Não é a primeira vez em que se tentam burlar medições de poluentes: entenda esse teste e como as fábricas buscam a aprovação
Texto: Felipe Hoffmann – Ilustrações do autor e divulgação
O Best Cars inaugura com este artigo a colaboração de Felipe Hoffmann, engenheiro mecânico automobilístico, com mestrado na mesma área e experiência em engenharias de fabricantes em desenvolvimento de motores, desempenho e controle de consumo e emissões poluentes. Felipe passa a nos emprestar seus conhecimentos em artigos técnicos sobre diferentes áreas dos automóveis.
O escândalo acerca dos motores a diesel da Volkswagen nos Estados Unidos levou o Best Cars à necessidade de explicar ao leitor um tema raramente esclarecido na imprensa: como são realizados os testes de consumo de combustível e emissões poluentes. É um assunto que costuma ficar restrito aos bastidores da indústria automobilística, mas cujos efeitos se estendem aos compradores de automóveis e, como no caso em questão, até mesmo a quem não anda de carro.
Os testes são realizados de maneira a seguir um padrão, para minimizar variáveis que possam influenciar os resultados. Como exemplo, emprega-se uma temperatura determinada e segue-se um ciclo (aceleração, velocidade e frenagens em função do tempo) padronizado. Em geral cada país tem sua legislação, mas há alguns padrões mundiais seguidos por vários outros, como o europeu e o norte-americano.
Antes de ser testado, o veículo é mantido em garagem climatizada com temperatura controlada, sendo comum entre 20 e 23°C (em geral as normas preveem de 20 a 30°C), por pelo menos 12 horas, para que carro, motor e transmissão estejam na mesma temperatura ambiente no início do teste. O procedimento é conhecido como soak em inglês, traduzível como “pôr de molho”.
Um teste de dinamômetro: carro parado e rodas de tração girando sobre rolos que opõem resistência calculada
O teste é efetuado em dinamômetro de chassi (vulgarmente chamado de dinamômetro de rolo), mecanismo sobre o qual o veículo fica parado com as rodas motrizes, ou de tração, apoiadas em um enorme rolo. O ambiente deve estar na mesma temperatura da garagem em que o carro ficou “de molho”. O dinamômetro de chassi então aplica resistência às rodas motrizes para simular o tráfego no mundo real — em ruas e rodovias —, no qual influem resistências aerodinâmica e dos pneus ao rolamento, perdas e forças de atrito de rolamentos de roda e arrasto dos freios, entre outros.
Comparado ao padrão de consumo dos EUA, o europeu causa controvérsia devido à baixa correlação com o uso do veículo no mundo real
Para que o dinamômetro aplique as forças de aceleração corretas, deve ser informada a classe de inércia do veículo, ou seja, sua categoria de peso. Não se usa o peso exato do carro, mas uma faixa: um veículo de 1.190 kg e outro de 1.305 kg, por exemplo, serão testados na mesma classe de inércia de 1.250 kg. Essa classificação busca evitar que variações de peso na produção, bem como o acréscimo de itens opcionais, adicionem variáveis ao teste.
Os diferentes ciclos-padrão
Uma vez definidas a classe de inércia e as resistências, deve-se determinar em qual ciclo-padrão o veículo será testado. O ciclo é determinado pelo órgão que controla os testes de homologação de cada país. Na Europa usa-se o NEDC (New European Driving Cycle, novo ciclo de direção europeu), dividido em fase 1 (ciclo urbano) e fase 2 (ciclo rodoviário). Como se testa um em seguida ao outro, o motor do veículo já está aquecido durante o ciclo rodoviário.
No Japão é empregado o ciclo JC08, com o veículo partindo tanto com o motor frio quanto aquecido — diferença responsável por melhores números de consumo em comparação aos do padrão europeu. Já no Brasil, o órgão regulador responsável é a Cetesb (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental), por meio do programa Proconve (Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores). O Proconve usa os ciclos norte-americanos US FTP-75 (FTP significa Federal Test Procedure ou procedimento federal de teste), para testes de consumo e emissões em uso urbano, e HWFET (Highway Fuel Economy Test ou teste de economia de combustível em rodovia), para consumo rodoviário. O carro começa o teste urbano com motor frio, sendo o rodoviário feito em seguida, portanto com motor aquecido.
