Estilo, técnica e desempenho foram os destaques do potente
grã-turismo lançado para competir com Miura e Daytona
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: RM Auctions e divulgação
Quem vê hoje a Maserati como parceira da Ferrari, compartilhando elementos mecânicos debaixo do enorme guarda-chuva do grupo Fiat, pode nem saber como as duas marcas italianas foram adversárias diretas nas pistas de corrida e no mercado de carros esporte por décadas. A mais antiga das duas — foi fundada em 1926 pelos irmãos Alfieri, Ettore, Bindo e Ernesto Maserati — produziu seu primeiro carro de rua apenas 20 anos mais tarde e, em 1958, abandonou a participação oficial em competições após alguns graves acidentes.
Dali em diante, as empresas passaram a competir frente a frente — e, anos mais tarde, ao lado da compatriota Lamborghini — como fabricantes de alguns dos carros mais rápidos e prestigiados do mundo. Entre eles estava o Maserati Ghibli, apresentado no Salão de Turim de 1966 no estande da Ghia, o estúdio encarregado de desenhar suas linhas imponentes e de construir suas carrocerias. O autor do belo estilo? Um jovem de 26 anos, então quase desconhecido, chamado Giorgetto Giugiaro.
Um dos primeiros desenhos de Giugiaro, o Ghibli era imponente e destacava o
motor dianteiro com sua cabine recuada; no interior, algum requinte e conforto
Batizado com o nome de um vento quente do deserto do Saara — tema já explorado pelo Mistral e seria mais tarde pelo Bora —, o Ghibli entrava em produção em março do ano seguinte. Era um cupê de 2+2 lugares, longo (4,57 metros com distância entre eixos de 2,55 m), baixo e intimidador, com faróis duplos escamoteáveis, uma saliência central no capô dianteiro e a cabine próxima ao eixo traseiro. O emblema frontal do tridente associava-se ao da Ghia nas laterais. Havia dois tanques de combustíveis na parte posterior com capacidade total de 100 litros.
Não lhe faltavam predicados de desempenho: máxima de 265 km/h e 0-100 km/h em 6,6 segundos, que melhoravam para 280 km/h e 6,2 s no SS — o carro mais veloz de seu tempo
Embora concorresse com os mais nervosos Ferrari 365 GTB/4 Daytona e Lamborghini Miura, era um carro esporte luxuoso e confortável para longos percursos. Vinha de série com ar-condicionado e um painel completo; o volante tinha três raios metálicos e aro de madeira, com assistência de direção opcional. Foi oferecido também como conversível, o Spyder, de 1968 em diante. Entre os proprietários famosos do modelo estiveram Henry Ford II (que comprou o primeiro deles a desembarcar nos Estados Unidos), o cantor norte-americano Sammy Davis Junior, o ator e cantor inglês Peter Sellers e o ator francês Jean-Paul Belmondo.
Com 0-100 em 6,6 segundos, esse Maserati estava entre os carros mais rápidos de
seu tempo; o conversível Spyder vinha lhe acrescentar charme e descontração
A exemplo do Daytona e do Miura, o Ghibli sobressaía pela técnica e o desempenho. Seu motor era um V8 de 4.719 cm³ de cilindrada com bloco de alumínio, duplo comando de válvulas nos cabeçotes, quatro carburadores Weber e lubrificação com cárter seco, que fornecia a potência de 310 cv a 6.000 rpm e o torque máximo de 47 m.kgf a 3.500 rpm. A origem nas pistas não podia ser negada: era uma derivação do motor usado pelo 450S, um dos últimos Maseratis de corrida. Os modelos Mexico e Quattroporte também o empregavam, mas com lubrificação convencional, de cárter úmido.
Estava disponível com câmbio manual de cinco marchas ZF ou automático Borg-Warner de três (lançado em 1970), com tração traseira e diferencial autobloqueante, e seus freios usavam discos Girling à frente e atrás. O chassi tubular de aço do tipo escada também vinha do Mexico, mas encurtado e reforçado, com a mesma suspensão posterior de eixo rígido desse modelo e do Quattroporte de segunda geração. A dianteira, independente, usava braços sobrepostos e molas helicoidais; os pneus radiais tinham a medida 205 R 15 em rodas de magnésio.
Não lhe faltavam predicados de desempenho: velocidade máxima de 265 km/h e aceleração de 0 a 100 km/h em 6,6 segundos, na primeira versão, números que melhoravam para 280 km/h e 6,2 s na SS — o carro mais veloz de seu tempo, de acordo com a Maserati. Nessa evolução, lançada em 1970, o motor crescia para 4.930 cm³ (mediante maior curso de pistões) e ganhava 25 cv, chegando a 335 cv a 5.500 rpm com torque de 49 m.kgf a 4.000 rpm. Era uma boa notícia para o mercado norte-americano, no qual as medidas de controle de emissões poluentes deixavam o Ghibli — como qualquer automóvel — menos potente que na Europa. O interior estava ainda mais conveniente, com itens como controle elétrico de vidros, volante regulável e revestimento dos bancos em couro.
Na versão SS o motor passava de 4,7 para 4,9 litros e ganhava 25 cv, bem-vindos
no mercado norte-americano, onde o controle de poluentes prejudicava a potência
Em um guia sobre carros exóticos do passado, publicado em 1985, a revista norte-americana Road & Track descreveu como era dirigir o Ghibli: “O V8 tem uma marcha-lenta imponente, com muito borbulhar das duas grandes saídas de escapamento. Mas, como no Ferrari Daytona, uma vez que as rotações comecem a subir, tudo parece se suavizar e se obtêm os sons e as sensações característicos de um motor com legado das corridas”.
Uma desvantagem em relação ao Daytona estava no uso de um tradicional eixo rígido traseiro com feixes de molas semielípticas, em vez da mais eficiente suspensão independente do rival. “Em pisos suaves, o Ghibli roda bem, mas acerte algumas ondulações ou trafegue em alta velocidade sobre rodovias onduladas e o carro mostra um rodar duro, que não perdoa. ‘Nada civilizado e desnecessário em um carro de alto preço’, escrevemos em um teste de 1971”, contava a revista, ressalvando que em termos de aceleração lateral sobre piso liso o Maserati superava o Ferrari por pequena margem.
O Ghibli em materiais de divulgação da marca (embaixo o SS); a imprensa elogiava
as sensações do motor V8, mas criticava a suspensão dura para um grã-turismo
Um Ghibli do primeiro ano-modelo foi dirigido em 2002 por outra revista dos EUA, a Car and Driver, que relatou: “Ele roda de modo bastante firme em suas molas. A embreagem requer tendões de titânio, mas os demais controles, incluindo a direção sem assistência, são leves. Sensibilidade dos freios era um ponto fraco do Ghibli: o servo Lucas Girling comporta-se como um interruptor ligado/desligado. Mas é um carro de potência surpreendente na pista. Comparado aos novos Maseratis, mostra sua idade em comportamento, praticidade, refinamento e qualidade de construção. Mas em beleza ele ainda reina”.
Em 1971 a Maserati era adquirida pela Citroën, que em dois anos tirou o Ghibli do mercado após 1.274 unidades produzidas, das quais 125 eram Spyders. Seu nome ressurgia em 1992 em um dos muitos modelos com motor biturbo que a empresa produziu entre os anos 80 e 90. Em 2014 a Maserati volta a denominar como o vento do deserto um sedã quatro-portas de menores dimensões que as do atual Quattroporte, com plataforma derivada da Chrysler.