Desenhado por Giugiaro como carro-conceito, ele mostrou
como uma pele de lobo pode ser aplicada a um cordeiro
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
“Vestir” a plataforma conhecida de um carro acessível com uma carroceria mais atraente e esportiva, para vender o produto em um segmento superior, sempre foi uma estratégia comum na indústria. Muito antes de modelos como o Peugeot RCZ (baseado no 308) e o Opel/Chevrolet Tigra (derivado do Corsa), houve casos clássicos como o do Volkswagen Karmann-Ghia, que usava o chassi do Fusca, e o do Ford Mustang, que surgiu em 1964 com a plataforma do sedã compacto Falcon.
Assim, quando o longevo cupê 117 — produzido de 1968 a 1981 — estava no fim de seu ciclo de produção, a japonesa Isuzu foi beber novamente na bem-sucedida fonte para desenvolver seu sucessor: encomendou ao italiano Giorgetto Giugiaro, então já estabelecido no estúdio ItalDesign, um desenho moderno e dinâmico que pudesse ser aplicado à tradicional plataforma do carro T da General Motors — nosso bem conhecido Chevette, ou Opel Kadett na Alemanha, modelo então feito pela Isuzu sob licença com o nome Gemini.
A plataforma do Gemini (ou Kadett, ou Chevette), com tração traseira, serviu ao
conceito Asso di Fiori (ás de paus), mostrado pelo estúdio ItalDesign em 1979
No Salão de Genebra de 1979, Giugiaro expunha o resultado do trabalho: o carro-conceito Isuzu Asso di Fiori (ás de paus, do baralho, em italiano). O mestre do estilo havia feito um belo desenho, considerando-se as limitações do projeto: o modelo sugeria uma esportividade impensável para as linhas do Gemini original.
O painel adotava o sistema de satélites de comandos para os deixar bem à mão do motorista enquanto segurasse o volante; tais conjuntos podiam ser regulados para mais perto ou longe das mãos
A frente baixa e afilada trazia faróis escamoteáveis, então em voga em esportivos; o perfil lembrava uma flecha; para-brisa e vidro traseiro eram bastante inclinados e a área envidraçada chamava atenção. As portas avançavam pelas colunas e o teto e as maçanetas eram embutidas (como no Fiat Uno, que seria lançado quatro anos depois) para favorecer a aerodinâmica. Embora lembrasse um pouco o Volkswagen Scirocco — outro projeto de Giugiaro derivado de um carro-conceito —, o modelo da marca japonesa tinha a própria identidade.
Também comum ao Uno e ao Scirocco era o limpador de para-brisa com um único braço. Curioso é que o capô envolvente — chegava até o vinco das laterais para deixar a divisão de chapas discreta — não seria usado no Fiat italiano, mas sim em sua versão brasileira. Sob o capô estava o motor de 1,8 litro do Gemini, de 130 cv, com tração traseira.
O Piazza, seu nome no Japão, impressionou ao manter as formas do conceito; os
motores de 2,0 litros tinham 120 e 135 cv, mas a suspensão traseira estava superada
Encerrado o evento, qualquer um imaginaria que aquele conceito havia cumprido sua função e logo seria esquecido. Engano: a Isuzu seguiu adiante com o projeto e, já em setembro de 1980, apresentava a versão de produção do Asso di Fiori, com as mesmas exatas formas do carro do salão. No Japão e na Europa ele se chamava Piazza, mas nos Estados Unidos — já na época um importante mercado para a Isuzu — ganharia o nome Impulse. Já a parceira australiana Holden teria sua produção do modelo, também como Piazza.
No interior, que seguia linhas retas como a carroceria, o painel adotava o sistema de satélites de comandos para os deixar bem à mão do motorista enquanto segurasse o volante, o que incluía até os de ar-condicionado, e tais conjuntos podiam ser regulados para mais perto ou longe das mãos. Outra solução era o banco traseiro com ajuste do encosto em três posições.
Dois motores de mesma cilindrada — 2,0 litros — estavam disponíveis no Japão: um de comando de válvulas único, herdado do cupê 117, que desenvolvia potência de 120 cv e torque de 16,6 m.kgf, e outro com duplo comando, 135 cv e 17 m.kgf, nos dois casos com injeção eletrônica multiponto. Dotado de tração traseira, o Piazza podia ter câmbio manual de cinco ou automático de quatro marchas e, na versão mais potente, alcançava velocidade máxima de 180 km/h. Um ponto que denotava a antiguidade do projeto era a suspensão traseira com eixo rígido, a um tempo em que sistemas independentes já não constituíam luxo; por outro lado, freios a disco equipavam todas as rodas.
O nome foi mantido na Europa, mas na Austrália ele era um Holden e nos EUA
foi rebatizado Impulse; note no painel os comandos em satélites junto ao volante
O mercado norte-americano recebeu o Impulse em 1983 apenas com o motor de comando único que, sacrificado pelas restrições de emissões poluentes, fornecia módicos 90 cv e 14,9 m.kgf. Por lá havia uma única versão de acabamento, vendida com farto equipamento de série, enquanto os japoneses podiam comprá-lo nas opções XJ, XL, XF e XE, em ordem ascendente de preço — a última delas com rodas de alumínio e painel de instrumentos digitais.
A revista Popular Science, nos EUA, comparou-o ao Honda Prelude e ao Dodge Conquest (de origem Mitsubishi) e destacou no Impulse desempenho, estabilidade e freios, com queixas a nível de ruído, conforto de marcha e à aparente fragilidade dos comandos-satélite. “Apesar das origens populares da suspensão, o Isuzu conseguiu altas notas tanto em comportamento quanto em facilidade de manejo. Detalhes como o motor 1,9 e os freios a disco ajudam a fazer o Impulse divertido de dirigir e mais do que um cordeiro em pele de lobo”. A aceleração de 0 a 96 km/h em 14,9 segundos, porém, ficou quase 3 s atrás dos oponentes.