Comparado ao padrão dos Estados Unidos, o método NEDC causa muitas dúvidas e controvérsias por seus resultados, devido à baixa correlação com o uso do veículo no mundo real. Os ciclos norte-americanos, que o Brasil adota, têm origem de dados reais gravados durante viagens na cidade de Los Angeles, Califórnia, e por isso refletem com maior fidelidade a utilização prática.
O NEDC, europeu: fases urbana e rodoviária (a que começa em 800 segundos), com motor aquecido na segunda
O ciclo JC08 japonês começa tanto com o motor frio quanto aquecido, o que favorece os números de consumo
O Brasil usa os ciclos norte-americanos, com 10 minutos de motor desligado antes da fase final do ciclo urbano
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Fato interessante é que o NEDC determina as velocidades de troca de marchas (tabela abaixo) para veículos com câmbio manual, o que impede que se aproveite um motor com maior torque em baixa rotação para trocar marchas mais cedo ou mesmo que o motorista adote o método carga de condução. No caso de caixa automática as velocidades de trocas não são determinadas pelas normas, mas o câmbio deve ser mantido na posição D (drive), sendo proibido efetuar trocas manuais caso disponíveis.
Troca de marcha | Velocidade (km/h) |
1ª. para 2ª. | 15 |
2ª. para 3ª. | 35 |
3ª. para 4ª. | 50 |
4ª. para 5ª. | 70 |
5ª. para 6ª. | 100 |
Essa regra influencia o projeto dos carros, pois leva os veículos para o mercado europeu a adotarem um escalonamento favorável ao menor consumo no ciclo, mas nem sempre apropriado ao uso no mundo real. Os carros europeus em geral têm primeira, segunda e terceira marchas longas (alguns modelos de 1,6 litro por lá alcançam 120 km/h em segunda), mas da quarta em diante elas são relativamente curtas. A razão é que durante o ciclo urbano, na faixa de 40 a 50 km/h, por exemplo, deve-se manter a terceira marcha — e o consumo será maior se ela não for longa o suficiente. O mesmo ocorre na segunda marcha ao redor de 30 km/h.
Por outro lado, usam-se apenas quarta, quinta e (se houver) sexta marchas no trecho rodoviário. Caso o veículo não consiga manter entre 50 e 70 km/h em quarta marcha ou acompanhar a aceleração imposta, o motorista terá de reduzir (o mesmo vale para a quinta entre 70 e 100 km/h): o resultado é o emprego de quarta e quinta marcha curtas, pois o trecho de alta velocidade do ciclo é curto e uma quinta mais curta tem pouca influência no resultado final de consumo e emissões. Apesar de muitos pensarem que o motorista europeu gosta desse tipo de escalonamento, na verdade ocorre a mesma situação que com os carros de 1,0 litro no Brasil: são empurrados goela abaixo do consumidor.
O catalisador só começa a funcionar por volta de 300°C: por isso, metade dos poluentes emitidos durante os testes é gerada no primeiro minuto
Como se medem as emissões
Já sabemos como os carros devem ser dirigidos nos diferentes ciclos, mas como são medidas as emissões?
Durante o teste o escapamento do veículo é conectado a um sistema de coleta de gases, no qual diversos equipamentos medem a quantidade exata de cada poluente controlado pelas normas de emissões. São eles CO (monóxido de carbono), MP (material particulado), NMHC (hidrocarbonetos não metano) e NOx (óxidos de nitrogênio), considerados prejudiciais à saúde por diversos estudos, que apontam:
• CO: reage com a hemoglobina do sangue, reduzindo a capacidade de transportar oxigênio; causa sonolência e dores de cabeça. Com 0,3% de concentração no ar causa a morte em 30 minutos.
