Reino Unido antecipa o fim dos motores apenas a combustão e de fontes fósseis para gerar energia
É muito comum, nas corridas de Fórmula 1 e Fórmula Indy, os pilotos reclamarem do vento. Nos circuitos ultrarrápidos há até birutas para o piloto ter uma ideia do que fazer. Numa corrida, cada carro é único e cada piloto age conforme sua habilidade e experiência. Quando se trata da indústria, quando o vento muda, os dirigentes podem até ficar sem chão.
Donald Trump não foi reeleito e Boris Johnson se viu perdido em plena pandemia. Até então, ele se fiara no apoio dos Estados Unidos como substituto para o mercado perdido graças à desistência de participar da União Europeia. Uma das provas de subserviência aos norte-americanos era a negação dos efeitos climáticos cujo alarme já soava no continente europeu.
Com a pandemia e a queda de Trump, o Reino Unido voltou-se aos anseios europeus, até adiantando metas em relação ao estipulado pela União que a ilha abandonou
Noutra matéria, o foco foi a desnacionalização da indústria britânica de automóveis e a dificuldade que a ilha teria para comerciar seus carros no continente depois do Brexit. Duas coisas não estavam no horizonte naquela ocasião, a pandemia e a — talvez consequente — queda de Donald Trump. Depois desses dois eventos, além de o primeiro-ministro ter contraído o mal com graves consequências, o Reino Unido voltou-se aos anseios europeus, até adiantando metas em relação ao estipulado pela União que acabava de ser abandonada.
A mudança dos ventos começou com a antecipação de 2040 para 2030 do limite para a produção de automóveis puramente a combustão, com a permissão a modelos híbridos até 2035. Isso, juntamente com a eliminação de fontes fósseis para a geração de energia, substituídas por eólica e das marés, Boris Johnson anunciou como a Revolução Industrial Verde. Para tanto, o Reino Unido reservou US$ 50 bilhões para os próximos 10 anos, valor inesperado em função da crise econômica que circunda a pandemia. Sem dúvida, surpreendeu o mercado e deve ter estarrecido os dirigentes da indústria de automóveis situada no país.
O Reino Unido produz apenas um modelo de carro elétrico, o Mini — o Jaguar I-Pace, apesar da marca britânica, é fabricado pela Magna Steyr na Áustria. Curiosamente, Londres foi a primeira capital a cogitar o uso de eletricidade com recarga em pontos públicos, tanto que já em 1969 aparecia, numa edição da revista Quatro Rodas, um veículo elétrico sendo conectado a um poste por sua motorista naquela cidade. Tratava-se de um veículo para uso preponderantemente urbano com a intenção exclusiva de reduzir a poluição.
Custo inimaginável
Dessa vez, os investimentos terão duas frentes concomitantes e igualmente ambiciosas: mudar totalmente o parque industrial, com o abandono forçado de contratos de longo prazo, e refazer toda a geração de energia elétrica, provavelmente, indenizando contratos de prazo ainda mais longo. O custo total de abandono (também conhecido como custo de saída, analisado na primeira matéria da coluna), que corresponde à soma das indenizações pelos contratos em vigor e do valor presente dos rendimentos de que se abriu mão, será inimaginável. Será que vale a pena tamanho sacrifício?
Novamente, os transportes estão no olho do furacão. No mar, o abandono dos remos e a navegação omnidirecional ampliaram mercados consumidores e fontes de matéria-prima; em seguida, o vapor substituiu tendões e músculos no transporte de insumos e mercadorias; vieram os combustíveis e os meios de transporte mecanizados tornaram-se massivos e capilares; agora, é a vez de substituí-los por fontes limpas de energia, na medida em que o termo se aplique. À iniciativa privada, caberá sempre escolher o método mais eficiente.
A experiência deve fazer a economia britânica girar com maior valor agregado em produtos, suprindo a falta de escala oriunda das limitações territoriais e populacionais
Não se pode, a priori, afirmar quais meios serão empregados, seja na geração de energia, seja na forma do abastecimento dos veículos. Isso dependerá do que for mais abundante no momento, bem como do domínio científico. O leque tecnológico é grande. Energia elétrica pode ser obtida dos ventos, das marés, do Sol (nada abundante na ilha), até do calor do interior do planeta. Novos materiais, como o grafeno, prometem revolucionar o armazenamento e a transmissão de energia. Ao Estado, cabe financiar as pesquisas e fazer os investimentos cujo período de maturação não seja palatável aos empreendedores privados, num esforço coordenado entre governo e empresários.
Há de ser um grande salto para o futuro, mas não como o da experiência chinesa de entre 1958 e 1960, quando, na intenção de industrializar-se, o regime impôs tamanho sacrifício ao povo que as mortes por inanição ultrapassaram 40 milhões. Há de ser uma experiência que faça a economia britânica girar com um significativo acréscimo de valor agregado em seus produtos. O desafio é suprir, a partir da oferta de tecnologia de ponta, a falta de escala oriunda das limitações territoriais e populacionais, sobre o que o Reino Unido não tem nada a fazer.
De novo, como na Revolução Industrial, o Estado britânico tomou a frente das mudanças.
Não resta a menor dúvida de que este esforço, no fundo, representa um novo projeto de país. Ele gerará um grande déficit público a ser coberto por papéis com importância semelhante à dos bônus de guerra, que costumam ser lançados sempre que há um conflito real. O embate, dessa vez, é tecnológico semelhante ao enfrentado pelos reis europeus do século XVI ao descobrir e colonizar o Novo Mundo. Naquele tempo, o desafio era navegar em qualquer direção, inclusive, contra o vento; desta vez, a meta pode ser criar riqueza ao sabor dele.
- Errata: não incluímos o Mini na coluna de 27/11 ao mencionar que o Reino Unido não produz carros elétricos.
A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars