Derivada de picapes, a grande perua transportou passageiros
e carga com valentia e passou por evoluções em mais de 40 anos
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Quem vê as famílias de hoje viajando em grandes utilitários esporte — papel que um dia coube a peruas derivadas de sedãs — pode pensar que se trata de fenômeno recente. Nada disso: se no Brasil já havia quem desse essa finalidade à Chevrolet Veraneio da década de 1960, os Estados Unidos foram pioneiros em desenvolver espaçosas peruas a partir de picapes, transformando veículos de trabalho em transportadores de pessoas para seu lazer.
Coube à Chevrolet com a longeva Suburban, em 1935, inaugurar esse segmento. Enquanto isso, picapes de outros fabricantes eram adaptadas como peruas, alongando a cabine — em geral com madeira, as chamadas woodies — e instalando até três filas de bancos. Isso acontecia também com os utilitários da International Harvester Company (IHC), fundada em 1902 em Chicago, no estado de Illinois, com foco em tratores e equipamentos agrícolas. No fim dos anos 40, furgões da série K haviam recebido vidros e bancos adicionais no compartimento de carga para o transporte de passageiros em aeroportos.
Perua International de 1937 (à esquerda), ainda com a parte traseira
da carroceria de madeira, e o modelo inicial da Travelall, em 1953
Em 1953 era apresentada a Travelall, a primeira perua original de fábrica da IHC, desenvolvida a partir da nova linha R de picapes. Como no carro das companhias aéreas, era um furgão com mais janelas e duas ou três filas de bancos. A carroceria toda de aço vinha montada sobre chassi de longarinas com distância entre eixos de 2,92 metros. O estilo típico da época incluía capô elevado, para-lamas salientes e estribos. Havia apenas duas portas laterais e outras duas na traseira, articuladas nas laterais, com opção por porta única aberta para cima.
“Para muitas pessoas, aqui está o sucessor
da perua”, anunciava a publicidade
da Travelall 1960, que hoje soa profética
Único disponível, o motor Silver Diamond de seis cilindros em linha e 3,9 litros, com comando de válvulas no bloco e um carburador, desenvolvia potência de 131 cv e torque de 28,8 m.kgf (valores brutos, padrão neste artigo até 1971), entregues a um câmbio manual de três marchas e dele às rodas traseiras para mover os 2.165 kg da perua. A versão S-210, voltada a uso severo, oferecia opção de tração temporária nas quatro rodas, o que chegaria à S-110 três anos mais tarde. Foi também em 1956 que a frente foi remodelada, com faróis no topo dos para-lamas em vez de ladeando a grade.
A boa aceitação à Travelall levou a IHC a desenvolver uma carroceria mais apropriada em sua segunda geração, lançada em 1958 com base na picape da série A. Ao lado de linhas mais atuais, com para-lamas integrados e os dianteiros quase à altura do capô, vinham boas novidades como janelas e para-brisa mais amplos, porta lateral traseira do lado do passageiro e duas tampas traseiras — uma aberta para cima, outra para baixo. “Para muitas pessoas, aqui está o sucessor da perua”, anunciava a publicidade, que hoje soa profética.
O modelo 1958 tinha nova carroceria; para 1961 (à direita) a perua vinha
com quatro portas laterais e vidro traseiro que se embutia na tampa
Com 5,14 m de comprimento e o mesmo entre-eixos, a nova Travelall oferecia versões A-100, A-110 e A-120, esta com opção de tração 4×4. O motor 3,9 permanecia, agora com 140 cv e 30,9 m.kgf. A série B vinha em 1959 com alterações na grade dianteira e quatro faróis, empilhados dois a dois. Pintura em dois tons e pneus com faixa branca buscavam um ar descontraído, mais distante do serviço pesado, enquanto as opções de direção e freios assistidos adicionavam conforto. O motor seis-cilindros opcional de 4,3 litros com 154 cv e 34,3 m.kgf era outra novidade, mas na linha 1960 surgia o primeiro V8 da Travelall, de 4,4 litros, com 155 cv e 31,4 m.kgf.
Em um período de rápidas renovações de estilo nos EUA — a maioria dos automóveis trazia mudanças visuais a cada ano —, a International não demorou a redesenhar a Travelall. A série C aparecia em 1961 com quatro faróis em linha horizontal, vidros laterais envolvendo as colunas traseiras e mais adornos na carroceria. Agora havia quatro portas laterais e, atrás, duas abertas para os lados ou uma só com articulação embaixo, dotada de acionamento elétrico para recolher o vidro dentro dela antes que fosse aberta. O interior levava até nove pessoas.
A perua era nova desde o chassi, com suspensão dianteira independente com barras de torção nas versões 4×2 (até então usavam-se feixes de molas semielípticas, mantidas nas 4×4 e na traseira de toda a linha) e entre-eixos mais longo, 3,03 m. Os motores permaneciam, mas a perua estava mais leve, com 2.020 kg; câmbio de quatro marchas era uma das opções.