Necessário para atender aos limites, o catalisador tem uma colmeia cerâmica banhada com metais nobres
• Material particulado: elementos sólidos compostos, sobretudo, por partículas de carbono muito pequenas que se aderem aos pulmões, aumentando o risco de câncer. É do que consiste a fumaça preta nos motores Diesel, por exemplo, mas também presente em pequenas quantidades nos motores Otto (a gasolina, álcool, gás natural).
• HC: hidrocarbonetos não queimados, sendo alguns causadores de câncer. Quando expostos à luz solar, reagem com o NOx e formam ozônio (O3). Vale lembrar que o ozônio é importante e útil em grandes altitudes para filtrar os raios UV do sol, mas estudos mostram que ele ataca os glóbulos brancos do sangue, reduzindo a capacidade do sistema imunológico.
• NOx: composto em cerca de 90% por NO (óxido nítrico), que é convertido em NO2 (dióxido de nitrogênio) na atmosfera: é um gás venenoso, com odor e cor marrom avermelhada, que causa irritação das mucosas e vias respiratórias.
Já o CO2 (gás carbônico), o qual representa queima completa e eficiente, embora não seja um gás poluente, é considerado por muitos como o responsável pelo aquecimento global. Além desses poluentes há compostos de enxofre, que não são controlados na saída do escapamento e que, ao reagir com moléculas de água na atmosfera, produzem acido sulfúrico — causador de grande irritação de mucosas e pele e formador da famosa chuva ácida. O controle do enxofre é feito pela redução desse elemento nos combustíveis, como aconteceu nos últimos anos no Brasil com o diesel e depois a gasolina.
No conversor entram CO, NOx e HC e saem água, nitrogênio e gás carbônico, inofensivos à saúde
Cada país e cada órgão regulador têm limites determinados para cada poluente coletado durante o teste, sendo esses limites uma média de todo o ciclo, indicada em gramas por quilômetro (g/km). Fato interessante é que o consumo de combustível é calculado pela quantidade de HC, CO e CO2 liberados durante o teste, o que permite grande precisão no resultado sem que haja qualquer alteração no veículo (como os ciclos têm entre 10 e 15 km, seria difícil e impreciso controlar o consumo pelo volume de líquido consumido do tanque).
Como atender aos limites
Entre as soluções empregadas pelos fabricantes para seguir os limites de emissões, a primeira é a aplicação de conversor catalítico (catalisador) para pós-tratamento dos gases de escapamento. Componente essencial para reduzir as quantidades de poluentes, o catalisador trabalha de forma diferente nos motores de ciclo Otto e ciclo Diesel.
Nos motores Otto o catalisador consiste em uma colmeia cerâmica banhada com os metais nobres paládio (responsável pela conversão de HC em H2O e CO2) e ródio (que converte NOx em N e O2). São metais muito caros, o que tem forçado ao desenvolvimento de motores mais eficientes: a adoção e os avanços dos sistemas de injeção eletrônica decorreram dessa necessidade de queima melhor e mais controlada. E por quê? O principal motivo é que o catalisador só funciona de maneira eficiente com a queima de combustível perto de lambda 1, a chamada relação estequiométrica (no caso da gasolina pura, sem álcool, essa relação é em torno de 14,2 a 14,8 partes de ar para uma de combustível), como mostrado no gráfico a seguir.
Conforme a proporção entre ar e combustível, as emissões do motor Otto podem crescer ou diminuir
Contudo, o catalisador só começa a funcionar por volta de 300°C: por isso há necessidade de reduzir o tempo até que o motor atinja a temperatura de trabalho e que os gases de escapamento aqueçam o catalisador o mais rápido possível — em torno de 50% dos poluentes emitidos durante os testes são gerados no primeiro minuto de funcionamento. Um dos meios para aquecer o catalisador mais rápido é deslocá-lo debaixo do carro para perto do motor, logo após o coletor de escapamento. Alguns motores modernos usam também coletores de escapamento de aço estampado em vez de ferro fundido, para diminuir a espessura das paredes, o volume e a massa do coletor, o que acelera seu aquecimento e, em consequência, o do catalisador.
Há também motores nos quais o coletor de escapamento fica dentro do cabeçote para que seu calor, antes rejeitado para o ar fora do motor, seja transmitido ao líquido de arrefecimento, o que também abrevia o tempo de aquecimento do motor. Por outro lado, essa solução sobrecarrega o sistema de arrefecimento com grande quantidade de calor, sobretudo quando o motor opera perto da potência máxima, exigindo que o radiador dê conta de rejeitar o calor adicional.
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Calor que não é pouco: em condições de grande exigência de potência os gases de escapamento chegam a 900°C — acima disso começa a degradação do catalisador, eliminando sua capacidade de converter os poluentes. Se não houver controle, o quadro pode ultrapassar 1.200°C! Uma das estratégias para proteger o catalisador é enriquecer a mistura ar-combustível (com excesso de combustível, chegando a Lambda perto de 0,8) para “esfriar” os gases de escapamento em um motor Otto. No Diesel a proteção mais comum é limitar a injeção de combustível e, em consequência, a potência produzida.
Existem também estratégias de calibração para obter menores emissões. Sabe-se que quanto mais rápido o catalisador chegar a 300°C, mais cedo os níveis de poluentes diminuem: assim, para aquecer logo o catalisador, é comum se reduzir a eficiência do motor (ou seja, gastando mais combustível) durante a fase de aquecimento, como manter a marcha-lenta mais alta ou reduzir o avanço de ignição, para que a queima do combustível termine no escapamento.
Esquema de EGR da Toyota: gases de escapamento voltam à admissão para reduzir a temperatura de queima
Diesel: recirculação e fluido
Nos motores Diesel o catalisador é diferente: usa paládio, platina e óxido de alumínio para converter CO e HC. Contudo, como esses motores trabalham sempre com excesso de ar, a conversão do NOx é praticamente nula. Entre os principais meios de reduzir esse poluente está o sistema de recirculação dos gases de escapamento (exhaust gas recirculation) ou EGR.
Com a eficiência do filtro de NOx chegando ao limite, tem sido necessário em alguns casos um recurso conhecido como DEF, Adblue ou Arla 32
Em resumo, o EGR injeta gases de escapamento (resfriados, é claro) na admissão, onde eles atuam como um gás inerte à queima, ocupando volume e reduzindo a temperatura de queima (o NOx é gerado a altas temperaturas de queima dentro dos cilindros). Mas há um limite de eficiência para esse efeito sem comprometer o funcionamento do motor: se aumentar a recirculação pode diminuir o NOx, aumenta as emissões de HC, CO e até mesmo de material particulado. Ou seja, deve-se chegar ao equilíbrio ideal para cada situação.
Por outro, há uma enorme brecha nas legislações que usam apenas ciclos-padrão para os testes de emissões — caso dos veículos leves de passageiros, uma vez que caminhões e ônibus atendem a outras normas. O fabricante faz a calibração do EGR nas faixas de rotação e de carga (abertura de acelerador) a que o motor é submetido durante o ciclo-padrão, nas quais se sabe quais limites de poluentes se devem atingir. Fora dessas condições, porém, fica difícil determinar o quanto usar de EGR e outras estratégias, uma vez que não se têm limites. Nesse caso a calibração pode priorizar o menor consumo ou o melhor desempenho, à escolha do fabricante.
Ilustração da Renault aponta a aplicação dos filtros de NOx (mais próximo do motor) e de partículas
Por essa limitação do EGR, tornou-se necessário em alguns mercados o emprego de sistemas para reduzir as emissões de NOx. O primeiro foi o filtro de NOx (NOx trap em inglês) incorporado ao sistema de escapamento, uma especie de colmeia com materiais especiais para reter até certo limite o NOx. Atingido esse limite, o filtro requer uma “limpeza” feita pela queima controlada dentro do filtro. Para isso, injeções de diesel com ponto atrasado e borboleta fechada (isso mesmo, borboleta em motor Diesel) fazem com que o combustível quase não queimado reaja com o NOx, gerando água e nitrogênio. Em alguns casos há também um injetor de combustível no escapamento para essa função.
