As brechas das normas
Os métodos de medição de emissões abrem possibilidades para algumas estratégias dos fabricantes. Um exemplo é a ocorrência comum nos modelos brasileiros de 1,0 litro de não conseguir acompanhar as acelerações impostas durante o ciclo usado por aqui, que provavelmente foi gravado com um carro norte-americano bem mais potente. Nesse caso a norma “perdoa” os fracos, permitindo-lhes maior tempo para acelerar, mas surge um problema: ao abrir 100% do acelerador, a central eletrônica identifica como exigência de desempenho (uma retomada de emergência, por exemplo) e injeta mais combustível para que a mistura fique rica (lambda menor que 1), o que traz mais torque, mas aumenta as emissões. Por isso, é comum haver estratégias que mantenham lambda 1 em certas faixas de rotação quando se pisa fundo no pedal, o que preserva os poluentes dentro do limite.
Um dispositivo que favorece a economia no mundo real, mas tem especial utilidade nos testes, é o alternador que recarrega a bateria apenas durante desacelerações e freadas. Outro recurso útil em ambas as situações é o sistema de parada e partida automática do motor. Sua maior vantagem verifica-se em ciclos com paradas mais longas, como o NEDC. Pode haver influência de questões culturais do consumidor e de preços dos combustíveis, mas o dispositivo tem sido bem mais comum na Europa que nos Estados Unidos. Há casos, como o Porsche Panamera, em que o mercado europeu recebe o carro com o sistema habilitado como padrão, enquanto os norte-americanos precisam acioná-lo após cada partida para que atue.
Diversas empresas foram pegas tentando burlar os testes de aferição de produção, que conferem se o carro fabricado mantém os números do homologado
Sobre o dispositivo, cabe observar muitos fatores são considerados para que a central eletrônica decida desligar ou não o motor durante uma parada, como temperatura do motor e do catalisador, carga e condição da bateria, consumo elétrico (faróis, sistema de áudio, aquecimento de bancos e outros) e a demanda ao ar-condicionado.
Mas existem também brechas nas legislações que permitem melhorar os resultados do veículo testado sem benefícios ao consumidor.
Como dito acima, o dinamômetro deve aplicar a resistência ou carga que o veículo encontraria no mundo real. A maneira mais simples de descobrir a força total de resistência que o veículo sofre (arrasto aerodinâmico e resistência ao rolamento dos pneus) é o teste de movimento por inércia (coastdown em inglês). É feito em pista bem longa e com o mínimo possível de vento, levando o veículo até certa velocidade como 130 km/h, colocando em ponto-morto e medindo o tempo que leva para parar. Como se sabe o peso exato do carro, basta calcular as forças que o desaceleram em função da velocidade. Nos gráficos a seguir, a força e a potência necessária para cada velocidade.
Até aí parece tudo muito simples, sem margem para manobras — mas ela existe. Como exemplo, em um dia ensolarado a pista pode estar mais quente que em outro dia de mesma temperatura, mas nublado. Pista mais quente aquece mais os pneus, o que eleva sua pressão interna e reduz a resistência ao rolamento. Além disso, há um peso-padrão para o teste que deve ser adicionado ao veículo para simular motorista e passageiro — cada órgão ou país exige o seu, em geral perto de 150 kg. Mas não se define onde adicionar esse peso: então, por que não colocá-lo no porta-malas, para que a traseira do carro fique mais baixa e com isso melhore o coeficiente aerodinâmico?
Já no teste em si, no dinamômetro, há outros macetes permitidos nas brechas de algumas normas. Ao carregar a bateria do veículo antes do teste, não há consumo de combustível para essa função durante a medição, algo que não se consegue no uso cotidiano — o que abre uma diferença entre os resultados da homologação e do mundo real. O efeito é ainda maior no caso de veículos híbridos com opção de carregar as baterias em tomada elétrica (plug-in), pois começam o ciclo com baterias carregadas e só usando o motor elétrico. Como o ciclo é relativamente curto, o resultado é um consumo brilhante, mas quem usar o carro para trabalhar a 30 km de casa não terá o mesmo índice, ainda que dirija da mesma forma do ciclo.
A própria maneira com que o motorista dirige no teste influencia muito os resultados. Apesar de haver padrões de velocidade, há como “suavizar” as acelerações e dirigir dentro da tolerância para reduzir consumo e emissões. A manobra é mais efetiva no ciclo NEDC, que impõe mudanças de velocidades e reduções bastante agudas, além de velocidade constantes. Como exemplo, usando a tolerância de 2 km/h para mais ou para menos, o motorista pode continuar a acelerar durante certo tempo a mais, para que o veículo chegue perto da tolerância máxima (2 km/h acima), e depois desacelerar aos poucos, durante a fase de velocidade constante, para economizar combustível.
Agora o leitor entendeu por que alguns fabricantes, como Audi, Porsche e Volkswagen, têm usado um sistema de roda-livre nos câmbios automatizados, que desacopla a embreagem em condição de desaceleração para o carro rodar solto. Embora um teste no mundo real pelo Best Cars com o Golf 1,4 turbo tenha mostrado efeito desprezível, o dispositivo permite ficar mais tempo sem acelerar durante o ciclo-padrão, o que melhora o consumo no teste. Já no ciclo norte-americano, usado também no Brasil, fica difícil essa manobra pois as velocidades, acelerações e reduções não seguem um padrão que facilite seu uso.
Usando a tolerância, o motorista pode continuar a acelerar e depois desacelerar aos poucos
O caso da Volkswagen
A questão dos motores Diesel da Volkswagen é complexa, de modo que seria prematuro apontar que expedientes o fabricante teria adotado para a aprovação dos carros nos testes de emissões, mas é possível abordar o tema à luz do que já foi divulgado, tanto pela própria empresa quanto pelos órgãos reguladores e a imprensa.
É fato que os fabricantes podem adotar estratégias para melhorar os números do teste, desde que tais estratégias sejam mantidas no uso comum do carro, como ocorre com a roda-livre e a parada/partida automática citadas acima. Contudo, por diversas vezes empresas foram pegas tentando burlar os testes de aferição de produção. A maioria dos países exige que se teste um percentual dos veículos produzidos, para conferir se o carro de fabricação normal mantém os números do que foi homologado.
Quando determinado carro é escolhido pelo órgão regulador, com o registro do número de chassi, em geral se tem até dois dias para enviá-lo para teste. O que alguns já fizeram foi trocar o motor e o catalisador do carro selecionado por outros, separados especialmente para essa função. Para evitar isso, os órgãos adotaram medidas que dificultam a manobra. A Índia passou a selecionar em concessionárias veículos prontos para venda, que então testa no laboratório do governo — o fabricante só acompanha o teste. Já na China, até o catalisador pode ser removido e ter o nível de metais nobres testado para confirmar se o veículo em teste, selecionado na linha, teria um item melhorado em relação ao de produção normal.
A manobra que envolve modelos VW como o Golf não é nova: a Fiat fez algo semelhante com o Mille
Contudo, há fábricas que vão além e empregam calibrações específicas para o teste, ativadas apenas quando o veículo “percebe” que está sendo analisado. Isso não é recente: nos anos 90, um carro que nem mesmo tinha injeção eletrônica — o Fiat Uno Mille Electronic — reconhecia o teste pela velocidade em função do tempo de condução: se fosse igual ao do ciclo-padrão, o sistema de ignição mudava a calibração para o modo de teste de emissões e consumo, que não se repetiria no mundo real. Comenta-se na indústria que um fabricante na China criou outro método: bastava abrir o capô para ativar o modo de teste (analisa-se o veículo com o capô aberto no dinamômetro), razão pela qual aquele país hoje requer capô fechado durante os testes.
No caso recente dos veículos Diesel da Volkswagen, uma organização norte-americana decidiu medir as emissões de poluentes no mundo real, por meio de equipamentos de leitura dos gases no porta-malas, e constatou que nessas condições os níveis de NOx ultrapassavam em até 30 vezes o limite. Ao testar o veículo em dinamômetro, o NOx ficava dentro dos padrões legais. É comum que no mundo real se tenham consumo e emissões acima dos limites legais, mas não nesse patamar. Depois de muita investigação descobriu-se que havia uma calibração específica para os testes, ativada quando o veículo detectava a variação de velocidade com direção sempre reta e sem qualquer mudança de posição.
Do ponto de vista técnico, estranha-se que a estratégia fosse de aumentar NOx fora dos testes, pois o uso de EGR em certas condições pode favorecer o consumo. Eliminar a recirculação traria maior NOx e, em algumas situações de condução, aumento de consumo. Uma hipótese para o objetivo da VW seria melhorar o desempenho no mundo real, sobretudo em retomadas — intuito frequente em fabricantes que tentam burlar a lei —, aumentando o torque pela eliminação do uso de EGR em certas rotações comuns nesse uso. Outras possibilidades seriam reduzir o processo de limpeza do filtro de NOx, para menor consumo de diesel, e reduzir o uso de ureia no uso real (quando aplicável), para aumentar o intervalo de enchimento do tanque. O mais provável, porém, é que as verdadeiras motivações ficarão apenas entre os envolvidos no processo.
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