No século do excesso de imagens e informação, manuais de
papel ainda resistem, carentes de verdadeira evolução
Quem viveu na segunda metade do século passado acreditou que nos anos 2000 conviveríamos com carros voadores, tamanha a evolução da tecnologia. Não chegamos a isso — ainda. Também não nos livramos (ao menos por inteiro) dos motores a combustão, mas aos poucos estamos chegando lá.
Quase nada é igual aos carros de 1950. A injeção matou o carburador; a ignição eletrônica aniquilou o platinado; os pneus ficaram radiais e perderam as câmaras de ar; os instrumentos de bordo ficaram digitais; o rádio que era de ondas curtas hoje tem GPS, lê MP3 e mensagens de celular; os chassis foram substituídos por estruturas monobloco com zonas de absorção; o aço e o ferro deram lugar a metais mais leves e a compostos plásticos em múltiplas aplicações; os freios não travam mais as rodas; a eletrônica auxilia a fazer curvas, descer ladeiras, sair em subidas, trocar marchas e muito mais; e bolsas infláveis nos protegem por todos os lados em uma colisão.
Enfim, tudo evoluiu, menos ele — o manual do proprietário. Ele continua ali, com suas letras miúdas, suas centenas de páginas e sua linguagem técnica que nada esclarece, esquecido num frio e empoeirado porta-luvas.
Precisei ajustar o relógio do meu carro e resolvi recorrer ao manual, pois o botão se recusava a aceitar o comando quando pressionado. Eram nada menos que 12 páginas explicando como acessar o computador de bordo e, finalmente, ajustar a hora. Decidi que, no próximo horário de verão, vou deixar o relógio atrasado mesmo e aguardar quatro meses. Enfurecido com o que vi em meu porta-luvas, fui consultar outras literaturas; manuais de carros novos e antigos, de diversas marcas.
O manual é feito com o objetivo de não ser lido: só tem valor em carro antigo, seja como relíquia, seja como auxílio para tarefas que os mecânicos de hoje não sabem mais fazer
Comecei folheando um manual de uma Volkswagen Santana Quantum 1988. Por curiosidade, peguei outro VW, uma SpaceFox 2010, para comparar. São carros da mesma marca, mas com saltos de evolução entre um e outro que os separam em mais de duas décadas. Já os manuais são praticamente iguais, com as mesmas seções, a mesma fraseologia, senão pelo fato de que o livro do SpaceFox é ainda mais grosso.
Isso é uma involução, em minha opinião. Se observassem como os meios de comunicação evoluíram, as fábricas teriam se esforçado para evoluir sua literatura de bordo. Minha expectativa como profissional da comunicação era encontrar um nítido avanço entre o manual da Quantum e o da SpaceFox. Vi apenas a repetição de um modelo que não dá certo. Um mal que atinge todas as marcas, sem exceção.
Constatei que o manual do proprietário é um material feito com o claro objetivo de não ser lido. Só tem valor em carro antigo, seja como objeto de relíquia (“vende-se Opala 1985 com manual e chave reserva”), seja como auxílio para tarefas que os mecânicos de hoje não sabem mais fazer (onde encontrar a abertura das velas de ignição daquele Corcel 1973?). Em carro novo ninguém liga — exceção feita a criaturas como nós, fissurados em carros, que destroçamos página por página até os livretos com endereços do serviço autorizado.
Recados essenciais
Com termos técnicos, excesso de texto, letras miúdas e ilustrações pouco práticas àqueles que não entendem de carro ou simplesmente não se interessam pelo assunto, os manuais servem mais para afugentar leitores e renovar o mito de que os pormenores do automóvel são para mecânico, não para gente “comum”. Nos dias de hoje, com a tecnologia automotiva bastante padronizada, o ato de dirigir é bastante similar, mesmo alternando entre carros de diferentes fabricantes. As luzes de direção estão sempre ali, a alavanca de câmbio também — bem, quase sempre. Não vai muito além de ajustar banco e retrovisores.
É preciso encontrar formas de comunicação que atinjam essas pessoas, que transmitam os recados estritamente essenciais aos que querem apenas ligar seus carros e ir de um lugar ao outro, sem galho, sem preocupação com a temperatura mais adequada do motor ou o uso mais correto do ar-condicionado.
Li manuais de carros novos, como o recém-lançado Citroën C3, e ainda me deparei com frases longas, com jargões de engenharia e outras coisas que poderiam ser suprimidas. Claro que o texto não é latim; pode ser perfeitamente interpretado. Contudo, ainda acho que está nivelado por cima — e muitas e muitas pessoas comuns, menos habituadas com o hábito da leitura, custariam a entender. Dá para fazer melhor. Dá, inclusive, para romper o paradigma do livreto e pensar em novas formas de comunicar o que tem que ser comunicado, na hora certa em que o usuário precisa da informação.
Quando a Ford lançou o Focus por aqui, em 2000, um CD era fornecido com as principais informações sobre o carro, que podiam ser ouvidas ao volante em vez de lidas na garagem ou no sofá. Por algum motivo, o item não durou muito e hoje resta apenas o livreto. Nestes tempos de grandes telas de cristal líquido nos painéis, a BMW usa em vários modelos um manual digital, integrado ao sistema IDrive, que pode ser consultado com giros e cliques no comando do console e, tal como um site da internet, tem atalhos para informações complementares.
Que tal um selo no cofre do motor com a informação do volume correto de óleo lubrificante? Por que temos de recorrer ao manual ou, pior, ao palpite do frentista?
Sem me afastar do papel, da própria Citroën tiro um bom exemplo. Há uns dois anos fui a um revendedor conhecer o antigo C3. Queria provar todos os carros do segmento e uma artimanha da equipe de marketing surpreendeu. Havia adesivos com letras bem legíveis afixados dentro do veículo, que ressaltavam os diferenciais e ainda os comparavam com a concorrência. No vidro da porta traseira havia uma tabela grudada, dizendo que o C3 tinha controle elétrico dos vidros de série, enquanto Punto, Fox e Fiesta, não. No volante, um papel dizia: “Direção elétrica: Punto, Fox e Fiesta, não”. Simples e eficaz. Nem precisei perguntar ao vendedor, que me deixou em paz.
Aproveitando a lição, aplicar pequenos adesivos — como aquele onde se lê a pressão dos pneus — já pouparia o trabalho de buscar informações no manual. Que tal um selo no cofre do motor com a informação do volume correto de óleo lubrificante a ser colocado? Por que temos de recorrer ao manual ou, pior, ao palpite do frentista ao fazer a troca? São coisas simples, que podem ser mais bem exploradas, guardando o bom senso.
Fica o apelo para que os engenheiros e projetistas, que tanto investem tempo em aprimorar a usabilidade dos carros, se lembrem de que ensinar a usar corretamente um automóvel deve ser encarado como um desafio tão importante quanto apenas usá-lo. Quem sabe, lá no futuro, depois de termos sepultado carburadores, platinados e pneus com câmara, possamos sepultar também o “índice remissivo”.
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