No entanto, com a eficiência do filtro de NOx chegando ao limite, tem sido necessário em alguns casos um novo recurso, conhecido como DEF (Diesel exhaust fluid, fluido de escapamento para motor Diesel), Adblue (nome usual na Europa e na Austrália) ou Arla 32 (agente redutor liquido de óxidos de nitrogênio automotivo com 32,5% de ureia): injeta-se uma solução de ureia no escapamento para que reaja com o NOx. Há um tanque desse fluido no veículo e, como ainda é difícil encontrá-lo em alguns postos, os fabricantes em geral dimensionam seus tanques para uma autonomia próxima ao intervalo de revisões. Alguns países exigem estratégias como redução de torque, impedimento de nova partida ou mesmo parada do motor caso o reservatório esteja vazio. E não adianta colocar água ou outro líquido: um sensor confere se a solução é a correta.
Esquema da Scania mostra o funcionamento do Arla 32, agente redutor de NOx para motores Diesel
Para reduzir as emissões de material particulado, recorreu-se à evolução da qualidade da queima por meio de bicos injetores de maior pressão e sistemas eletrônicos de controle, mas ainda há certa emissão com o motor frio, em acelerações com os cilindros em baixa temperatura ou mesmo quando a relação ar-diesel se aproxima da estequiométrica, o que dificulta a queima completa do combustível. Por muito tempo a eletrônica conseguiu controlar — mediante tempo e quantidade corretos de injeção — os particulados, mas as novas normas determinam quantidades cada vez menores de partículas de tamanhos cada vez mais reduzidos. Como resultado, adotou-se um filtro de particulados no escapamento, similar em princípio ao filtro de NOx: funciona como uma peneira, retendo o carbono dos gases emitidos.
Como toda barreira física, o filtro tende a entupir — o que acontece logo, em algumas dezenas de quilômetros rodados. Assim, a exemplo do filtro de NOx, injeta-se óleo diesel no escapamento para queimar o carbono acumulado, limpando o sistema. Mesmo assim, há carros que retornam à concessionária bem novos com a luz no painel acusando filtro entupido. O problema está no uso do veículo, pois a temperatura do filtro precisa ser alta o suficiente para o processo de limpeza. Tal temperatura em geral é atingida, em condições normais, só em velocidades altas e em uso mais longo do carro. Nesses casos a concessionária conduz um procedimento que limpa o filtro conectando o carro a um computador.
O funcionamento do filtro de partículas do diesel: há limites cada vez mais severos para esse tipo de emissão
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As brechas das normas
Os métodos de medição de emissões abrem possibilidades para algumas estratégias dos fabricantes. Um exemplo é a ocorrência comum nos modelos brasileiros de 1,0 litro de não conseguir acompanhar as acelerações impostas durante o ciclo usado por aqui, que provavelmente foi gravado com um carro norte-americano bem mais potente. Nesse caso a norma “perdoa” os fracos, permitindo-lhes maior tempo para acelerar, mas surge um problema: ao abrir 100% do acelerador, a central eletrônica identifica como exigência de desempenho (uma retomada de emergência, por exemplo) e injeta mais combustível para que a mistura fique rica (lambda menor que 1), o que traz mais torque, mas aumenta as emissões. Por isso, é comum haver estratégias que mantenham lambda 1 em certas faixas de rotação quando se pisa fundo no pedal, o que preserva os poluentes dentro do limite.
Um dispositivo que favorece a economia no mundo real, mas tem especial utilidade nos testes, é o alternador que recarrega a bateria apenas durante desacelerações e freadas. Outro recurso útil em ambas as situações é o sistema de parada e partida automática do motor. Sua maior vantagem verifica-se em ciclos com paradas mais longas, como o NEDC. Pode haver influência de questões culturais do consumidor e de preços dos combustíveis, mas o dispositivo tem sido bem mais comum na Europa que nos Estados Unidos. Há casos, como o Porsche Panamera, em que o mercado europeu recebe o carro com o sistema habilitado como padrão, enquanto os norte-americanos precisam acioná-lo após cada partida para que atue.
Diversas empresas foram pegas tentando burlar os testes de aferição de produção, que conferem se o carro fabricado mantém os números do homologado
Sobre o dispositivo, cabe observar muitos fatores são considerados para que a central eletrônica decida desligar ou não o motor durante uma parada, como temperatura do motor e do catalisador, carga e condição da bateria, consumo elétrico (faróis, sistema de áudio, aquecimento de bancos e outros) e a demanda ao ar-condicionado.
Mas existem também brechas nas legislações que permitem melhorar os resultados do veículo testado sem benefícios ao consumidor.
Como dito acima, o dinamômetro deve aplicar a resistência ou carga que o veículo encontraria no mundo real. A maneira mais simples de descobrir a força total de resistência que o veículo sofre (arrasto aerodinâmico e resistência ao rolamento dos pneus) é o teste de movimento por inércia (coastdown em inglês). É feito em pista bem longa e com o mínimo possível de vento, levando o veículo até certa velocidade como 130 km/h, colocando em ponto-morto e medindo o tempo que leva para parar. Como se sabe o peso exato do carro, basta calcular as forças que o desaceleram em função da velocidade. Nos gráficos a seguir, a força e a potência necessária para cada velocidade.
Até aí parece tudo muito simples, sem margem para manobras — mas ela existe. Como exemplo, em um dia ensolarado a pista pode estar mais quente que em outro dia de mesma temperatura, mas nublado. Pista mais quente aquece mais os pneus, o que eleva sua pressão interna e reduz a resistência ao rolamento. Além disso, há um peso-padrão para o teste que deve ser adicionado ao veículo para simular motorista e passageiro — cada órgão ou país exige o seu, em geral perto de 150 kg. Mas não se define onde adicionar esse peso: então, por que não colocá-lo no porta-malas, para que a traseira do carro fique mais baixa e com isso melhore o coeficiente aerodinâmico?
Já no teste em si, no dinamômetro, há outros macetes permitidos nas brechas de algumas normas. Ao carregar a bateria do veículo antes do teste, não há consumo de combustível para essa função durante a medição, algo que não se consegue no uso cotidiano — o que abre uma diferença entre os resultados da homologação e do mundo real. O efeito é ainda maior no caso de veículos híbridos com opção de carregar as baterias em tomada elétrica (plug-in), pois começam o ciclo com baterias carregadas e só usando o motor elétrico. Como o ciclo é relativamente curto, o resultado é um consumo brilhante, mas quem usar o carro para trabalhar a 30 km de casa não terá o mesmo índice, ainda que dirija da mesma forma do ciclo.
A própria maneira com que o motorista dirige no teste influencia muito os resultados. Apesar de haver padrões de velocidade, há como “suavizar” as acelerações e dirigir dentro da tolerância para reduzir consumo e emissões. A manobra é mais efetiva no ciclo NEDC, que impõe mudanças de velocidades e reduções bastante agudas, além de velocidade constantes. Como exemplo, usando a tolerância de 2 km/h para mais ou para menos, o motorista pode continuar a acelerar durante certo tempo a mais, para que o veículo chegue perto da tolerância máxima (2 km/h acima), e depois desacelerar aos poucos, durante a fase de velocidade constante, para economizar combustível.
Agora o leitor entendeu por que alguns fabricantes, como Audi, Porsche e Volkswagen, têm usado um sistema de roda-livre nos câmbios automatizados, que desacopla a embreagem em condição de desaceleração para o carro rodar solto. Embora um teste no mundo real pelo Best Cars com o Golf 1,4 turbo tenha mostrado efeito desprezível, o dispositivo permite ficar mais tempo sem acelerar durante o ciclo-padrão, o que melhora o consumo no teste. Já no ciclo norte-americano, usado também no Brasil, fica difícil essa manobra pois as velocidades, acelerações e reduções não seguem um padrão que facilite seu uso.