Um motor mais potente aparecia em 1985 para fazer jus às formas esportivas do hatchback: com comando único e turbocompressor, o 2,0-litros passava a 180 cv e 25,6 m.kgf no Japão, o suficiente para atingir 210 km/h (nos EUA estava limitado a 140 cv e 22,9 m.kgf). No mesmo ano começavam as vendas em alguns mercados europeus e, no Salão de Tóquio, era revelada uma versão conversível que nunca entraria em produção. Dois anos depois surgia na América a versão RS, sempre na cor branca, com adereços de acabamento e a suspensão mais firme entre as três oferecidas no mercado nipônico.
O motor turbo de 180 cv trouxe novo desempenho para o Piazza, embora no Impulse
tivesse só 140 cv; no alto da página, o modelo 1988, já sem os faróis escamoteáveis
Com um toque de Lotus
O modelo 1988 passava por diversas alterações, como a perda dos faróis escamoteáveis (sem mudança na altura da frente), defletor traseiro e modificações internas. Para atender aos EUA e sua sede de torque, o motor de 2,0 litros e aspiração natural dava lugar a um 2,3 de comando único, 110 cv e 17,6 m.kgf — não adotado no Japão por superar o limite de cilindrada válido para carros compactos. Na suspensão havia um acerto de calibração promovido pela Lotus inglesa, da qual a GM tinha participação na época — a sinergia era tal que o Lotus Elan lançado meses depois usava a mecânica do próprio Impulse. Um ano depois os norte-americanos recebiam a Special Edition, série limitada que associava as rodas e o interior da versão Turbo ao motor aspirado.
Embora essa primeira geração do Piazza tenha se mantido no mercado japonês até 1991, a segunda era revelada em 1989, substituindo de imediato o Impulse nos EUA. As linhas estavam mais arredondadas e a frente voltava a usar capas escamoteáveis sobre os quatro faróis, agora circulares. Havia um arranjo interessante na área de vidros, com o traseiro bastante envolvente, e a tampa do porta-malas sugeria um defletor. As maçanetas das portas ainda eram embutidas. Por dentro havia comandos próximos ao volante, mas em solução mais discreta que no anterior.
Anúncios do Impulse: “dia negro para a concorrência”, pela chegada do RS Turbo em cor
única branca, e “mais raro que um Ferrari”, sobre a edição limitada de 3.000 unidades
Do modelo antigo não havia sobrado nem mesmo a plataforma, devidamente colocada em arquivo depois de 17 anos. O novo Isuzu seguia uma arquitetura mais atual e, como já era regra em carros pequenos, com tração dianteira — mas a integral foi oferecida em parte dos mercados. O carro estava mais curto (de 4,38 para 4,17 m) e largo (de 1,65 para 1,69 m), enquanto a altura (1,31 m) se mantinha e a distância entre eixos passava de 2,44 para 2,45 m.
A suspensão traseira vinha independente, mesmo nos carros com tração à frente, e havia um mecanismo para que as rodas de trás esterçassem levemente no sentido da curva para aumentar a estabilidade desse eixo
Boa novidade era a suspensão traseira independente, mesmo nos carros com tração à frente; o acerto fora feito mais uma vez pela Lotus. Havia ainda um mecanismo da Nishiboric para que as rodas de trás esterçassem levemente no sentido da curva, quando sofressem o efeito da inclinação da carroceria, para aumentar a estabilidade desse eixo e tornar menos provável o sobresterço. Além do Impulse, o mercado norte-americano o recebia como Geo Storm, vendido por uma divisão da GM criada para produtos de parceiras japonesas (o Suzuki Vitara, ou Geo Tracker, foi outro deles).
Um só motor foi oferecido de início, o 1,6-litro de duplo comando, quatro válvulas por cilindro e 130 cv, aplicado à versão XS. Um mais potente, com turbo e 160 cv, aparecia no RS dois anos mais tarde associado à tração integral, que incluía diferenciais com acoplamento viscoso, e a pneus 205/50 R 15. Apesar do aumento de peso de 1.095 para 1.240 kg, o desempenho era empolgante. Na mesma época surgia a carroceria Wagonback, espécie de perua esportiva de duas portas, apenas com motor aspirado.
Apesar da evolução técnica, com suspensão independente e tração integral, a
segunda geração não repetiu o êxito da primeira e saiu de linha em poucos anos
O Impulse RS foi comparado pela revista Car and Driver a sete outros esportivos — Acura Integra, Eagle Talon, Ford Probe, Honda Prelude, Nissan 240 SX, Toyota Celica e Volkswagen Corrado — e ficou em último lugar. A revista elogiou a potência (ele acelerou de 0 a 96 km/h em 7 segundos, o terceiro mais rápido no grupo), a tração integral e o baixo preço, mas criticou aparência, conforto de marcha, comportamento dinâmico e o nível de ruído e de vibrações do motor: “Potente e carregado de tecnologia, mas precisa de uma escola de refinamento”.
O motor turbo saía de produção em 1992; em contrapartida, o aspirado passava a 1,8 litro e assim fornecia 140 cv e 17,2 m.kgf. No Japão, as baixas vendas e a crise na parceria com a GM levaram ao cancelamento do Piazza já nesse ano, tendo sido vendidos por lá apenas carros com motor 1,8 e tração dianteira. A América ainda o consumia em razoável quantidade e isso levou a corporação de Detroit a lançar mais uma versão, a Asüna Sunfire, restrita ao Canadá. Contudo, em 1993 a produção era encerrada no Japão. Os australianos não chegaram a receber essa segunda geração.
Mais Carros do Passado |