Apesar das virtudes do Brasil como mercado, a culpa da falta de investimento externo continua a cair no “ambiente de negócios”
Anos atrás, uma aluna me procurou para mostrar um plano de negócios para trazer uma nova marca italiana de cosméticos, seu tema de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Quando ela disse que a empresa queria US$ 3 milhões, perguntei: “Pagar ou cobrar?”. A garota disse: “Cobrar, claro!”. Respondi que temos o segundo mercado de cosméticos do mundo, equivalente ao PIB do Uruguai e da Bolívia juntos, e que, se eles querem participar desse paraíso, têm que pôr dinheiro. Foi uma comoção entre os alunos. Uma garota que trabalhava na então maior fábrica de cosméticos do País contou que a França cobrara um investimento mínimo de US$ 15 milhões para entrar no mercado.
O brasileiro não dá valor ao mercado que tem e atrair investimento é como estar em uma feira de vantagens, não um vislumbre de oportunidades. A França tem 60 milhões de habitantes e, apesar da renda elevada, o orçamento pessoal com beleza não é individualmente maior. Eles podem pagar mais por cada item, mas continuam tendo dois olhos, uma boca e vinte unhas. Pelo clima e faixa etária, o brasileiro tende a se preocupar mais com a aparência. Em vez de vender nosso mercado, fazemos concessões para tentar atrair investimentos. A indústria de automóveis é um ótimo exemplo dessa distorção.
Temos aço, borracha, as maiores reservas de alumínio do mundo, e grande parte da cadeia de suprimentos pode ser instalada de um dia para o outro
Em condições econômicas normais, com crescimento anual de 3%, considerando a idade da frota, teríamos condições de ter uma indústria para quatro milhões de veículos ao ano. Sendo otimista, até mais, visto que nosso transporte é rodoviário e nosso território é o dobro do da Europa Ocidental. Nossa produção e exportação de aço é muito significativa e com muita pesquisa em novos compostos. Somos o segundo maior produtor de borracha do mundo e nossas petroquímicas são capazes de produzir virtualmente qualquer resina. Temos as maiores reservas de alumínio da Terra, com capacidade para reduzir todo o minério que produzimos. Grande parte da cadeia de suprimentos pode ser instalada de um dia para o outro. Não obstante, continuamos a pôr a culpa da falta de investimento externo no tal “ambiente de negócios”. Afinal, o que é isso?
Ponhamos o ambiente de negócios sob três dimensões: mercado, internalidades e externalidades. Quando nos referimos ao mercado, tratamos de seu tamanho atual e de seu tamanho potencial, visto que as empresas — mesmo que ponham prazo em seu plano de negócios — visam a perpetuidade, ou seja, um valor que vai além dos usuais cinco anos que pautam as decisões de investimento. O mercado potencial depende intimamente do crescimento econômico e da capacidade futura de o indivíduo consumir.
Em outras palavras, o mercado potencial é o múltiplo do mercado atual pela taxa de crescimento e pela tendência de transferência de renda para o consumidor, seja pela distribuição, seja pela antecipação de receita, que é a capacidade de endividamento saudável da população. Sendo o automóvel um bem de consumo durável, o segundo aspecto torna-se tão importante quanto o primeiro.
Mercado potencial
As internalidades, ou economias internas, remetem aos custos inerentes ao processo de produção que incluem o nível de automação, a produtividade da mão de obra, o valor das matérias-primas e a adequação dos projetos às condições de produção. Isso garante produtos competitivos em qualidade e preço. Daí ser tão importante formar arranjos produtivos (production clusters em inglês) em se tratando de automóveis. As externalidades são carga tributária, burocracia, disponibilidade de crédito de longo prazo e infraestrutura, que vai da malha rodoviária ou ferroviária aos portos e aeroportos. Além disso, há o fornecimento contínuo de energia e, principalmente, a facilidade de comunicação.
O ambiente brasileiro de negócios, pelo chororô dos empresários, é ruim somente por conta da burocracia, dos impostos e de alguns aspectos da infraestrutura. Isso representa, quando muito, 20% de nossos problemas. Os outros 80% residem nas duas outras dimensões, que são interdependentes. O mercado potencial depende de a renda do trabalhador crescer mais do que a razão de crescimento do PIB, o que é reflexo da distribuição de renda.
Se a automação subir mais rápido que a educação, a massa de desempregados por falta de qualificação sobe e o mercado potencial diminui
Espera-se que o crescimento da massa de salario seja fruto do aumento da produtividade da mão de obra. Isso se dá de duas formas, pela educação e pela automação. Só que, para operar robôs e outras máquinas de alta tecnologia, é preciso educar e, quanto mais se educa, mais os salários tendem a crescer e mais o nível da automação sobe para substituir mão de obra, a fim de manter os custos em níveis competitivos, num eterno cabo de guerra. Ocorre que esse cabo de guerra pode se dar em diferentes níveis de renda. Num país pobre como o Paraguai, por exemplo, esse cabo de guerra dá-se em níveis salariais ao redor de US$ 100 ao mês, enquanto na Europa o mesmo cabo de guerra ocorre aos US$ 1.500 de salário ao mês.
E como passar de um nível a outro? Investindo em educação na exata proporção em que se investe em automação. Se o investimento em educação for maior, a lucratividade das empresas cai e o nível de desemprego sobe, baixando salários, o que diminui o mercado potencial e espanta investidores. Se a automação subir mais rápido que a educação, a massa de desempregados por falta de qualificação sobe e o mercado potencial diminui, assustando investidores.
Resumindo, ao forçar salários para baixo, o Estado faz justamente o mercado potencial diminuir, ao contrário do que era de se esperar para motivar a investir. Não é que a crise vá durar para sempre, nem que o mercado não vá retomar a face anterior a ela. O que se espera com as medidas tomadas é que o cabo de guerra se dê num patamar mais baixo do que o potencial do País pelo número de habitantes, pela extensão do território e pela abundância de recursos naturais.
Se entendermos que “o Brasil entrou nos trilhos”, o problema é que a bitola pode ser muito estreita e a velocidade do trem não será alta o bastante para o investidor embarcar nele — em especial, no vagão da indústria de automóveis.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars