Só o fim dos atuais acordos comerciais mostrará os reais efeitos da saída do Reino Unido da União Europeia
Num entardecer de 1977, o tio de um amigo, sabendo de nosso gosto por automóveis, apareceu em nossa casa para mostrar sua última aquisição, estacionada na esquina. Era um Rolls-Royce Silver Wraith 1952 com carroceria fechada. Era alto como um prédio e antiquado como um carro de boi, mas luxuoso como o Vaticano. Tinha painel de nogueira com bronze, combinando com o volante, uma enorme grade de prata de lei com as barras móveis para controle de temperatura, uma guinchante suspensão traseira por feixe de molas e era, apesar de tantas contradições e ausências, uma obra de arte.
Muito mais de arte do que de tecnologia, pois devia transmissão automática, motor V8, ar-condicionado e controle elétrico de vidros, todos encontrados no Cadillac Deville do mesmo ano — que curiosamente fora presenteado a um outro amigo nosso, permitindo uma comparação minuciosa. Esse anacronismo não era monopólio da RR, espalhando-se por toda a indústria britânica de automóveis, incluindo Jaguar, MG e Triumph. A marca do felino foi a primeira a modernizar suas carrocerias com o lançamento do E-Type, no que foi seguida pela Aston Martin, impulsionada por James Bond.
Há a crença de que a indústria britânica só não fechou porque a região fez parte da União Europeia, servindo como cabeça de ponte para investidores
O que nunca abandonou a indústria britânica de automóveis foi a fama de pouca confiabilidade. Tirando as duas marcas de luxo — Rolls-Royce e Bentley, então juntas —, o epíteto de “quebrador” acompanhou fabricantes como a Jaguar, dado o péssimo desempenho de seu sistema elétrico, e a Aston Martin, graças à fragilidade mecânica. O Ford popular do pós-guerra conhecido como Prefect teve uma versão furgão muito conhecida em São Paulo na entrega de pão, isto é, quando funcionava. Pode-se dizer que o café da manhã não era garantido. O mesmo se podia dizer da Vauxhall, que representava a General Motors no Reino Unido, mas com qualidade crescente graças ao progressivo compartilhamento de desenvolvimento com a alemã Opel.
Resumindo, apesar de ser a casa da Fórmula 1, bem como da manutenção do volante à direita como reserva de mercado, a indústria de automóveis em solo britânico jamais foi pujante. Tanto que em 2013, ano de máxima produção no Brasil, com cerca de 3,75 milhões de veículos, no Reino Unido produziram-se somente 1,6 milhão, menos da metade, segundo a Organização Mundial de Comércio (OMC).
Entre os economistas especializados, há a crença de que a indústria de automóveis só não fechou na ilha porque ela, até 30 de janeiro de 2020, fez parte da União Europeia, servindo como cabeça de ponte para investidores de fora do bloco, como demonstra a tabela a seguir. Hoje, somente a McLaren pertence a um grupo genuinamente britânico — Jaguar e Land Rover estão em poder da Tata e a Mini é do grupo BMW. Quando se fala em autopeças e motores Diesel, a coisa muda um pouco de figura, pois o país salta da décima primeira para a nona posição no cenário mundial — mesmo assim, altamente dependente de exportações, mormente para o restante da União Europeia.
Indústria britânica e seus controladores
Empresa | Adquirente | Ano | Situação |
Aston Martin | Investidores britânicos | 2007 | Produzindo |
Austin-Morris | Shanghai Automotive Industry | 2005 | Apenas marca |
Bentley | Volkswagen | 2001 | Produzindo |
Hillman | PSA | 1979 | Apenas marca |
Jaguar | Tata | 2008 | Produzindo |
Lotus | Geely | 2017 | Produzindo |
McLaren | McLaren | 2017 | Produzindo |
MG | SAIC Motor | 2006 | Importação da China |
Mini | BMW | 1993 | Apenas montagem |
Rolls-Royce | BMW | 1998 | Produzindo |
Vauxhall | PSA | 2018 | Produzindo |
Fonte: respectivos sites |
Aqui vamos fazer uma digressão para entender o sistema tributário europeu, que se chama de IVA (Imposto sobre Valor Agregado) com proteção efetiva. Ele tem o mesmo mecanismo de débitos e créditos que nosso Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), mas o que é comprado dos demais países da União entra como crédito de IVA, de sorte que somente o trabalho executado dentro do país seja tributado. Daí o chamar-se de proteção efetiva, pois induz o comércio dentro do bloco, mantendo a proteção contra a concorrência externa.
Naturalmente, isso se reflete muito mais nos componentes do que no produto acabado. Poder vender componentes em qualquer lugar do bloco, sem que o imposto de importação incida sobre o custo final do produto, é que trouxe a pujança da União Europeia, tornando-a capaz de competir de igual para igual com indústrias altamente subsidiadas como as dos Tigres Asiáticos, nos anos 1970 e 1980, e com a China da atualidade. No primeiro caso, eram os Estados Unidos a sustentar essas economias devido a suas importações subsidiadas, enquanto a China, por sua economia altamente estatizada, mantém sua competitividade via taxa de câmbio subavaliada.
O povo inglês nunca entendeu bem seu papel na União Europeia, e um dos fatores para isso foi a economia da ilha ser umbilicalmente ligada aos Estados Unidos
Com a saída do Reino Unido da União Europeia — o Brexit —, todos os componentes britânicos custarão mais caro no restante do bloco, pois o imposto de importação sairá do mecanismo de débitos e créditos. Ao mesmo tempo, os carros importados aumentarão de preço para os britânicos, o que eleva o valor dos itens produzidos internamente pela redução da concorrência. Isso pode reduzir ainda mais o tamanho do mercado interno.
O povo inglês nunca entendeu bem seu papel na União Europeia, daí não ter aderido ao euro. Duas coisas contribuíram fortemente para isso. Primeiro, o fato de a economia da ilha ser umbilicalmente ligada aos Estados Unidos, o que sobrevalorizava a libra, algo do interesse dos norte-americanos. Segundo, a falta de interesse de cumprir as regras do bloco no que tange ao déficit público. Sair do bloco parece ter sido fruto de uma onda de conservadorismo que execra, dentre outras coisas, as negociações em bloco e a imigração, aliada ao interesse norte-americano de se manter como primeira economia do mundo.
Em paridade do poder de compra, os Estados Unidos já tinham caído para o terceiro lugar, com seus US$ 20,4 trilhões, contra quase US$ 22 trilhões da União Europeia e US$ 25,2 trilhões da China. Tirando os US$ 3 trilhões referentes ao Reino Unido, sobram quase US$ 19 trilhões para a União Europeia: os EUA voltariam ao segundo lugar, algo muito importante no tabuleiro das relações internacionais. Quem sabe o apoio de Donald Trump ao Brexit se destinasse muito mais a enfraquecer o bloco do que a sustentar o conservadorismo. Só a História dirá.
Fazer um exercício de futurologia tem enorme chance de erro, qualquer que seja a revisão. No beisebol, três erros (strikes) são toleráveis, mas o próximo faz o jogador abandonar a partida. Temos até o fim do ano, quando se encerram os atuais acordos comerciais, para ver quem sai. O que se pode dizer é que o Reino Unido está com three strikes against (três erros contra) ou na corda bamba. Ponhamos as barbas de molho.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars