-lamas mais altos sobre as rodas dianteiras, o motorista talvez ficasse em dúvida se deveria entrar pela porta frontal ou pela traseira. Claro que só havia volante em um dos “lados” do carro — preso à lateral e não à porta, esta uma solução patenteada pela Iso, o que exigiu arranjo diferente. O pequeno Zündapp media 2,89 metros de comprimento, 1,41 m de largura, 1,40 m de altura e 1,83 m de distância entre eixos e pesava meros 425 kg.
Com tal arranjo de portas e bancos, não surpreende a montagem do motor de um cilindro a dois tempos e 250 cm³, originário da motoneta Bella: a posição era central, algo que nem os carros esporte costumavam adotar na época. Arrefecido a ar e dotado de um carburador, o motor fornecia potência de 14 cv e torque de 2,2 m.kgf às rodas traseiras por uma corrente banhada em óleo, o bastante para velocidade máxima na faixa de 80 km/h. Tratativas foram feitas para obter a unidade de 600 cm³ da Fiat, o que não se concretizou. Em contrapartida, o pequeno motor permitiu ao carro ser licenciado como moto para importante redução da taxa de circulação, como também acontecia com Isetta e Messerschmitt, entre outros.
Os benefícios da peculiar disposição, com um dos primeiros motores centrais em carros de produção, eram bem explorados pela marca em seu material de divulgação
As vantagens de sua arquitetura eram destacadas na publicidade: “Incomum, mas extremamente prático, o arranjo de espaço e assentos deste carro é ideal. O motor central permite muito espaço, boa distribuição de peso e conforto para quatro pessoas com ampla visibilidade para os passageiros. Adeptos de acampar ficam entusiasmados, pois com apenas dois movimentos podem-se transformar os bancos em camas niveladas para dois”. De resto, pequenas manutenções como trocas de velas (ocorrência comum em motores a dois tempos) podiam ser feitas dentro do próprio carro, livre da chuva e da neve.
De fato, o espaço traseiro para pernas era muito bom e a visibilidade desses ocupantes não tinha paralelo no mercado. Sem passageiros, podia-se levar bastante bagagem na cabine com acesso como em uma perua, algo incomparável às limitações de um Isetta. Pontos negativos da solução eram a ausência de um verdadeiro porta-malas (embora pequenos volumes pudessem ser colocados em redes junto às portas), o alto nível de ruído e, com o desgaste da vedação de seu compartimento, a passagem de odores para a cabine. A alavanca da transmissão manual de quatro marchas (mais ré) ficava à esquerda do motorista, coincidindo com a articulação da porta.
Outras características técnicas peculiares do Janus eram suspensão independente nas quatro rodas (traseira com semieixos oscilantes, como no Volkswagen) com molas helicoidais, sistema elétrico de 12 volts e freios à frente e atrás com acionamento hidráulico, incluindo aletas para dissipar calor dos tambores. A estrutura era monobloco e os estreitos pneus tinham a medida 4,40-12. Teto retrátil de lona e para-sóis tanto no para-brisa quanto no vidro traseiro eram opcionais. Estepe vinha de série.
O anúncio do Janus sugeria alegria, mas no filme “Carros 2” ele é o malvado Professor Z
Iniciadas em junho de 1957, as vendas do Janus alcançaram pouco sucesso: 6.902 carros até outubro do ano seguinte, quando se encerrava o breve ciclo de produção. Além da provável estranheza a suas formas e soluções de carroceria, acredita-se que o fator preço tenha sido decisivo para a rejeição de parte do mercado: vendido a 3.290 marcos alemães, era apenas 13% mais barato que o Volkswagen, um carro mais espaçoso, convencional e capaz de viajar a 100 km/h.
Diante do fracasso — seria preciso vender 15 mil deles para amortizar o investimento —, a Zündapp voltava a se concentrar em motos com motor a dois tempos e ciclomotores, segmentos nos quais obteve sucesso. Reinstalada em Munique em 1958, nunca mais fez automóveis, de modo que o Janus foi seu primeiro e único a ganhar as ruas. Em crise nos anos 80, a empresa entrava em concordata e encerrava atividades em 1984. Linha de produção e direitos foram adquiridos pela chinesa Xunda, que aplicou a marca alemã a motos pequenas até a década seguinte.
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