A geração lançada em 1961 (foto maior) foi produzida por oito anos
sem grandes mudanças; embaixo, anúncios de 1960, 1964 e 1967
Avaliada pela revista Popular Mechanics, a Travelall mostrou destaques como o espaço: “Sua altura dá-lhe atributos que não se obtêm em um carro normal, como vão livre do solo de 21,8 centímetros e teto 96 cm acima dos bancos. O volume de carga atrás dos bancos dianteiros supera em 50% o de uma perua Buick Special ou Oldsmobile F-85. A capacidade é de 705 kg, incluindo passageiros. Ela tem um rodar firme, mas estável, e visibilidade muito ampla. A Travelall não é barata, mas seu caráter robusto, a tremenda capacidade e o comportamento dócil fazem-na ideal para uma grande família”.
Essa geração teve vida mais longa, recebendo mudanças parciais no período. O modelo 1963 usava dois faróis em vez de quatro, abandonava a grade côncava e seguia a nomenclatura de série 1200 — havia também a 1300 para picapes de maior capacidade de carga. No ano seguinte aparecia a opção do vigoroso V8 de 304 pol³ (5,0 litros), com 193 cv e 37,7 m.kgf, e para 1965 a grade adotava frisos verticais nas séries D-1100 e D-1200. Outra mudança de grade vinha após dois anos, quando já havia opções de câmbio automático e ar-condicionado. Um manual de cinco marchas entrava no catálogo em 1968, assim como o motor V8 de 345 pol³ (5,7 litros) com 197 cv e 42,7 m.kgf.
A quarta e última geração da Travelall estreava em 1969, seguindo as novidades da picape 1000 D, com linhas mais retas e capô largo. Apliques laterais de madeira, moda na época, lembravam os tempos de amplo uso desse material na carroceria de peruas. Comodidades internas passavam por ar-condicionado integrado ao painel, volante ajustável em altura, rádio AM/FM e controlador de velocidade. Direção e freios eram aprimorados.
Linhas mais retas e novas comodidades internas vinham na Travelall 1969;
até o ano final, 1975 (à direita), ela ganharia freios ABS e novo motor
Com versões renomeadas — 1000, 1100 e 1200 —, a perua oferecia um motor de seis cilindros em linha da American Motors de 3,8 litros (145 cv e 29,7 m.kgf), que sairia do catálogo em 1972, e os V8 da própria IHC de 5,0, 5,7 litros (os mesmos de antes) e 6,4 litros (235 cv e 48,9 m.kgf). Havia diversas opções de câmbio, tração 4×4 para as versões 1100 e 1200 e diferencial traseiro autobloqueante.
O modelo 1970 foi comparado pela Popular Science a Chevrolet Suburban e Jeep Wagoneer: “Carroceria e interior da International parecem desenhadas mais com a segurança em mente que nas outras. O painel de instrumentos é completo e moderno. Seu terceiro banco pode ser removido e reinstalado sem ferramentas. Não há nada de furgão neste veículo — foi obviamente projetado para ser uma perua. O baixo ruído fala muito por seu motor e sua qualidade; ele quase não vibra e tem tremendo torque. A Travelall obteve a maior velocidade em mudanças de faixa, mantendo-se equilibrada e respondendo com precisão aos comandos”.
A pesquisa da Popular Mechanics com proprietários indicou que comportamento, espaço, conforto e visibilidade eram seus maiores atributos, enquanto consumo e ruídos mereciam críticas; 92% deles voltariam a comprar uma. “O banco traseiro tem amplo espaço para pernas e fácil acesso. Bancos altos e amplos vidros dão ótima visibilidade. A Travelall roda como um carro, agradavelmente silenciosa, suave e gentil. A estabilidade é elogiada: a maioria dos donos concorda que ela é ágil além das expectativas para um carro de suas dimensões”, observou a revista.
Ambulância, ônibus escolar e outras aplicações, às vezes com altura ou
entre-eixos ampliado, mostravam a versatilidade de uso da Travelall
Um sistema antitravamento (ABS) opcional para os freios traseiros aparecia em 1971 para aumentar a segurança, já que esse eixo sofre maior variação de peso em utilitários entre as condições vazia e carregada. Novas grades vinham nesse ano, em 1973 (quando um V8 de 6,6 litros da AMC também era oferecido) e 1974, ano em que a IHC adotava suspensão dianteira com molas helicoidais e freios a disco na frente.
A Wagon Master, com cabine mais curta e uma caçamba na parte traseira, destinada à instalação de trailers do tipo quinta-roda, era lançada em 1973 e duraria apenas dois anos. Na linha 1975 a designação das séries da Travelall mudava para 150 e 200 e apenas motores V8 da própria marca estavam disponíveis, com 141, 158 e 187 cv (agora líquidos) conforme a cilindrada. A linha de picapes e peruas da IHC deixava o mercado nesse ano, mas o jipe Scout ficaria por mais cinco, até 1980.
A versatilidade de uso da Travelall estendeu-se a aplicações especiais como ambulâncias, ônibus escolares e transporte em aeroportos, não raro com teto elevado e entre-eixos mais longo. A empresa Springfield Equipment Company foi um fornecedor comum dessas alterações, vendidas diretamente pela IHC. Renomeada Navistar em 1986, a fábrica ainda hoje produz caminhões e motores com a marca International.
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