Usando a tolerância, o motorista pode continuar a acelerar e depois desacelerar aos poucos
O caso da Volkswagen
A questão dos motores Diesel da Volkswagen é complexa, de modo que seria prematuro apontar que expedientes o fabricante teria adotado para a aprovação dos carros nos testes de emissões, mas é possível abordar o tema à luz do que já foi divulgado, tanto pela própria empresa quanto pelos órgãos reguladores e a imprensa.
É fato que os fabricantes podem adotar estratégias para melhorar os números do teste, desde que tais estratégias sejam mantidas no uso comum do carro, como ocorre com a roda-livre e a parada/partida automática citadas acima. Contudo, por diversas vezes empresas foram pegas tentando burlar os testes de aferição de produção. A maioria dos países exige que se teste um percentual dos veículos produzidos, para conferir se o carro de fabricação normal mantém os números do que foi homologado.
Quando determinado carro é escolhido pelo órgão regulador, com o registro do número de chassi, em geral se tem até dois dias para enviá-lo para teste. O que alguns já fizeram foi trocar o motor e o catalisador do carro selecionado por outros, separados especialmente para essa função. Para evitar isso, os órgãos adotaram medidas que dificultam a manobra. A Índia passou a selecionar em concessionárias veículos prontos para venda, que então testa no laboratório do governo — o fabricante só acompanha o teste. Já na China, até o catalisador pode ser removido e ter o nível de metais nobres testado para confirmar se o veículo em teste, selecionado na linha, teria um item melhorado em relação ao de produção normal.
A manobra que envolve modelos VW como o Golf não é nova: a Fiat fez algo semelhante com o Mille
Contudo, há fábricas que vão além e empregam calibrações específicas para o teste, ativadas apenas quando o veículo “percebe” que está sendo analisado. Isso não é recente: nos anos 90, um carro que nem mesmo tinha injeção eletrônica — o Fiat Uno Mille Electronic — reconhecia o teste pela velocidade em função do tempo de condução: se fosse igual ao do ciclo-padrão, o sistema de ignição mudava a calibração para o modo de teste de emissões e consumo, que não se repetiria no mundo real. Comenta-se na indústria que um fabricante na China criou outro método: bastava abrir o capô para ativar o modo de teste (analisa-se o veículo com o capô aberto no dinamômetro), razão pela qual aquele país hoje requer capô fechado durante os testes.
No caso recente dos veículos Diesel da Volkswagen, uma organização norte-americana decidiu medir as emissões de poluentes no mundo real, por meio de equipamentos de leitura dos gases no porta-malas, e constatou que nessas condições os níveis de NOx ultrapassavam em até 30 vezes o limite. Ao testar o veículo em dinamômetro, o NOx ficava dentro dos padrões legais. É comum que no mundo real se tenham consumo e emissões acima dos limites legais, mas não nesse patamar. Depois de muita investigação descobriu-se que havia uma calibração específica para os testes, ativada quando o veículo detectava a variação de velocidade com direção sempre reta e sem qualquer mudança de posição.
Do ponto de vista técnico, estranha-se que a estratégia fosse de aumentar NOx fora dos testes, pois o uso de EGR em certas condições pode favorecer o consumo. Eliminar a recirculação traria maior NOx e, em algumas situações de condução, aumento de consumo. Uma hipótese para o objetivo da VW seria melhorar o desempenho no mundo real, sobretudo em retomadas — intuito frequente em fabricantes que tentam burlar a lei —, aumentando o torque pela eliminação do uso de EGR em certas rotações comuns nesse uso. Outras possibilidades seriam reduzir o processo de limpeza do filtro de NOx, para menor consumo de diesel, e reduzir o uso de ureia no uso real (quando aplicável), para aumentar o intervalo de enchimento do tanque. O mais provável, porém, é que as verdadeiras motivações ficarão apenas entre os envolvidos no processo.
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