Sou proprietário de um Renault Fluence 2.0 automático 2014. Como me assustei com o consumo, instalei um kit GNV G5 (por injeção) e estou gostando. Gostaria de saber se o motor do Fluence GT Turbo de 180 cv teria algum impeditivo para a instalação do kit GNV. Best Cars é a melhor referência em automóveis da internet no Brasil.
Rodrigo Magalhães – Niterói, RJ
Realmente o preço atual dos combustíveis no Brasil está pesando no bolso do consumidor, enquanto no mundo inteiro os preços da gasolina e do diesel vêm caindo devido à queda no preço do petróleo. Questões políticas e econômicas à parte, vamos a sua dúvida.
A resposta seria sim, há impedimento, e o motivo é simples. O gás natural veicular (GNV), mesmo usando injetores em vez do mesclador (vulgo “boca de fogão”, que era colocado na entrada do corpo de borboleta para que houvesse entrada de ar e gás juntos nos conjuntos mais antigos), é injetado no estado gasoso. Ou seja, não há evaporação de gás ao entrar em contato com as partes quentes do motor ou dentro da câmara de combustão, como ocorre com os combustíveis líquidos.
Aliás, o principal motivo para o álcool permitir maior taxa de compressão e ser melhor para motores preparados (quando se instala um turbocompressor em motor aspirado) é o fato de requerer maior energia para mudar do estado líquido para o gasoso. Essa energia será “roubada” dentro do cilindro e, como resultado, esfria-se a câmara de combustão, reduzindo sua temperatura média de trabalho. O calor de vaporização do álcool é de 904 kJ/kg, ante 380 a 500 kJ/kg da gasolina (seja comum ou premium, de alta octanagem) e 250 kJ/kg do óleo diesel.
Como citado no artigo sobre a tecnologia dos motores, há a necessidade de enriquecer a mistura (excesso de combustível) para manter em valores aceitáveis as temperaturas da câmara e dos gases de escapamento, como forma de proteger pistões, válvulas de escapamento e catalisador. Em motores turbo, as temperaturas de trabalho em cargas altas (torque alto) são muito mais elevadas, a ponto de precisarem de pistões forjados, mais resistentes que os convencionais.
Embora se trate de um pistão mais resistente ao calor e à pressão, chega-se a um ponto em que se precisa enriquecer a mistura para manter a temperatura controlada por meio da evaporação do combustível dentro da câmara. Quanto mais combustível (em motor do ciclo Otto), mais energia roubada e menor a temperatura dentro do cilindro. Portanto, ao injetar combustível em estado gasoso, perde-se essa importante ajuda.
Mas há vários veículos mundo afora que rodam com GLP (gás liquefeito de petróleo, nosso gás de cozinha) mantido em forma líquida no tanque. Esses veículos, quando usam sistema de alimentação por injetores, acabam atingindo números expressivos de consumo e potência por poderem usar maior taxa de compressão e avanço de ignição mais próximo do MBT (saiba mais no mesmo artigo), pois o gás em forma líquida, devido à alta pressão, “congela” tudo pela frente ao se expandir e passar ao estado gasoso. Exemplo é o Ford Falcon australiano, que tem versão a gasolina e GLP com motor de seis cilindros e 4,0 litros: com o GLP ele consegue aceleração de 0 a 100 km/h em 6,8 segundos, bem menos que os 7,5 s obtidos com gasolina.
Uma estratégia que pode ser usada no veículo com motor turbo é permitir a injeção de gás quando não há pressão positiva na admissão, mudando automaticamente para gasolina caso seja detectada a necessidade de manter as temperaturas sob controle, como em pressões positivas na admissão. Há no exterior modelos bicombustível de fábrica que, mesmo sem turbo, usam essa estratégia. Mas nesse caso o veículo é desenvolvido — em especial a parte de calibração do motor — para operar dessa forma sem comprometer a durabilidade do motor.
Cabe lembrar que mesmo veículos aspirados podem ter problemas com o uso do GNV. O sistema atual de quinta geração trabalha de forma parecida com o sistema de injeção eletrônica. Contudo, se não for bem calibrado, podem ocorrer falhas (“engasgos”) ou mesmo a quebra do motor. Há conjuntos nos quais a central de GNV lê o sinal que a central original envia aos injetores de gasolina e, a partir dele, calcula o tempo adequado de abertura dos injetores de gás. Isso torna a vida dos instaladores mais fácil, uma vez que eles não fazem a calibração do motor.
Além disso, a central do kit lê o sinal do sensor de oxigênio e pode se ajustar para lambda 1. Caso siga o sinal dos injetores de gasolina, porém, não haverá a proteção do enriquecimento mesmo ao enriquecer a mistura de gás (caso prevista na central original). Mais preocupante é a questão dos mapas de avanço, que são criados para rodar com o combustível líquido: este, de acordo com a situação, pode precisar de mais ou menos avanço. Em teoria, o GNV tem a propagação de chama mais rápida, por estar em estado gasoso e em ambiente mais quente (já que não resfria a câmara), o que requer menor avanço de ignição.
Por outro lado, o gás traz menor risco de detonação, o que permite trabalhar mais próximo do melhor avanço (ponto mais adiantado). Vamos supor que a central original, que supõe o uso do combustível líquido, perceba a possibilidade de aumentar o avanço de ignição, pois não há detonação, como se estivesse usando gasolina de alta octanagem. Ela pode então superar o ponto de avanço ideal para o GNV e trabalhar muito adiantada, com o pico de pressão enquanto o pistão ainda está subindo na fase de compressão, antes da fase de combustão/expansão. Isso traz risco de estresse excessivo ao pistão e seu superaquecimento, dilatando demais e começando a raspar na camisa do cilindro — já imaginou o estrago?
É fato que o mundo real está cheio de carros com GNV, rodando muito sem maiores problemas. Não se está na situação ideal ou naquela para a qual o motor foi projetado, mas sempre há uma tolerância em tudo. Afinal, motores são desenvolvidos para suportar regimes muito severos em máximos potência e torque durante longo tempo sem falhar. No uso normal eles duram muito e há margem de segurança, que acaba sendo usada por adaptações como a de GNV.
Desse ponto de vista, restam-nos duas recomendações: usar o combustível original por alguns quilômetros todos os dias, para manter as sedes de válvulas lubrificadas (o gás é “seco” e não cumpre esse papel), e passar ao líquido quando for exigir mais do motor, como subir uma serra com o pé embaixo ou trafegar em velocidades realmente altas.
Texto: Felipe Hoffmann – Foto: divulgação