Propõe-se deixar o carro em casa, mas abrir mão dele significa optar por um transporte bem menos seguro
Muitos anos atrás, estava indo de ônibus para a faculdade em que lecionava quando uma moça com uma criança de colo — e no colo — foi-se equilibrando pagar a passagem. Como o veículo estivesse cheio, ela aproveitou um sinal fechado para isso, só que, quando o cobrador lhe estava entregando o troco, o sinal abriu e o motorista, sem pensar nos passageiros, tirou o pé da embreagem. A moça desequilibrou-se, bateu o quadril na roleta e a criança voou de seus braços. Por sorte, o fato de o carro estar cheio impediu que o bebê caísse no chão de cabeça, podendo até morrer. Ficamos, todos os passageiros, angustiados e revoltados e dirigimos nossas baterias contra o motorista. Ele não era, no entanto, o único culpado.
Anos depois, estava eu sentado no banco retrátil de um carro biarticulado de transmissão automática, com meu cão-guia ao lado, quando entrou uma moça com o bebê no carrinho. Cedi meu lugar a ela para que pudesse fixar o carrinho como se faz com as cadeiras de rodas. Era o procedimento correto, digno de um país desenvolvido. Se fosse a regra no Brasil, teria sido um grande salto rumo ao desenvolvimento. Fiquei pensativo. Embora levar bebês em carrinhos seja comum no Primeiro Mundo, em países como os Estados Unidos os ônibus são projetados para maximizar o número de passageiros em pé. O mesmo acontece por aqui, visto que o número de assentos é menos que proporcional ao comprimento do veículo.
Que tal estabelecer como meta levar todos os passageiros de ônibus sentados com os respectivos cintos, respeitando-lhes as condições físicas, etárias e sensoriais?

Quando estou diante de discussões sobre as cadeirinhas Isofix e as notas que se atribuem à segurança dos ocupantes dos automóveis, penso: será que ônibus não estão sujeitos a acidentes?
Será que não caberia testá-los em impactos e lhes atribuir estrelas como se faz com os automóveis? Não seria lógico fazê-lo com categorias além das empregadas nos carros de passeio, incluindo a segurança de idosos e pessoas com deficiência? Que tal estabelecer como meta levar todos passageiros sentados com os respectivos cintos, respeitando-lhes as condições físicas, etárias e sensoriais? Se é assim no Japão e até nos Emirados Árabes, por que não aqui? Por que os cidadãos ingleses vão para o trabalho de transporte público lendo o jornal e não nós?
Ao mesmo tempo, as mulheres reclamam do assédio sexual, chegando ao estupro, que sofrem no transporte público. Fico em dúvida se o problema se resolve criando vagões, táxis e ônibus segregados para mulheres — voltando à Idade Média, quando pessoas de sexos diferentes mal se cruzavam. Será que a promiscuidade em nome da otimização da mobilidade urbana não é fator mais significativo do que o desequilíbrio mental de alguns indivíduos? Tenho uma razoável certeza de que, se cada um estivesse sentado em seu banco e atado a ele por um bem projetado cinto de segurança, o assédio diminuiria muito e os estupros seriam quase inexistentes, sem a necessidade de as mulheres enclausurarem-se ou usarem burcas para protegerem-se física e moralmente.
Dia sem carro ou sem segurança?
Seguir protocolos toma tempo e as empresas querem otimizar a rotatividade. É por isso que muitos motoristas são conclamados a não parar para idosos e pessoas com deficiência. São passageiros lentos que atrapalham o fluxo e impedem as empresas de faturar mais. Paradoxalmente, o Estado clama para que os motoristas deixem seus carros em casa. Cria-se o Dia Mundial Sem Carro, 22 de setembro, e em São Paulo há uma “Sexta Sem Carro” por mês.
Por que não mudar o nome para Dia Mundial Sem Segurança? Sim, visto que, ao abrir mão do automóvel particular, o cidadão abre mão — mais que de seu conforto — de sua segurança pessoal, adotando um misto de joão-bobo e malabarista para manter-se em pé entre acelerações bruscas e freadas exageradas, enquanto o carro saltita por um pavimento digno do solo lunar.
Há uma onda de repúdio ao automóvel: os “descolados” podem pensar assim, enquanto a população locomove-se em verdadeiras latas de sardinha
Em 1934, quando a Universidade de São Paulo foi instituída, os barões do café abriram as burras e trouxeram os melhores professores das melhores universidades europeias. Entre eles vieram sociólogos como o belga Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e historiadores como o francês Fernand Braudel (1902-1985). Este último dizia que foi no Brasil que ficou inteligente. É que ele pôde, graças ao contraste de nossa civilização, em que índios tidos como primitivos convivem com o que há de mais sofisticado, aprofundar o entendimento de que a tecnologia caminha muito mais rapidamente do que a mentalidade humana.
No norte do Mato Grosso, estive numa tribo de índios que usam computadores e internet via satélite e, nem por isso, desligaram-se de sua cultura como quem desliga uma lâmpada. Transponho o pensamento dele e de seus seguidores para essa onda de repúdio ao automóvel. É que a ideia caminha de cima para baixo em nossa sociedade. São os “descolados” que podem pensar assim, enquanto a população locomove-se em verdadeiras latas de sardinha.
Então, as soluções tornam-se as mais cosméticas e nada resolvem porque, para que tenhamos o Dia Mundial Sem Carro, não precisamos ter de assumir como natural e correto o Dia Brasileiro Sem Segurança.
P.S.: Como é hábito do site parar para as festas, sendo esta minha última matéria do ano, desejo o que houver de melhor para todos. Até dia 9 de janeiro.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars