O mundo pede formas renováveis de energia nos automóveis, mas alguns defendem que terra é para a alimentação
Sempre que se fala em energia renovável, a conversa converge para combustíveis oriundos da agricultura como biodiesel e álcool. Aí o debate passa para uma questão: se o uso da terra não se deveria destinar à alimentação. Quem está certo?
O mundo clama por meios renováveis de energia. Os economistas dividem a ciência entre economia dos recursos renováveis e não renováveis. De fato, renovável tudo é — resta saber quanto tempo essa renovação leva. Se for numa escala humana, até 30 anos, considera-se renovável; daí para a frente é não renovável porque fica fora do horizonte de uma geração. Depois de alguns milhares de anos, os metais voltam a ser minérios e os compostos orgânicos decompõem-se totalmente, só que nós e nossos descendentes não estaremos aqui para ver isso.
O petróleo, o carvão mineral, o gás natural, são todos resultados de reações químicas redutoras, pois se retirou oxigênio, todo ou em parte, ao longo de milhares de anos — daí serem combustíveis fósseis. Então tiramos isso da terra, beneficiamos e enchemos o tanque, devolvendo para a atmosfera em segundos o carbono que a Natureza levou milênios para tirar. Mesmo Donald Trump não concordando, o volume é tão grande que não há como negar que o ambiente seja afetado. Será que há fontes realmente renováveis de energia?
Enchemos o tanque e devolvemos à atmosfera em segundos o carbono que a Natureza levou milênios para tirar: não há como negar que o ambiente seja afetado
Quando se fala em biodiesel, os números são muito precisos e os resultados ainda mais discutíveis. Tomemos uma produtividade de 3.000 kg por hectare (ha) de soja com 18% de graxos. Para separar o óleo usa-se o arrasto, ou seja, faz-se a soja moída passar por um solvente que é destilado separando o óleo. A perda é de 10%, o que resulta em 486 litros/ha. Esse óleo não se pode consumir diretamente no motor, porque é viscoso demais e seus resíduos entopem tudo. A solução é transesterificar, ou seja, transformar em ésteres por craqueamento.
Para isso, adiciona-se álcool como catalisador na proporção de 10% e eleva-se a temperatura a 400°c para retirar a glicerina na proporção de 20%. Sobram 389 l/ha de biodiesel. Considerando que a lavoura consome 123 l/ha, o saldo é de apenas 265 l/ha. Seriam necessários 192 milhões de hectares para suprir os 50 bilhões de litros consumidos anualmente pelo Brasil, o que representaria 96% de nossa área agricultável.
A mamona é pior ainda porque produz somente 2.100 kg/ha. O dendê dá 5.800 kg/ha e o consumo de diesel na lavoura é mínimo, por se tratar de plantação perene. Mas a planta só é produtiva em latitudes menores que 13° e tende ao congelamento. Além disso, o preço obtido como alimento é muito compensador, seja como o alaranjado que usamos aqui ou como o branco que é exportado. Há ainda o palmiste retirado da amêndoa que chega a US$ 20 o litro. Mesmo com preço compensador, os agricultores não querem arriscar porque leva três anos para dar, enquanto a soja é anual, permitindo abandonar a lavoura se o preço não for satisfatório.
Álcool de milho custa 10 vezes mais
A Alemanha, campeã no uso de biodiesel, usa a cousa, que é uma Brassica oleracea, ou seja, parente muito próxima da couve, do brócolis e do repolho, mas melhorada geneticamente para produzir grande quantidade de sementes. Ainda por melhoramento genético, retirou-se a venenosa cousamina e obteve-se o comestível óleo de canola. A produtividade não passa de 1.800 kg/ha, o que exige pesados subsídios para torná-lo viável como combustível. O álcool (etanol) é sempre proveniente da fermentação do hidrato de carbono por um ou mais fungos, mormente o Saccharomyces.
Quando se fala de amidos como o do milho, existe uma etapa intermediária chamada maltagem. Induz-se a germinação dos grãos para que as enzimas liberadas transformem o amido em dextrose, depois sacarose, esta sim apta a se tornar álcool. A produtividade do milho com alta tecnologia é de 12 ton/ha com 49% de amido. Na maltagem perdem-se 20%, resultando em 3.770 litros/ha, com um custo 10 vezes maior que o álcool provindo da cana-de-açúcar.
A cana, por sua vez, dá 80 ton/ha em média e dela se conseguem algo como 120 l/ton brutos ou cerca de 8.000 l/ha líquidos, dispensando a maltagem. Apesar do aumento no consumo, não resta dúvida de que, em termos de espaço, é infinitamente mais eficiente que o biodiesel, não importando de que fonte. Como se não bastasse, ainda se produz energia elétrica a partir de seu bagaço. Além disso, caso o preço seja interessante, pode-se desviar a produção para açúcar, o que torna o investimento muito atraente.
A falta de eficiência do álcool pode ser contornada pelo diesel de cana, que substitui o óleo diesel e o querosene de aviação: sua viabilidade depende do preço do petróleo
Graças ao ataque bacteriano ou pelo uso de enzimas sintetizadas, pode-se quebrar a celulose, transformando-a em sacarose, e dela extrair álcool. Isso habilita qualquer resíduo agrícola — até lixo urbano — a se transformar em combustível para automóveis. É nisso em que acreditam os norte-americanos ao adquirirem a palhada de pós-colheita, cujo volume é significativo e não compete com a produção de alimentos. No Brasil essa vertente tem duas frentes, o aproveitamento do bagaço e da palhada da cana, e aumenta a produtividade em até 100% por hectare plantado, o que freia a invasão dessa lavoura sobre áreas destinadas à alimentação.
Mesmo a falta de eficiência do álcool pode ser contornada pelo diesel de cana, que consiste na substituição do Saccharomyces por outras leveduras capazes de produzir hidrocarboneto chamado farneseno. Ele substitui o óleo diesel e o querosene de aviação com vantagens em eficiência energética, por se constituir de uma só molécula. Usa basicamente o mesmo processo que para obter álcool — portanto, capaz de usar as mesmas matérias-primas. Sua viabilidade depende do preço do petróleo, com que concorre diretamente. Seu sucesso depende de suplantarem-se entraves contratuais vigentes, que promovem uma inércia tecnológica, como discutida na coluna sobre teoria dos contratos.
O mais bizarro nesse assunto é que a produção de óleos vegetais pode colaborar com a persistência da exploração de petróleo, visto que uma das tecnologias de recuperação avançada de poços é justamente injetá-los a fim de fluidificar o petróleo retido. Essa adição dispensa a transesterificação e prolonga a vida útil do poço.
A adoção de produtos agrícolas tem, sim, impacto na produção de alimentos, por incentivar a monocultura como a da cana. Ao mesmo tempo, os agentes econômicos não estão dispostos a pôr todos os ovos no mesmo cesto: buscam meios de diversificar as fontes pelo uso de resíduos que, doutra forma, competiriam pelos meios naturais de decomposição. Se é verdade que o mundo vai acabar, não será por causa dos combustíveis.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars
Foto: Cana Online